09 de janeiro de 2017 – Segunda-feira, Batismo do Senhor, Ano A

 

Com a festa do Batismo do Senhor encerra-se o Tempo do Natal e abre-se o Tempo Comum (é também o 1º domingo do Tempo Comum, mas a cor ainda é branca) no qual acompanharemos Jesus adulto nos evangelhos. Antigamente, a festa do Batismo do Senhor fazia parte da Epifania (manifestação do Divino). Igrejas orientais e algumas ortodoxas ainda celebram na Epifania o nascimento de Jesus, seu Batismo e o primeiro milagre em Caná. Na Igreja Católica, o nascimento de Jesus com a adoração dos pastores celebra-se em 25/12 (desde o séc. IV) e a Epifania (a adoração dos magos) em 06 de janeiro, da qual a festa do Batismo do Senhor foi desmembrada em 1959 e se celebra no domingo seguinte (ainda no ano C, celebra-se o casamento de Caná no 2º domingo do Tempo Comum, além de ser lido em 12/10 no Brasil). Como no Brasil, Epifania foi transferida para o 1º domingo após o Ano Novo e pode coincidir com o primeiro domingo após o dia 06; então o Batismo de Jesus é celebrada na Segunda-feira seguinte (como é o caso em 2017).

 

1ª Leitura: Is 42,1-4.6-7

No livro do Deutero-(Segundo)-Isaias (Is 40-55; escrito no exílio da Babilônia por volta de 550 a.C.) encontram-se quatro cânticos de um “Servo” de Deus (41,1-4; 49,1-7; 50,1-9; 52,13-53,12; cf. leituras nos dias da Semana Santa). Quem é este servo? Já duas interpretações principais: a coletiva vê nele o povo judeu (cf. 41,8), a individual vê nele uma pessoa concreta, talvez um conhecido do profeta que deu sua vida pelo povo (cf. 52,13-53,12). A interpretação cristã vê neste servo uma profecia que se cumpriu plenamente em Jesus Cristo.

Quem apresenta este servo, é o próprio Javé-Deus pela boca do profeta. O primeiro canto (ou poesia) encontra-se nos vv. 1-4; os vv. 6-9 formam uma segunda parte, separada por uma nova introdução (os vv. 5.8-9 são omitidos na leitura de hoje). A palavra chave que aparece três vezes é mispat, traduzida por “julgamento” (vv. 1.3b), “justiça“ (v. 4) ou “direito”.

(Assim fala o Senhor:) Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minh’ alma; pus meu espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações (v. 1).

O primeiro canto caracteriza o “eleito” do Senhor (Javé) de maneira aberta a várias interpretações: É uma pessoa ou uma figura coletiva? Deus elegeu Israel (cf. 41,8), mas elegeu também Davi, em quem pôs o seu espírito (v. 1; cf. 1Sm 16,13). Mas a figura deste “servo” é um contraste grande a um rei poderoso ou a um povo guerreiro.

Pelo gênero literário pode-se comparar a cena com a designação de Saul a Samuel para unção em 1Sm 9,15-17 (“Eis o homem de quem lhe disse ele governará sobre o meu povo”) ou a apresentação de um ministro (“servo”; cf. 1Rs 22,12) na corte celestial de Javé (cf. 40,1ss; 1Rs 22,19-22) que o profeta escutou em sua visão (cf. Is 6).

Javé o “recebe”, apoia o apresentado que não é um rei autônomo, mas um “servo” submisso a Javé e também seu “eleito”. Davi foi chamado simultaneamente “servo” de Javé (1Sm 7,8; 1Rs 11,13.32.34; 2Rs 19,34; 20,6; Jr 33,21s.26; Sl 78,70; 89,4) e seu “eleito” (1Rs 11,34; Sl 78,70; 89,4; Ag 2,23). Deus elegeu o servo (entre vários candidatos; 1Sm 10,24; 16,1-13), “nele se compraz” (2Sm 24,23) e pôs seu “espírito” nele (1Sm 16,13; cf. Nm 11,25,29). O espírito lhe confere certos dons e carismas (Is 11,2).

