10 de abril de 2018- Terça-feira, retrato ideal da comunidade

Leitura: At 4,32-37

Lucas, o autor dos At, nos apresenta um segundo retrato ideal da comunidade (cf. 2,41-47), desta vez destaca a comunhão dos bens (cf. Lc 12,33; 18,22; Jr 12,6).

A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. Com grandes sinais de poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E os fiéis eram estimados por todos. Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas, vendiam-nas, levavam o dinheiro, e o colocavam aos pés dos apóstolos. Depois, era distribuído conforme a necessidade de cada um (vv. 32-35).

 “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (v. 32). Eles tinham em comum a fé no ressuscitado, as orações, a alegria e também os bens. Quando há unanimidade tal, o ideal da partilha dos bens é possível.

“Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum… Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas vendiam-nas, levaram o dinheiro e o colocaram ao s pés dos apóstolos” (vv. 32.34.35a).

O ideal correspondia a sonhos ou utopias de filósofos pagãos, bem divulgadas na época. Quanto à finalidade, “que não haja pobres na comunidade”, responde ao ideal da legislação deuteronomista (Dt 15,1-11). É coerente a atitude de Lucas com respeito a riquezas e bens (Lc 6,24; 9,3; 10,4; 12,16-21; 16,19-31). Segue o exemplo de Jesus, vivido também pelos discípulos.

Na execução real, Jesus não tinha exigido o desprendimento total de todos (cf. Lc 19,1-10, Zaqueu). Na comunidade o desprendimento parcial ou total é livre; a venda de posses é feita ocasionalmente. Grupos limitados e de forma livre têm perpetuado na igreja o ideal da comunhão de bens (mosteiros, conventos). A experiência da comunidade em Jerusalém não deu resultado e, por outros motivos, tiveram de recorrer a coletas em outras igrejas (2Cor 8-9 par). A seguir, dois exemplos contrapostos, um bom e um mal, ilustram o principio.

José, chamado pelos apóstolos de Barnabé, que significa filho da consolação, levita e natural de Chipre, possuía um campo. Vendeu e foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos (vv. 36-37).

José Barnabé vendeu seu campo e depositou o dinheiro “aos pés dos apóstolos” (v. 37), quer dizer, colocou a disposição deles. Isso deve ter merecido o apelido “filho da consolação” (v. 36), porque a comunidade era “um só coração e uma só alma” (v. 32), mas precisava de doadores generosos e coletas por fora. Ele “era levita e natural de Chipre” (v.36). Barnabé soube descobrir e apoiar Paulo (9,27; 11,25; 13-14) cujas ideias missionárias compartilham (15,2.12; cf. 1Cor 9,6) embora havia opiniões diferentes a respeito de João Marcos (15,35-39). Evangelizaram juntos na ilha de Chipre e na Ásia Menor (13-14) e foram qualificados mais adiante de “apóstolos” (14,4) apesar de Lc reservar este título para os doze (cf. 1,21s.26).

A continuação do texto (que nossa leitura omite) narra o exemplo sombrio da desonestidade e morte do casal Ananias e Safira (5,1-11) que mostra a realidade: Nem tudo na comunidade primitiva era ideal, mas a tentação (satanás) entrou lá também, como no jardim Éden e entre os doze apóstolos.

 

Evangelho: Jo 3,7-15

No evangelho de hoje continua a conversa de Jesus com Nicodemos.

(Naquele tempo disse Jesus a Nicodemos:) “Vós deveis nascer do alto. O vento sopra onde quer e tu podes ouvir o seu ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece a todo aquele que nasceu do Espírito” (vv. 7b-8).

Ao velho conselheiro e mestre fariseu, Nicodemos, Jesus falou da necessidade de “nascer de novo” (v. 3; cf. v. 7). Não se trata de reencarnação ou voltar ao seio da mãe, como Nicodemos entendeu mal (v. 4), mas do “nascer do alto” (em grego a mesma palavra pode significar “alto” e “novo”): “Se alguém não nasce da água e do Espírito, não entrará no reino de Deus” (v. 5; alusão ao batismo, cf. Rm 6,4). “Da carne nasce carne, do Espírito nasce espírito” (v. 6); em João, há uma oposição entre espírito e carne (6,63), alto e baixo (terra e céu; v. 12), entre Deus e o mundo (cf. 1,13; 3,31; 8,23).

