10 de Fevereiro de 2019, Domingo: Mais tarde, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma vez. Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram (v. 6).

Leitura: Is 1-2a.4-8

A 1ª leitura com a vocação de Isaías foi escolhida em vista do evangelho que apresenta a vocação de Pedro que se sente indigno de assumir sua missão. Isaías se assusta em 6,5: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros”; cf. Pedro em Lc 5,8: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!”

Depois das mensagens dos profetas anteriores de Amós (justiça social e dia do julgamento divino) e de Oseias (amor misericordioso de Deus), Isaías acrescenta a sua experiência com o “Santo de Israel” e seu apelo à fé. Com fé na santidade do Senhor (Javé) Deus todo-poderoso, absoluto e transcendente de Israel, Isaías orienta seu ministério profético na corte, exigindo a confiança absoluta em Deus e pureza ne ética.

Em 6,1-13, o profeta nos fala de sua experiência transcendental, numa linguagem de símbolos que convida a vislumbrar o mistério. Pode-se dividir o capítulo em três partes: teofania (vv. 1-5), consagração (vv. 6-7), missão (vv. 8-12). O estilo é dominado por fórmulas ternárias. Visão, audição e participação se espalham por todo o capitulo.

No ano da morte do rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono de grande altura;
o seu manto estendia-se pelo templo
(v. 1).

A data indicada é entre 740 e 736 a.C., dependendo da maneira como se interpreta a difícil cronologia do livro dos Reis (cf. 1,1; 7,1; 2Rs 15,1-7.32; 2Cr 26,21-23). O lugar da visão é o Hekal, a grande sala do templo (20 x 10 x 15 m) que precedia o Debir ou “Santo dos Santos” (10 x 10 x 10 m; cf. 1Rs 6,3-5.17).

O Debir era reservado ao sumo sacerdote, que podia entrar só uma vez por ano (Lv 16,2). Nos templos pagãos, uma estátua da divindade ficava nesse lugar (cf. 1Sm 5,2). Na tenda dos israelitas e no templo de Salomão, porém, a Arca da aliança estava dentro, i. é. um baú móvel com as tábuas da lei (dez mandamentos) e na tampa, as figuras douradas de dois querubins (cf. Ex 25,10-22; 26,33s; 1Rs 6,19.23-28).

“Vi o Senhor, sentado no trono” (cf. v. 5; 1Rs 22,19; Am 9,1; Ez 1,26; Ap 4,2). O que Isaias vê, é o que todo judeu em Jerusalém crê: O templo é o centro da terra e o lugar do “pedestal” (a Arca da aliança: Sl 99,5; 132,7) do trono de Deus, que é lugar onde Deus é manifestado e celebrado como “rei da glória” (Sl 24,7-10).

A Bíblia do Peregrino (p. 1699) comenta esta manifestação divina (teofania): A teofania cria uma sensação de plenitude. A orla ou franja de uma túnica cobre o templo, a fumaça o enche, a glória enche a terra. Enchem e transbordam, porque o Senhor não está circunscrito. O templo é estrado da grandeza supracósmica, a fumaça vela e revela, a terra é templo gigantesco. O Senhor está sentado no seu trono, como rei. A sua corte celeste são os serafins: mantêm-se firmes e cobrem-se respeitosamente. Entoam um canto alternado. Os exércitos são os astros celestes. A teofania, em vez de provocar um terremoto, faz com que o templo estremeça e se encha de fumaça (cf. Ex 19; Sl 104,32).

Havia Serafins de pé a seu lado; cada um tinha seis asas (v. 2a).

Os “Serafins” são uma espécie de anjos. A palavra significa ardente, abrasador. Na sua origem designa uma temível serpente do deserto (Nm 21,6.8; Dt 8,15), representada com asas (Is 14,29; 30,6) e cuja imagem de bronze é honrada no Templo de Jerusalém até o reinado de Ezequias (2Rs 18,4). Seu aspecto ardente talvez faça deles símbolos do relâmpago, quando a manifestação de Deus se assemelha a uma tempestade (como é o caso aqui; cf. v. 4). O termo serve aqui para descrever os seres híbridos (serpentes aladas com rosto e mãos humanas, imagináveis segundo certas representações conhecidas na iconografia oriental antiga).

Nossa liturgia de hoje omitiu o v. 2b que especifica que com duas asas os serafinas “cobrem o rosto”, por medo de verem a Javé (cf. Ex 3,6; 33,20; 1Rs 19,13), com duas “cobrem os pés (eufemismo designado provavelmente o sexo; cf. Ex 4,25) e, com duas, eles podiam voar (v. 2).

Aqui, os serafins são figuras humanas, munidas, porém, de seis asas, que lembram os seres misteriosos que conduzem o carro de Javé em Ez 1 e que Ez 10 chama “querubins”, como as figuras análogas fixadas na Arca da aliança (Ex 25,18-22; 1Rs 6,23-30). A tradição posterior deu o nome de “serafins” e de “querubins” a duas categorias de anjos.