Sua missão é “promover o julgamento das nações”, ou seja, “levar o direito dos povos (pagãos)”. Os manuscritos diferem: “o” direito, o “meu” direito (de Javé) ou “seu” direito (do servo). Nos dois primeiros casos, seria o ideal da realeza em Israel: governar com justiça (2Sm 8,15; Is 32,1; Sl 72,1-4), proteger os pobres e oprimidos (Sl 72; Pr 29,4), julgar em certos casos (1Rs 3,28; 2Sm 15,2.6; Pr 16,10; já Jz 4,5). Diante da injustiça praticada na história dos reis esperava-se ansiosamente por um rei (“ungido” = messias) que exercesse a justiça (cf. Is 9,6; Jr 23,5; Ez 21,30-32; 34,16). Mas se a versão do “seu direito” prevalece, pode designar o direito constitucional que Samuel descreveu no início da monarquia: o rei tem direito de explorar seus súditos por confiscações e pela corveia e obrigar os filhos de Israel para servirem na guerra, nos cavalos (1Sm 8,11-17; cf. Mc 10,42).

Ele não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas. Não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega (vv. 2-3b).

O v. 2 apresenta a estratégia do servo eleito. Promoverá o (seu) direito não de maneira grossa e violenta (cf. Ecl 9,17: “Palavras calmas de sábios são mais ouvidas do que gritos de quem comanda insensatos”).

Pode-se ver neste servo eleito um antítipo dos juízes como Gideon que também estavam com o espírito do Senhor (Jz 3,10; 6,34) para promover o direito (Jz 4,5). Gideon “gritava conclamando” o povo para fora, para guerra santa (Jz 6,34s; cf. Jz 4,10.13; 7,19s.23s; 12,2). Caçava os inimigos já derrotados e os eliminou (Jz 7,23-25; 8,4-12.18-21; cf. Is 43,17 que aplica a imagem do pavio apagado aos inimigos derrotados da guerra)

O servo, ao contrário, evita barulho e violência. “Ele nem clama nem levanta a voz, … não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega” (vv. 2-3). Ele se nega a conclamar qualquer guerra santa, ainda que seja em defesa; ele representa a utopia da paz santa que convencerá os povos mais que qualquer agressão bélica (cf. Is 2,2-5).

Seria um impulso natural quebrar uma cana já rachada (cf. 2Rs 18,21; Ez 29,6s) ou apagar um pavio quando não há mais óleo para abastecer. Mas o servo eleito não faz isso, ele tem um cuidado sobrenatural, não promove o direito do mais forte, não comete eutanásia para com os candidatos à morte, não descarta os mais fracos, mas oferece seu direito de viver a eles (cf. Mt 5,3ss).

Mas promoverá o julgamento para obter a verdade. Não esmorecerá nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça na terra; os países distantes esperam seus ensinamentos (vv. 3c-4).

Podem variar as traduções: o servo “promoverá o julgamento para obter a verdade” (ou: promoverá “de verdade” ou “com fidelidade”; v. 3c).

O servo tem discrição e firmeza, sua atitude de cuidado coincide com sua perseverança. Não esmorecerá nem se deixa abater (ou: “ele não apagará e não quebrará”; alusão óbvia ao versículo anterior). Ele mantém sua meta e a alcança: “estabelecer a justiça na terra” (ou seja, “no país”), mas até “os países distantes” (lit. “as ilhas”, v. 4) esperam por seus ensinamentos (ou: “por sua lei”).

O par mispat (“julgamento”, “justiça”) e torá (orientação, lei, aqui traduzida por “ensinamento”) se encontra no contexto deuteronomista (Dt 33,10; Js 24,25s; 1Rs 2,3 etc.) e designa o conjunto das leis morais, cultuais e casuais (cf. Dt 12-26) que fazem de Israel um estado de direito solidário. Assim, Josué selou a aliança com o povo em Siquém (Js 24,25s).

