08 de maio de 2017 – Segunda-feira, Páscoa 4ª semana

Leitura: At 11,1-18

Em At 8,26-40, o primeiro africano negro, um ministro da Etiópia, foi batizado. Mas ele podia ter sido um judeu porque estava voltando de uma romaria ao templo de Jerusalém (cf. leitura e comentário da quinta-feira passada). Em At 10-11 lemos o relato mais extenso de uma conversão em todo NT (Novo Testamento), a do centurião romano Cornélio em Cesareia. Trata-se da acolhida do primeiro pagão na Igreja, uma abertura oficial da missão aos pagãos realizado pelo primeiro apóstolo, Pedro. Coisa óbvia para nós, coisa difícil nos começos da Igreja. Este assunto ocupará ainda o primeiro Concílio de Jerusalém (15,7-11.14). Na leitura de hoje, Pedro presta conta a comunidade tradicional de Jerusalém.

Os apóstolos e os irmãos, que viviam na Judéia, souberam que também os pagãos haviam acolhido a Palavra de Deus. Quando Pedro subiu a Jerusalém, os fiéis de origem judaica começaram a discutir com ele, dizendo: “Tu entraste na casa de pagãos e comeste com eles!“  (vv. 1-3).

A iniciativa de Pedro alarmou um grupo influente da comunidade de Jerusalém. Ao chegar, o recebem com uma grave repreensão, embora lhe reconheçam sua função de chefe, ou talvez porque o reconheçam.

Pedro comprometeu sua autoridade numa iniciativa perigosa, de possível longo alcance. Esses judeu-cristãos em Jerusalém , fiéis à circuncisão e às leis de separação, vivem fechadas em mesquinhas questões de convivência. É curioso que não reclamam do batismo dos pagãos (10,48), mas da convivência (eucaristia? cf. 2,46): “Tu entraste na cada de pagãos e comeste com eles” (v. 3). Até então, para os judeus, os pagãos eram impuros, porque além de serem idólatras não eram circuncidados e comedores de porcos e outros animais considerados impuros. Portanto, entrar na casa de um pagão é impuro para um judeu (cf. 10,28.48; Gl 2,11-12; Jo 18,48; Mt 8,8: o centurião de Cafarnaúm).

Então, Pedro começou a contar-lhes, ponto por ponto, o que havia acontecido: “Eu estava na cidade de Jope e, ao fazer oração, entrei em êxtase e tive a seguinte visão: vi uma coisa parecida com uma grande toalha que, sustentada pelas quatro pontas, descia do céu e chegava até junto de mim. Olhei atentamente e vi dentro dela quadrúpedes da terra, animais selvagens, répteis e aves do céu. Depois ouvi uma voz que me dizia: “Levanta-te, Pedro, mata e come.“ Eu respondi: “De modo nenhum, Senhor! Porque jamais entrou coisa profana e impura na minha boca“. A voz me disse pela segunda vez: “Não chames impuro o que Deus purificou“. Isso repetiu-se por três vezes. Depois a coisa foi novamente levantada para o céu (vv. 4-10).

Pedro responde com paciência, não apelando para sua autoridade, mas para a de Deus: a dupla visão celeste (outra visão dupla na conversão de Paulo em 9,10-15; cf. Tb 3) anulando a distinção de puro e impuro (cf. Lv 11; Mt 15,1-20p; Rm 14,14.17), a voz do Espírito e do anjo. Conta o acontecido, um repetição para o leitor, mas com algumas mudanças estilísticas  ou de intenção teológica (cf. cap. 10):

Até então, os irmãos em Jerusalém entendiam que a fé era uma herança do povo de Israel. Pedro disse que era também seu pensamento quando em Jope uma voz lhe convidou a comer animais considerados impuros (conviver na casa de pagão): “Jamais entrou coisa profana e impura na minha boca” (v. 8; 10,14; cf. Ez 4,14). Mas, uma voz, “pela segunda vez, disse: Não chames impuro o que Deus purificou” (v. 9; 10,15). A mesma expressão, ele ouviu três vezes.