Eles exclamavam uns para os outros: “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; toda a terra está repleta de sua glória” (v. 3).

“Santo, santo, santo”; sem dúvida, trata-se de uma aclamação já utilizada no culto da época de Is (cf. a aclamação “Ele é Santo”, três vezes em Sl 99,3.5.9; cf. Ap 4,8), pois encontram-se similares no Egito. A santidade de Deus é um tema central da pregação de Isaías, que chama muitas vezes Javé “o Santo de Israel” (1,4; 5,19.24; 10,17.20; 12,6; 17,7; 29,19; 30,11.15; 31,1; 37,23; 41,14.16.20, etc.). Esta santidade de Deus exige do homem que ele mesmo seja santificado, quer dizer, separado do profano (Lv 17-26), limpo da impureza do pecado (aqui vv. 5-7) e participante da “justiça” de Deus (cf. 1,26; 5,16). Esta teologia da santidade reaparecerá durante o exílio em Ezequiel, em Is 40-55 e em certas tradições sacerdotais conservadas em Jerusalém (cf. a lei da santidade em Lv 17-26).

O nome “Senhor dos exércitos” (hebr. Yhwh [Javé] Sebaot, muitas vezes traduzido por “Senhor Todo-poderoso”) se refere a seu poder sobre os exércitos de Israel ou sobre os exércitos celestes, os astros, os anjos, ou sobre todas as forças cósmicas (cf. Gn 2,1). O título aparece pela primeira vez em 1Sm 1,3.11, está ligado ao culto da Arca da Aliança em Silo (cf. a expressão “Senhor dos exércitos entronizado entre os querubins” em 1Sm 4,4), e entra com ela em Jerusalém (no tempo de Davi: 2Sm 6,2.18; 7,8.27). É retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel), pelos profetas pós-exílicos (principalmente Zacarias) e nos Salmos.

“Toda a terra está repleta de sua glória”, é outra fórmula litúrgica (cf. Nm 14,21), utilizada nos Salmos (Sl 72,19; cf. 57,6.12; 108,6), como o seu equivalente egípcio nos hinos (“encheste toda a terra com a tua beleza”).

Ao clamor dessas vozes, começaram a tremer as portas em seus gonzos e o templo encheu-se de fumaça (v. 4).

O “tremer” dos lugares, as “vozes” (evocando o trovão) e a “fumaça” lembram as grandes teofanias (manifestações de Deus) do Antigo Testamento (cf. Ex 19,16-19; 20,18; Is 4,5; Sl 18,8-14; 29; 68,9.34; 77,18-19; Jó 37,2-4). A fumaça é sinal da presença de Deus evocando a que sobe do altar do incenso (Lv 1,2; 24,7), mas também a nuvem no deserto e que enche o Templo em 1Rs 8,10-12; Ez 10,4; cf. a tenda em Ex 30,34-36; 40,34s).

Disse eu então: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros, mas eu vi com meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos” Nisto, um dos serafins voou para mim,
tendo na mão uma brasa, que retirara do altar com uma tenaz, e tocou minha boca, dizendo: “Assim que isto tocou teus lábios, desapareceu tua culpa, e teu pecado está perdoado”
(vv. 5-7).

Nos relatos de visões ou vocações, é comum expressar a limitação ou inquietação (cf. Gn 15,2s; Ex 3,11.13; 4,1.10; Jz 6,15; Jr 1,6; Lc 1,18.34; 5,8) que geralmente é respondido com uma palavra (“Eu estarei contigo”, etc.) ou um sinal de confirmação.

“Estou perdido”; outra tradução possível: “Estou reduzido ao silêncio”. Sabemos que não se pode ver a face de Deus sem morrer (Ex 3,6; 33,20; Jz 6,22; 13,22; 1Rs 19,13; cf. Dt 5,26; 18,16, onde se trata apenas de ouvir a voz de Deus). O profeta sente a sua pequenez, incapaz de abranger em vida a grandeza do Senhor; e sente mais ainda sua limitação, sua mancha e pecado, no qual é solidário com todo o povo. Antes do exílio, porém, a “santidade” não está ligada tanto à ética ou moral, mas ao culto: é uma esfera sagrada e superior que baixa em lugares, tempos, pessoas e textos sagrados. Seu contrário é a “impureza” (sujeira, mas também a esfera da doença e da morte). Esta impureza é causada pelo pecado e pela conduta antissocial. Isaías está afetado pelo pecado do seu povo, mas Deus está inclinado a perdoar, conforme a religião do templo (cf. Sl 65,3s).

Os “lábios” são os órgãos da pregação profética; precisam ser purificados com uma “brasa”, ou talvez uma pedra ardente semelhante àquelas sobre as quais se cozinha o pão (1Rs 19,6), poderia ter se encontrado sobre o altar do incenso. O fogo é símbolo divino que ilumina e purifica (cf. Gn 15,17; Ex 3,2; 13,21; 19,18; 1Rs 18,24.38s; 2Rs 2,11; Dn 7,9s; At 2,3 etc.). A purificação da boca confirma a vocação do profeta e prepara a sua missão (cf. 1,9; Ez 2,8; Dn 10,16; Ap 8,3-5). A purificação é como rito eficaz que apaga os pecados.