Com ousadia conclui este primeiro canto: Os homens “nas ilhas” (países) mais distantes esperam pela torá (ensinamento, lei) do servo, esperam pela lei como se fossem israelitas piedosos (cf. Sl 119,43s). Um ensaio da missão aos pagãos já aconteceu em 2Rs 17,26-28.34.37 entre os samaritanos. Já na visão da paz universal em Is 2,2-5, todas as nações acorrerão a Jerusalém para ouvir a instrução, a lei, a palavra de Javé (cf. 51,4). A benção de Abraão se estenderá a todos os povos da terra (Gn 12,3).

Mas quem, afinal, é este servo? Deutero-Isaías apresenta uma figura que trará a salvação (paz como fruto da justiça e do seu ensinamento, cf. Is 32,17). A monarquia antiga decepcionou e faliu no exílio, mas não se pode voltar ao tempo antes da monarquia com Gideon e seus excessos de violência. O servo completará a ideia de um rei ideal da dinastia de Davi (messias, ungido com o espírito), levando o direito solidário (sem exploração nem violência) para além de Israel aos povos.

Mas quem será este servo real? Três possibilidades: 1. Uma pessoa desconhecida na comunidade do exílio em que se concentram estas esperanças 2. Ou o próprio profeta, Deutero-Isaías, que escutou sua apresentação na esfera celeste (cf. Is 6). Os profetas eram os oponentes tradicionais dos reis, agora ele mesmo representa um tipo contrário aos reis corruptos. 3. Ou, numa interpretação coletiva, o servo representa o povo eleito de Israel e seu papel no meio dos povos pagãos (45,14; 49,7; 55,3-5; cf. a eleição, o dom do espírito e apoio de Javé em 41,8-10; 43,10.20; 44,1-3; 45,4; 49,7).

O judaísmo helenista com sua tradução grega (LXX) interpretou o servo como imagem do povo de Israel, enquanto os judeus na Palestina o relacionaram ao messias que devia vir (cf. as traduções em aramaico, Targum).

No NT, os evangelhos aplicam a Jesus a figura do servo, especialmente Mateus: “Este é meu é o filho (servo) amado (eleito)” diz a voz do céu no batismo (cf. Sl 2,7), e o Espírito do messias em forma de pomba simboliza paz e amor, não violência (Mt 3,17 e paralelos; 12,17-21; 17,5). Também o papa Francisco apresenta traços deste servo na sua exortação de não descartar os fracos na vida e na fé, nem oprimir nem condená-los, mas cuidar e abraçá-los.

Eu, o Senhor, te chamei para a justiça e te tomei pela mão; eu te formei e te constituí como o centro de aliança do povo, luz das nações, para abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas (vv. 6-7).

Deus “chama” o servo para justiça e salvação (cf. 41,4.9; 43,1; 46,11; 48,15; 49,1; 51,2; 54,6). Como um pai ao seu filho medroso e inseguro, ele o “toma pela mão”, (cf. Gn 19,16; Jz 16,26), e o constitui o centro (mediador) de “aliança do povo, luz das nações”. Isto não se refere só à vocação de Deutero-Isaías (40,6-8), mas ao chamado de Abraão com quem Deus já fez uma “aliança” que não só incluiu terra e descendência, mas também a benção para “todas as nações” (Gn 12,1-3; 17,4-8).

Depois de mencionar a criação de Deus (v. 5) e o chamado do servo igual a Abraão, agora se alude a Moisés. Chamando este príncipe do Egito em Ex 6,2-8, Javé Deus agiu em função da aliança: “Eu ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizaram e me lembrei da minha aliança” (Ex 6,5).

Deutero-Isaías entende o exílio como cativeiro na escuridão (cf. 42,16.22; 49,24-26; 50,10; 51,14). O servo eleito, pessoa humilde como Moisés (Nm 12,3), deve levar o povo a um novo êxodo (saída), desta vez não do Egito, mas da Babilônia, “tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (v. 7). Este milagre de um novo êxodo irá “abrir os olhos” dos povos pagãos para reconhecerem o verdadeiro Deus, seu santo “nome” (v. 8; cf. Ex 3,14) e sua luz (cf. Ex 13,21s). A lei (tora) e o direito (mispat, cf. vv. 1-4) também são “luz” (cf. os 6,5; Mq 7,9; Sf 3,5; Sl 37,6) e são o conteúdo da “aliança pelo povo” (Js 24,25).