Nesse momento, três homens se apresentaram na casa em que nos encontrávamos. Tinham sido enviados de Cesaréia, à minha procura. O Espírito me disse que eu fosse com eles sem hesitar. Os seis irmãos que estão aqui me acompanharam e nós entramos na casa daquele homem. Então ele nos contou que tinha visto um anjo apresentar-se em sua casa e dizer: “Manda alguém a Jope para chamar Simão, conhecido como Pedro. Ele te falará de acontecimentos que trazem a salvação para ti e para toda a tua família“ (vv. 11-14).

Nesse momento, alguns homens vieram de Cesareia, procurá-lo e o Espírito lhe disse que fosse sem hesitar. Acompanhados por seis companheiros de Jope, Pedro entrou “na casa daquele homem” Cornélio que contou da sua própria visão, um anjo anunciando a ele (e a sua família, lit. “casa”; cf. 16,15.31-34) a “salvação” (v. 14) por meio da palavra de Pedro.

Logo que comecei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles, da mesma forma que desceu sobre nós no princípio. Então eu me lembrei do que o Senhor havia dito: “João batizou com água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo“. Deus concedeu a eles o mesmo dom que deu a nós que acreditamos no Senhor Jesus Cristo. Quem seria eu para me opor à ação de Deus?“ Ao ouvirem isso, os fiéis de origem judaica se acalmaram e glorificavam a Deus, dizendo: “Também aos pagãos Deus concedeu a conversão que leva para a vida!“ (vv. 15-18).

 “O Espírito Santo desceu” demonstrando que o discurso de Pedro diante de Cornélio era inspirado, mas “o Espírito Santo desceu sobre todos os que ouviam a Palavra” (10,44), não somente sobre Pedro, mas sobre os ouvintes pagãos.

Pedro notou que foi “da mesma forma que desceu sobre nós no princípio” (v. 15; cf. 10,44-46), como no dia de Pentecostes aos apóstolos em Jerusalém (cf. 2,1-4), falando “em línguas estranhas e louvar a grandeza de Deus” (10,46). A apóstolo cita em confirmação uma frase do Batista, relembrado por Jesus: “João batizou com água, vós sereis batizados no Espírito Santo” (1,5; Lc 3,16). Pedro reconhece: “Deus concedeu a eles o mesmo dom que deu a nós que acreditamos no Senhor Jesus” (v. 17; cf. 10,45).

Antes de batizar os pagãos inspirados, perguntou-se: “Será que podemos negar a água do batismo a estas pessoas que receberam o Espírito Santo, da mesma forma que nós recebemos?” (10,47). Agora faz outra pergunta retórica, é muito grave: fechar-se ao batismo dos pagãos seria por impedimentos a Deus: “Quem seria eu para me opor a acão de Deus?” (v. 17). Para receber o Espírito e ser acolhido na Igreja, basta ter fé em Jesus, o Cristo-Messias (cf. Gl 2,15-16). Paulo levará este conceito mais adiante do que Pedro (cf. Gl 2).

Podemos chamar este acontecimento também “conversão de Pedro”, porque mudou de ideia, costume, tradição e direção (cf. 6,14): “De fato, estou compreendendo que Deus não faz diferença entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, seja qual for a nação a que pertença” (10,34-35).

Ninguém está excluído do Igreja que se torna aos poucos “católica” (= para todos): Deus quer a salvação de todos as pessoas. Para Lc, é importante que o primeiro pagão tenha sido batizado por Pedro, o primeiro apóstolo, quer dizer que foi a Igreja legítima (e não o ex-perseguidor Paulo) que começou a missão entre os pagãos. A Igreja de Jerusalém, depois de muitas discussões, vai reconhecer e vai aprovar as decisões e as ações de Pedro. Ele se mostrou como “pontífice”, fazendo pontes onde havia o muro da separação (cf. Ef 2,11-18).