“O vento sopra onde quer e tu podes ouvir o seu ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai”. Em grego como em hebraico, o mesmo vocábulo pode designar o vento, o alento e o espírito. À natureza do Espírito Santo correspondem a mobilidade, a liberdade, o dinamismo. Nisso apoia-se a comparação: Quem nasce desse Espírito/vento move-se livremente num espaço novo.

Nicodemos perguntou: “Como é que isso pode acontecer?” Respondeu-lhe Jesus: “Tu és mestre em Israel, mas não sabes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo, nós falamos daquilo que sabemos e damos testemunho daquilo que temos visto mas vós não aceitais o nosso testemunho (vv. 9-11).

“Tu és mestre em Israel, mas não sabes estas coisas?” (v. 10) A explicação de Jesus complicou as coisas para Nicodemos. Naquele mundo evocado pelas palavras de Jesus, o raciocínio do mestre judeu vacila.

Mas agora Jesus muda para a primeira pessoa no plural: “Nós falamos daquilo que sabemos e damos testemunho daquilo que temos visto, mas vós não aceitais o nosso testemunho” (v. 11).  É a voz da comunidade que professa sua fé (cf. 1Jo 1,1-3), ou Jesus em íntima união com o Pai que não fala de si mesmo, mas diz o que ouve do Pai (cf. 7,17-18), ele é a palavra do Pai (1,1.18, a “testemunha fiel” (Ap 1,5). Pelo uso contínuo da palavra “testemunho” no Evangelho de João, a atividade de Jesus é descrito como processo judicial: Anunciado pelo testemunho do Batista (1,7-8.15.19; 3,26; 5,33; 10,41), Jesus testemunha a verdade (18,37), contra o mundo (7,7), em favor do Pai e de si mesmo como enviado do Pai (3,11.31-32; 5,36; 10,25; cf. Ap 1,5; 3,14; 1Tm 6,13). O Pai dá testemunho do seu Filho (5,31-37; 8,18) e do Espírito (15,26, cf. 14,26; 1Jo 5,6-12; Rm 8,16). Com estes testemunhos se vincula o testemunho dos apóstolos (17,20; 19,35; At 1,8).

Se não acreditais, quando vos falo das coisas da terra, como acreditareis se vos falar das coisas do céu? E ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem (vv. 12-13).

“Quem subiu ao céu e depois desceu?” (Pr 30,4) une a subida ao céu e o controle do vento. A subida ao céu (v. 12), se não se toma como a vertente ascendente da encarnação, adianta a futura glorificação. Coisas terrenas são a mensagem da salvação, coisas celestes são a origem e o itinerário do Filho de Deus, que “desceu” para tornar-se “filho da humanidade”, “Filho do homem” (Dn 7,13-14). Jesus vem dar testemunho e exige ser acreditado (cf. vv. 31-36; leitura da próxima quinta-feira). A exaltação de Jesus “à direita do Pai” (cf. no Credo e Mc 14,62) e sua entronização na glória do Filho do homem revelarão sua origem celeste.

Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna (vv. 14-15).

Olhando para a serpente de bronze que Moisés levantou num estandarte, os mordidos de serpentes se curavam (Nm 21,8s) pela fé (cf. Sb 16,7.10). É imagem de Jesus exaltado na cruz (8,28; 12,32-34). A serpente era símbolo de astúcia (da tentação e do mal em Gn 3), mas também de sabedoria e poder (na coroa do faraó); na medicina, o veneno de cobras, na dosagem certa, pode servir como remédio para anestesia e contra dor (cf. o símbolo da medicina:

O site Dicionário de Símbolos comenta: O símbolo da medicina é representado pelo Bastão de Asclépio (ou Esculápio), o qual consiste em um bastão, varinha ou haste, com uma cobra entrelaçada. Na mitologia grega antiga Asclépio é o deus da cicatrização, ou da própria medicina… Sua capacidade de curar era tão notável que ganhou a reputação de ressuscitar doentes… Isso porque Asclépio sabia dosar perfeitamente as misturas do sangue de Górgona [Górgonas são terríveis monstros que foram transformados em mulheres de cobra por deusa Athena, por ex. Medusa]. Dada a capacidade de trocar de pele, a cobra constante no símbolo representa o renascimento, bem como a fertilidade.