No texto hebraico de v. 7 não fica claro quem é o sujeito: Deus abrirá os olhos dos cegos ou o servo (tradição da nossa liturgia). Chamado por Deus, o servo eleito não submeterá os mais fracos ao seu domínio, mas seu agir acabará produzindo uma transformação radical. Os cegos enxergarão e os presos serão libertados (v. 7; cf. 61,1). O servo será estabelecido como “luz das nações” no segundo cântico (49,6; cf. Paulo em At 26,17s).

No NT, Jesus responde a pergunta do Batista que a cura de cegos está entre as obras pelos quais se reconhece o messias (Mt 11,5; Lc 7,22; cf. Is 29,18; 35,5; 42,7.18; Lc 4,18). Em Jo 8,12, ele se apresenta: “Eu sou a luz do mundo”. Simeão louva o menino Jesus como “luz para iluminar as nações e glória do teu povo, Israel” (Lc 2,31s).

  1. Voigt resumiu: O servo de Javé é um conceito de Deus, plenamente realizado em Jesus Cristo e no qual outros podem participar cada um de sua maneira, antes de Cristo, também depois dele (GPM N.F. 1983, 6; p. 91).

2ª Leitura: At 10,34-38

A segunda leitura é tirada da visita de Pedro ao centurião romano Cornélio. Sua pregação resultará no dom do Espírito “sobre todos os que ouviam a palavra” e no batismo deles. O fato de um judeu (Pedro) entrar na casa de um pagão (cf. v. 28; Mt 8,8p) e administrar o primeiro batismo aos pagãos (sem circuncisão) provoca escândalo entre os tradicionalistas (11,1-3); será debatido e resolvido no primeiro Concílio em Jerusalém (cf. At 15).

Pedro tomou a palavra e disse: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença (vv. 34-35).

Depois da saudação dos dois homens comunicando cada um o motivo deste encontro (duas revelações paralelas, cf. vv. 1-33), Pedro começa seu discurso catequético (ou melhor: kerygma, primeiro anúncio) que apresenta a lição primária de todo o fato: “Deus não faz distinções entre as pessoas” (cf. Dt 10,17; 2Cr 19,7; At 15,9; Gl 2,6; Mc 12,14p), aceita qualquer homem religioso e honrado, não leva em conta “a nação à que pertença”, a raça, a situação social, o gênero, a idade.

Quando diz “a quem respeita/venera a Deus”, o autor pensa logicamente no Deus verdadeiro. Como se chama a esse Deus? Mais de um texto bíblico sugere uma resposta tolerante (as parteiras do Egito: Ex 1,17; Melquisedec: Gn 14,18-20; cf. Sb 13,5s; as mulheres na genealogia de Mt 1,1-17). Em Lc 10, 25-37, o samaritano, um homem de uma religião rival, torna-se um bom exemplo.

Qualquer um, de qualquer raça ou nação, recebe de Deus a graça e a misericórdia. O evangelho de Jesus é “católico”, ou seja, universal, e deve vencer todas as barreiras erguidas pelos limites ou preconceitos humanos. Pelo batismo, os cristãos tornam-se filhos adotivos de Deus, membros da mesma família (Igreja), irmãos do mesmo povo (cf. Mt 28,19s; Gl 3,27-29). Esta consciência deve vencer barreiras e preconceitos (cf. Ef 2,11-22).

“Ele aceita” (lit.: lhe é agradável), terminologia cultual (cf. v. 4). É agradável a Deus um sacrifício irrepreensível ou aquele que o oferece (Lv 1,3; 19,5; 22,19-27). Isaías (56,7) anunciara que, no fim dos tempos, os sacrifícios dos gentios seriam agradáveis a Javé (cf. Ml 1,10s; cf. Rm 15,16; Fl 4,18; 1Pd 2,5).