Evangelho: Jo 10,11-18 (no ano A)

No ano litúrgico A, a primeira parte do discurso com a comparação da porta (vv. 1-10) já foi lido no 4º domingo da Páscoa (ontem). Portanto, na segunda-feira, ouvimos os vv. 11-18:

“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas (v. 11).

Depois de “Eu sou o pão da vida (que desceu do céu; 6,35.41.48.51), “Eu sou a luz do mundo” (8,12) e “Eu sou a porta” (10,7.9), mais uma autodeclaração em que Jesus se apresenta como doador de vida com as palavras : “Eu sou…”.

A origem desta auto-representação está no costume antigo de enviar mensageiros para se poder comunicar com outras pessoas à distância (cf. o anjo Rafael em Tb 5,11-13; 12,15). O mensageiro enviado apresenta a si mesmo ao destinatário. Este costume se aplica aos anjos, mensageiros de Deus e ao próprio Deus Javé (Gn 15,1; Gn 28,13; 35,11; 46,3; Ex 3,6.13s; 6,2; 20,1 etc.). “Eu sou” é o nome divino revelado a Moisés (Ex 3,14: Javé, na tradução grega: “Eu sou aquele que sou”). Em Jo se aplica também a Jesus, porque nele Deus se faz definitivamente presente (cf. Jo 8,28.58; 13,19 e também 6,35; 18,5.8). Para Jo, Jesus é o mensageiro (“enviado”) de Deus porque representa a Palavra de Deus em pessoa (o verbo que se fez carne, cf. 1,1.14) e ele traz a plenitude da vida (“abundância”, em 10,10).

No Oriente Antigo e no AT (Antigo Testamento), “pastor” é metáfora tradicional (v. 6 o chama “parábola”, termo que inclui também a comparação), foi aplicada a chefes, ao rei, ao Messias, ao próprio Deus (cf. Sl 23; 80; 95,7). Tem seu antecessor ilustre na pessoa de Davi, o rei pastor (Sl 78,70-72; 1Sm 16); os profetas o empregam criticando também os maus pastores (Is 40,11; 44,28; Jr 23,1-4; Ez 34; Zc 11). Em Jr 3,15 e 23,4-8, Deus prometeu que daria “pastores segundo o seu coração” e um Messias (rebento de Davi) que salvaria seu povo e o reconduziria do todos os países á sua pátria. Em Ez 34,11ss, Deus mesmo seria o pastor do seu povo, mas também daria um novo Davi como pastor (Ez 34,22s).

Designando a si mesmo “bom pastor”, Jesus toma o título real, messiânico, divino e o desenvolve no discurso em três variações: o pastor e os ladrões (vv. 1-6), a porta do redil (vv. 7-10), o dono e o assalariado (vv. 11-18). A novidade não é só que o bom pastor irá promover justiça e paz em vez de abandonar, explorar ou matar as ovelhas, mas que ele “dá a vida por suas ovelhas” (v. 11). É a “vida em plenitude” (v. 10), ou seja, a vida eterna que Jesus dá (3,16.36; 5,40; 6,33.35.48.51; 14,6; 20,31, em abundância, cf. 10,10; Ap 7,17; Mt 25,29p; Lc 6,38). A vida que ele dá, é também sua própria vida (vv. 16s).

O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas (vv. 12-13).

Quem dará sua vida pelos pecados do povo, é o “servo de Deus” na profecia de Is 52,13-53,12, mas o servo Jesus (cf. At 3,13; 4,27.30; 8,32-35; Mt 8,17; 26,28; Jo 1,29; etc.) também é o “dono”. Ladrões e lobo são os inimigos do rebanho que o pastor o defende com seu bastão e seu cachorro (cf. Ez 34,8; Sl 23,4; Mt 10,6.16p). Na hora do perigo, o empregado abandona (cf. Jr 23,1s; Zc 11,17) para salvar sua vida.

Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas (vv. 14-15).