O título “Filho do Homem” (já em 1,51 e 3,13), em Jo, denota uma insistência sobre a humanidade de Jesus, embora sua origem divina, fortemente acentuada (3,13; 6,62), motive os atos nos quais ele antecipa as prerrogativas escatológicas (5,26-29; 6,27.53; 9,35). O Filho do Homem (cf. Dn 7,13; Mt 8,20; 12,32p; 24,30p etc.) deve ser “levantado”, ao mesmo tempo levantado sobre a cruz e reintroduzido na glória do Pai (1,51; 8,28; 12,32-34; 13,31s).

Jo fala com certo eufemismo da cruz e revela um duplo sentido: Jesus será “levantado” na cruz, quer dizer cumprirá o desígnio do Pai (cf. 19,30) e assim será levantado à glória do céu, de onde saiu (cf. v. 13). A cruz é a volta ao Pai (cf. 13,1.3). Com o mesmo verbo “levantar/elevar”, o evangelista fala da cruz igual à ascensão, e associa a haste da serpente que curava, com a cruz que salva. Na cruz revela-se o maior ato de amor: a doação de sua própria vida em favor dos homens (15,13).

Para ser salvo, será preciso “olhar” para o Cristo “levantado/elevado” na cruz (12,32; cf. Nm 21,8; Zc 12,10 citado por Jo 19,37), isto é, “crer” (vv. 16.18; 6,40; 12,45; 14,9) que ele é o Filho único (3,18; Zc 12,10). Ficar-se-á então purificado graças à água do seu lado traspassado (alusão ao batismo, cf. 3,5; Jo 19,34; Zc 13,1). Fonte de salvação para humanidade é Jesus levantado na cruz (12,32).

Na cruz vai se revelar a “vida” nova, “para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (v. 15). Em vez de falar do “Reino de Deus” (exceto nos vv. 3.5) como os outros três evangelistas, o quarto evangelista prefere falar da “vida”, eterna ou plena (cf. 1,4; 3,36; 4,14; 5,24.26; 6,27.33 etc., cf. 8,12; 10,10; 11,25; 14,6; 20,31; cf. Mc 10,17p).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1991) comenta: Deus, Senhor absoluto da vida (Gn 9,4s; Dt 32,39; Sl 36,10), transmitiu seu poder ao Filho (5,21; 10,18; 17,2). O Filho é a vida (11,25; 14,6), ele tem em si a vida e a dá (5,26) aos que nele creem (1,4. 12; 4,14; 5,24; 6,35; 20,31). Essa vida é simbolizada pela água (4,14) e alimentada pela palavra (6,35). Ela é frequentemente qualificada de “eterna”, palavra que denota uma qualidade propriamente divina, pela qual a vida ultrapassa o que é corporal e o tempo, a duração mensurável (cf. Gn 21,3; Is 40,28; Sl 90,2; Sl 90,2; Sb 5,15-16; etc.). Ela é prometida aos que creem (cf. 2 Cor 4,18), mas já lhes é dada (3,36; 5,24; 6,40.68; 1Jo 2,25) e se consumará na ressurreição (6,39-40.54; 11,25-26; cf. também Mt 7,14; 18,8; 19,16).

Como os israelitas olharam com fé para a serpente de bronze e foram curados da picada da cobra, os cristãos olham para o crucifixo com fé e serão salvos da mordida do diabo, que é a morte (cf. Gn 3). A serpente de bronze livrou de uma morte repentina, Jesus crucificado dará a vida eterna. Como era necessário eliminar elementos mágicos da história da serpente (Sb 16,5-14), deve-se evitar uma devoção mágica de imagens de Jesus e dos santos. Não é a imagem que opera milagres, mas a pessoa representada por ela. Mas uma imagem de Jesus na cruz é um auxílio forte para ter fé em Deus que está conosco também nas dificuldades (sofrimento e morte); não nos abandona nunca, mas nos ama até as últimas consequências.

O site da CNBB comenta: A Vida nova, a Vida segundo o Espírito, não é algo que a pessoa humana possa conseguir por si mesma, uma vez que é algo que está muito além da sua própria natureza, portanto algo que foge às suas capacidades. A Vida nova é a vida da graça, que nos é dada pelo próprio Deus, a partir do mistério pascal de Jesus. A condição para a participação nessa Vida em Cristo é a fé; todos os que acreditam que Jesus, crucificado, morto e ressuscitado, é o Filho de Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade que se fez homem para ser o Emanuel, o Deus conosco, recebem dele o dom da Vida em plenitude, o dom da vida eterna.

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