Aqui, Pedro afirma que não são a pureza ou impureza rituais que tornam o homem agradável a Deus como um sacrifício, mas “ele aceita quem o teme e pratica a justiça”. No AT, o “temor de Deus” é o princípio da sabedoria (Pr 1,8; 9,10; 15,33; Jó 28,28; Eclo 1,14), um dom do Espírito, (Is 11,2); os que simpatizavam com a religião judaica, mas ainda não eram circuncidados eram chamados “tementes de Deus”, como o próprio Cornélio (vv. 2.22; cf. 13,16.26). A “justiça” é a qualidade de sua religiosidade e moral (cf. Sl 15,2) e, mais profundamente ainda, a fé em Jesus, que “purifica os corações” dos judeus e dos pagãos (15,9) – cf. Rm 14,18 e seu contexto, onde se trata de alimentos puros e impuros. O sentido da visão de Pedro (vv. 11-16) está agora plenamente revelado.

Deus enviou sua palavra aos israelitas e lhes anunciou a Boa-Nova da paz, por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos (v. 36).

Entrando no assunto, Pedro afirma a continuidade (AT e NT): “Deus enviou sua palavra aos israelitas” por meio dos profetas e agora “por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos”, envia a “Boa Nova da paz”, ou seja, a mensagem de salvação pela qual Deus anuncia a paz entre si e os homens (Is 52,7; Sl 107,20; 147,18). Se a mensagem foi dirigida a Israel primeiro (cf. 13,46), ela o é agora a “todos” os seres humanos sem exceção, porque Jesus é o Cristo (Messias de Israel) e Senhor de todos. Na boca de Pedro, o segundo título “Senhor” soará com a plenitude que os cristãos lhe reconhecem (cf. 2,36; Rm 10,9; 14,8s; Fl 2,9-11 etc.).    

Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia, depois do batismo pregado por João: como Jesus de Nazaré foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio; porque Deus estava com ele (vv. 37-38).

Diferente das pregações diante de pagãos que falam do Deus Criador e chama à conversão (14,15ss; 17,24ss), a pregação diante de Cornélio se refere ao que os ouvintes já sabem. Como tementes a Deus, já participam da sinagoga (sem serem circuncidados) e devem ter ouvido “o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (cf. v. 39; Lc 4,14.37.44; 23,5).

Segue o roteiro resumido do Evangelho (de Mc que Lc usou como modelo): iniciando com o batismo por João em que “Jesus de Nazaré” se tornou “Cristo” (=”ungido”);  Jesus não foi “ungido” rei-messias com óleo de crisma pelo sumo sacerdote (cf. 1Sm 16,13; 1Rs 1,38s; Sl 2,2.7), mas “por Deus com o Espírito” (cf. Is 42,1; Lc 4,4.18.; At 4,27), os ouvintes ouviram falar também dos seus milagres (“com poder”, “fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio”; cf. 4,9; Lc 13,16; Lc 4,18s = Is 61,1s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2123) comenta: A afirmação capital dos vv. 34-35 introduz um novo exemplo de pregação apostólica (cf. 2,14…). Após uma declaração sobre o sentido da vinda de Jesus (v. 36), as etapas do seu ministério são brevemente evocadas segundo o plano dos evangelhos sinóticos (vv. 37-39a) até a sua consumação: a morte, a ressurreição e as aparições, a missão confiada aos apóstolos (vv. 39b-42); no fim, um apelo implícito a fé, confirmado pelo testemunho dos profetas (v. 43). A linguagem dos vv. 36-39, particularmente difícil e complicada, reflete-se na tradução.

Evangelho: Mt 3,13-17

Nos vv. 1-12, Mt apresentou João Batista, usando duas fontes, o evangelho mais velho de Marcos (Mc 1,1-8) e palavras da coleção de palavras, chamada Q (que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir de Mt e Lc que a usaram, cf. a pregação do Batista em Mt 3,7-12 e Lc 3,7-9.16s). Como ápice, entra em cena agora Jesus, de quem Mt já apresentou a genealogia e a infância (usando outras tradições, cf. caps. 1-2). A primeira epifania (manifestação do Divino em Jesus) foi para os pagãos: a adoração dos magos (2,1-12). O batismo é a segunda epifania: aos judeus presentes e à comunidade cristã que escuta o evangelho.