As ovelhas conhecem a voz do bom pastor e o seguem (vv. 3-5;27). Na Bíblia, “conhecer” não é só um ato racional, mas é experimentar e estar presente (vv. 14s; cf. 14,17.20; 17,3.21s; 2Jo 1s; Deus conhece seu povo, cf. Ex 3,7.14; Sl 139). Tal conhecimento passa a ser “amor” (15,9; cf. cf. Os 6,6; Gn 4,1.17.25 etc.; Lc 1,34; 1 Jo 1,3). Conhecer da parte de Deus e de Jesus é também “eleição” (cf. 15,15s; Rm 8,29s; 1Cor 8,2s; 13,12; Gl 4,9). Só o Filho conhece o Pai e nos dá a conhecê-lo (1,18; 3,11; 17,6; cf. Mt 11,25-27p).

Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir, escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor (v. 16).

As “outras ovelhas” são os pagãos (outros povos) que não serão excluídos. Jesus morrerá também por eles (cf. 11,52). Esta inclusão não conduzirá os pagãos para dentro do redil judaico (cf. Ez 37,21s; Mi 2,12; Jr 23,3; 31,10), mas junta ambos associando judeus e pagãos, formando um só rebanho (cf. Ef 2,11-21 na metáfora da construção).  Pedro terá este ministério da unidade na rede da Igreja (cf. o anexo da redação eclesial: Jo 21,11.15-18: Cuida das minha ovelhas). O desejo de união ecumênica se expressa também em 17,20-23 (cf. Ef 4,4).

Por esta tendência à unidade, uns peritos consideram este discurso escrito pela redação final (“eclesial”) que acrescentou os caps. 15-17 (cf. “permanecer” e não se separar em 15,1-8) e o cap. 21 destacando Pedro com pastor legítimo da Igreja (apesar do seu fracasso na paixão, é chamado novamente em 21,15-17 três vezes: “Cuida das minhas ovelhas”). A comunidade fundada e orientada pelo “discípulo amado” (ele está na origem deste evangelho, cf. 21,20-24; chamado João pela tradição) viveu inicialmente isolada (talvez na Transjordânia) e hostilizada pelos fariseus que queriam dominar o rebanho/povo (cf. 9,22; 12,42; 16,2), mas depois tinha que migrar (talvez a Éfeso) e se integrar na Igreja de Pedro (dar preferência; cf. a corrida em 20,3-10), manter a união em vez de se dispersar e separar (cf. 1Jo 2,19).

É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente.  Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo; tenho poder de entregá-la e tenho poder de recebê-la novamente; esta é a ordem que recebi do meu Pai“ (vv. 17-18).

O Pai ama o filho e deu tudo na mão dele (3,35), porque é obediente e faz a vontade dele (8,29). Esta obediência inclui a doação da própria vida, mas esta morte leva à ressurreição e elevação a sua direita (cf. Fl 2,5-11; Is 52,13-53,12).

O Filho tem a vida dentro de si (3,35s; 5,26). Ninguém a tira dele (7,30.44; 8,20; 10,39). Jesus dá sua vida livremente (10,18; 14,30; 19,11), por isso, no quarto evangelho, ele é soberano também na paixão e na morte (12,27; 13,1-3; 17,19; 18,4-6; 19,28). Portanto, a morte de Jesus não é acidente nem derrota, mas ação livre cumprindo a ordem (missão) recebida do Pai.

O site da CNBB resume: Deus afirmou, através do Profeta Jeremias, que ele daria ao seu povo pastores segundo o seu coração e, mais tarde, pela boca do Profeta Ezequiel, que ele mesmo seria o pastor do seu povo. O Evangelho de hoje nos mostra que Deus está cumprindo a sua promessa, pois o Filho, segunda Pessoa da Santíssima Trindade, é quem afirma: “Eu sou o bom pastor”. É o próprio Deus que se coloca a serviço das pessoas com a finalidade de reuni-las num único rebanho. E hoje a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, é a continuadora da obra do Pastor, de modo que nela o ser humano é convidado a participar da divina missão do pastoreio.

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