Jesus veio da Galileia para o rio Jordão, a fim de se encontrar com João e ser batizado por ele (v. 13).

Mt omite Nazaré de Mc 1,9; o leitor já sabe da cidade já do cap. anterior (2,23). Mas salienta a intenção (“a fim”) de Jesus de se deixar batizar por João, preparando o diálogo seguinte.

Mas João protestou, dizendo: “Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” Jesus, porém, respondeu-lhe: “Por enquanto deixa como está, porque nós devemos cumprir toda a justiça!” E João concordou (vv. 14-15).

Mt inseriu aqui este diálogo entre o Batista e Jesus que reflete um problema antigo nas comunidades primitivas. João era um grande profeta, o “maior entre os nascidos de uma mulher” (11,11p); havia discípulos que consideravam ele como messias (Jo 1,19s; cf. Jo 4,1s; At 19,1-6).  Quem batiza só pode ser maior do que quem é batizado; o profeta como homem de Deus é maior do que o pecador que se arrepende e pede o batismo. No Ev de Mc, Jesus é mostrado maior pelo anúncio do próprio Batista (Mc 1,7-8p: “mais forte do que eu…, eu batizo só com água, ele vos batizará com Espírito Santo”) e depois pela voz celeste do Pai (Mc 1,11; cf. v. 17).

Se Jesus é maior, o ritual do batismo ministrado a ele torna-se um problema. Em Mc que não comunica a infância de Jesus, o batismo de Jesus o revela como Filho de Deus. Para Mt (e Lc), Jesus já era Filho de Deus pelo Espírito Santo desde o início (cf. 1,18-23; 2,15). Se Jesus é maior e “batizará com o Espirito Santo e com fogo” (vv. 11), por que e para que ele precisa-se ainda batizar por João? Aquele que se assimila aos pecadores, pode ser de fato o Filho de Deus? Jesus também era pecador? Os evangelhos não afirmam isso, embora não está dito explicitamente nos evangelhos, que Jesus estava sem pecado (cf. Jo 8,46); está expresso depois no evangelho apócrifo dos Nazarenos.

A Bíblia do Peregrino (p. 2323) comenta: Jesus se incorpora ao povo na cerimônia, mas no diálogo mostra o sentido diferente da sua ação: o que para outros era sinal de arrependimento, para ele é sinal de plenitude e justiça: é enfrentar seu destino (batismo/ morte) e é conferir ao batismo cristão o poder de tornar justos.

Mt insere um diálogo em que João expressa sua inferioridade (cf. Jo 3,23-30), “protestou” (lit. “tentava impedir” (não se pensa em impedimentos canônicos do batismo, cf. At 8,36; 10,47; 11,17). A resposta de Jesus chama atenção, não apenas pelo conteúdo, mas também porque é o primeiro pronunciamento de Jesus no Ev de Mt.

“Justiça” é palavra-chave em Mt que a emprega sete vezes. Deve se entender no sentido do AT como uma ordem ampla e salvífica de Deus, ou mais como exigência de direito que o ser humano deve praticar (assim em 5,10.20; 6,1)? Mt não pensa apenas na Lei de Moisés da qual o batismo não faz parte, mas no total da “vontade de Deus” como Jesus ensinará ao longo do Evangelho.

A expressão “toda a justiça” não significa uma justiça especial para o messias, mas tudo o que for justo; não separa Jesus dos cristãos que devem praticar a “justiça maior” (do que dos fariseus, cf. 5,20) e “tudo” o que Jesus ordenou (cf. 28,20). Apenas o verbo “cumprir” é diferente da ação dos discípulos (para a qual Mt usa “praticar/fazer” a vontade de Deus; cf. 6,1; 7,21.23 etc.). Mt reserva “cumprir” (grego – “completar” no sentido e realizar) para Jesus. Só ele fez plenamente a vontade do Pai (cf. 23,32). Além do batismo, Mt pensa certamente na nova “justiça” pela qual Jesus havia de cumprir e completar a da Lei antiga (cf. 5,17.20). Assim 3,15 já sinaliza 5,17: “Não pensais que vim revogar a Lei e os Profetas, mas para dar-lhes pleno cumprimento”.

A Tradução Ecumênica da Bíblia comenta: Em Mt, a palavra “justiça” designa fidelidade nova e radical à vontade de Deus (5,6.10.20; 6,1.33; 21,32). João Batista e Jesus sujeitam-se juntamente a um desígnio de Deus cujo significado há de ser revelado por todo o evangelho, quer Jesus se solidarize aqui com os pecadores para salvá-los, quer o batismo represente o primeiro protesto público de Jesus contra o sonho judaico de um Messias triunfante (cf. 4,1-11; 11,2-6; 16,13-23).

Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água. Então o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (vv. 16-17).

Aqui uma lenda apócrifa infiltrou-se em dois manuscritos da tradução Velha Latina (antes da Vulgata de S. Jerônimo): “Enquanto ele era batizado, uma luz intensa se espalhou fora da água, a ponto de encher de medo todos os presentes”.

Mt e Lc usam outra palavra que Mc: “os céus se abriram” (cf. Mc 1,10: “se rasgaram”), como na visão inaugural de Ezequiel (Ez 1,1-4). A expressão significa união entre a terra e o céu (cf. At 7,56; 10,11-16; Jo 1,51) e uma revelação celeste (Is 63,19; Ap 4,1; 19,11).

Alguns manuscritos acrescentam: “para ele” isto é, aos seus olhos. Mas em Mt não é mais uma visão de Jesus (como em Mc 1,10: só Jesus “viu”), mas uma manifestação (epifania) para o público.

Já em Mc 1,10s, o testemunho celeste deixou perceber uma estrutura trinitária: a voz do Pai, repouso do Espirito e título de Filho. Em Mt, deve-se unir a fórmula batismal no final do Ev (28,19).

Ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa como sendo o salvador prometido, o ungido (messias-rei; cf. Is 11,2; 42,1; 61,1; 63,11), como o Espirito desceu durante a unção de Saul e Davi para capacitá-lo para o governo. A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: O Espírito que pairava sobre as águas da primeira criação (Gn 1,2) aparece aqui no prelúdio da nova criação. Por um lado, ele unge Jesus para a sua missão messiânica (At 10,38), que de ora em diante há de dirigir (Mt 4,1p; Lc 4,14.18; 10,21; Mt 12,18.28); por outro lado, como o entenderam os Padres da Igreja, santifica a água e prepara o batismo cristão (cf. At 1,5…).

“Espírito” é uma palavra feminina hebraico (ruah) e neutra em grego (pneuma) significando também “vento, ar” (cf. Gn 1,2; At 2,2). Como o Espirito é invisível como o ar, um animal que vive nos ares, um pássaro, é símbolo propício. Mas porque uma pomba e não uma águia (cf. Dt 32,11) ou um falcão (o símbolo do deus Horus no Egito que protegeu o faraó) ou uma coruja (símbolo da deusa virgem da sabedoria, Atena para os gregos, Minerva para os romanos)?

A pomba é símbolo da paz e do amor (cf. Ct 1,15; 2,14; 4,1; 5,2; 6,9; já na mitologia do Antigo Oriente acompanhava a deusa do amor, Ishtar), também de simplicidade (Os 7,16; Mt 10,16; Lc 2,24). Ela traz um ramo de oliveira depois do dilúvio em Gn 8,8, símbolo da nova vida e criação reconciliada. Corresponde a atitude do servo de Deus em Is 42,1-4 (1ª leitura de hoje) que não usa de violência como se esperava de um messias guerreiro como Davi para libertar seu povo da opressão estrangeira.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1860) comenta: Alguns, estribados em tradições judaicas, identificaram a pomba com Israel. Para outros, ela sugere o amor de Deus (cf. Ct 2,14; 5,2) que desce à terra. Finalmente, de acordo com as tradições judaicas que viam uma pomba no Espírito de Deus adejando sobre as águas (Gn 1,2), alguns estimam que ela evoca a nova criação que se efetua no batismo de Jesus.

Uma voz celeste, de Deus, que pronuncia seu testemunho definitivo sobre Jesus. A Bíblia do Peregrino (p. 2323) comenta: A filiação atestada pelo próprio Pai deve ser relacionada com a filiação humana de Mt 1,1-17 (vejam-se combinados Sl 2,7, o rei como filho, e Is 42,1, o servo preferido). Recebendo o Espírito, está ungido e declara-se sua missão messiânica.

No Antigo Israel, o rei foi ungido na hora da sua posse (quando subiu ao trono) pelo sumo sacerdote (Salomão por Sadoc em 1Rs 1,39; Saul e Davi por Samuel em 1Sm 10,1; 16,13) e declarado filho (adotivo) de Deus: “Tu és meu filho, hoje te gerei” (Sl 2,7; cf. 2Sm 7,14), como no Egito o rei (faraó) foi proclamado Filho do Deus solar (Horus-Re).

Em Mt (e Lc), Jesus já é Filho de Deus desde o nascimento, portanto a voz celeste não se dirige mais a Jesus (como em Mc 1,11: “Tu és meu Filho”), mas à multidão dos judeus (presente desde v. 5) e a comunidade dos leitores: “Este é meu Filho”. Essa expressão designa, mais do que em Mc, Jesus como o verdadeiro Servo anunciado por Isaías (cf. 1ª leitura). Entretanto, o termo “Filho”, que acaba por substituir o termo “Servo” (graça ao duplo sentido da palavra grega pãis, já em Is 42,1 grego), salienta o caráter messiânico e propriamente filial da sua relação com o Pai. É o Filho querido e bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22,2.12.16), objeto de sua predileção, lit. “em ti eu pus o meu bem-querer” (cf. Is 42,1).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 18611) comenta: Esta última passagem ainda não apresenta o servo sofredor de Is 53, mas aquele que não levanta a voz (42,2; cf. Mt 12,18-21), não vacila nem é quebrantado (Is 42,4). Graças a fusão desses textos escriturísticos, Mt une em Jesus as duas figuras proféticas do filho de estirpe real e do Servo.

Já em Mc, o título Filho de Deus ficou definido e exaltado; e na transfiguração, a voz falará de novo, desta vez aos três apóstolos: “Este é meu filho amado, escutai-o” (17,5p). Mt, porém, trouxe um novo aspecto com sua inserção do diálogo com João e o primeiro pronunciamento de Jesus nos vv. 14-15: Jesus é “Filho de Deus” não apenas por causa do seu nascimento milagroso (geração espiritual: 1,16.18-25), não apenas através de uma revelação de cima (cf. 2,15; 16,16s; 17,5), mas é Filho de Deus por sua obediência exemplar da vontade do Pai (v. 15: “toda justiça”). Este aspecto aparece logo de novo na tentação narrada em seguida (4,1-11) e na paixão (cf. 27,43 ao lado de 27,54p). Na cristologia de Mt, Jesus não é apenas o “Deus conosco” (Emanuel, cf. 1,23; 28,20), mas também o Filho/Servo obediente, “manso e humilde” (11,29; 12,16-21 citando Is 42,1-4); isso explica porque Mt ainda não usou o título Filho de Deus explicitamente na infância de Jesus.

Deus dá sua resposta a esta obediência exemplar e chama Jesus “meu Filho”. Também os cristãos serão chamados “filhos de Deus” quando fizeram a vontade do Pai, p. ex. quando promoverem a paz (5,9; cf. 5,45). Em João e Paulo, já são filhos de Deus através do batismo (Rm 8,14-17; Gl 4,5-7; Jo 1,12), em Mt através da prática (ética) do Evangelho. Não há uma cristologia celeste (preexistência, cf. Jo 1,1-18) em Mt, o caminho é a obediência à vontade de Deus que Jesus pratica de maneira exemplar e os discípulos devem seguir nas suas ações.

 A Nova Bíblia Pastoral (p. 1189) comenta: Já no seu batismo Jesus deixa claro que a justiça é o que vai orientar toda a sua ação: ao reconhecer a missão de João, é proclamado pelo Pai como o Filho amado que vai realizar a missão que lhe cabe.

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