“Teu pecado está perdoado” lit. “apagado”; esta palavra que muitas vezes se traduz por expiado ou perdoado, tem sentido técnico que se refere à absolvição do pecado (cf. Ex 29,36-37; Is 22,14; Jr 18,23). A palavra kippur (cf. Yom Kippur, o dia da expiação e reconciliação em Lv 16) tem a mesma raiz hebraica.

Ouvi a voz do Senhor que dizia: “Quem enviarei? Quem irá por nós?” Eu respondi: “Aqui estou! Envia-me” (v. 8).

A prontidão de Isaias lembra a fé de Abraão (Gn 12,1-4; cf. as respostas de Samuel em 1Sm 3 e de Maria em Lc 1,38). Numa visão semelhante de um conselho celeste (1Rs 22,20), não se fala de uma vocação de um profeta, é o espírito profético se dispôs a executar a vontade de Javé. A atividade profética é missão encomendada por Deus. Isaías toma a pergunta como dirigida a si como desafio e convite, e se oferece sem resistência, não como Moisés (Ex 4,10) e Jeremias (Jr 1,6).

Nada em nosso capítulo indica que se trata de uma vocação pela primeira vez. Esta observação pode confirmar a posição deste relato no livro de Is: não é uma vocação no início da atividade profética como nos outros livros proféticos (cf. Jr 1; Ez 1 etc.), mas uma visão que aprofunda a experiência de Isaías para poder anunciar coisas mais críticas e piores do que suas profecias de cap. 2-5.

Na sua primeira fase (cap. 2-5), Is criticou a injustiça social (como Amós) ainda durante o reinado de Ozias (781-740 a.C). Mas Is há de reconhecer que o “coração” (o pensar, não apenas o sentir) do seu povo está endurecido (cf. vv. 9s) como o dos pagãos (cf. o farão em Ex 4,12; 7,3 etc.). A visão de 6,1-13 está bem colocada antes do “Livro do Emanuel” (Is 7-9) que agrupa os oráculos relativos à guerra siro-efraimita, no qual o rei Acaz (736-716) se envolve e se cumprem as ameaças dos vv. 11-13 desta visão.

Nossa leitura de hoje não nos transmite mais as palavras com as quais Javé confia ao profeta uma missão paradoxal: “Escutais com os ouvidos, mas não compreendereis, …” (vv. 9-13; citados várias vezes no NT: Mt 13,13-15p; Jo 12,40; At 28,26-27).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1368) comenta: A pregação do profeta embaterá na incompreensão de seus ouvintes. Deus não quer essa incompreensão, ele a prevê, e ela serve aos seus desígnios. Ela descobre o pecado do coração e precipita o julgamento.

A Bíblia do Peregrino (p. 1699) comenta a missão “impossível” do profeta: O seu destino é o fracasso, o seu êxito será piorar a situação. Pregando a conversão, provocará o endurecimento e tornará inevitável o castigo, pois o povo não poderá alegar ignorância. Quando a desgraça acontecer, a palavra, aparentemente ineficaz, será recordada; e à sua luz a tribulação será compreendida e aceita como castigo. Em última instância, essa palavra conduzirá à conversão.

2ª leitura: 1Cor 15,1-11

Hoje e nos próximos domingos ouvimos trechos do cap. 15 de 1Cor, uma exposição fundamental do apóstolo Paulo sobre a ressurreição em três partes: a ressurreição de Cristo, objeto da profissão de fé das testemunhas (vv. 1-11); a ressurreição dos cristãos correlativa à de Cristo (vv. 12-34); o modo da ressurreição (vv. 35-58). A leitura de hoje nos apresenta uma profissão de fé na ressurreição de Cristo destacando os apóstolos como testemunhas. De fato, nossa fé católica é “apostólica”, ou seja, se baseia no testemunho dos apóstolos.

Alguns cristãos da cidade grega de Corinto rejeitavam a ressurreição dos mortos (cf. 15,12). Os gregos a consideravam como concepção grosseira (At 17,32), mas os judeus a tinham aos poucos pressentido (cf. Sl 16,10; Jó 19,25; Ez 37,10) e, mais tarde, explicitamente professado (Dn 12,2s; 2Mc 7,9; exceto os saduceus, cf. Mc 12,18-27; At 23,6-8). Para combater o erro dos coríntios, Paulo parte da afirmação fundamental da pregação evangélica: o ministério pascal de Cristo morto e ressuscitado (vv. 3-4; cf. Rm 1,4; Gl 1,2-4; 1Ts 1,10, etc.) que ele desenvolve enumerando várias aparições do ressuscitado (vv. 5-11; cf. At 1,8).

Irmãos, quero lembrar-vos o evangelho que vos preguei e que recebestes, e no qual estais firmes. Por ele sois salvos, se o estais guardando tal qual ele vos foi pregado por mim. De outro modo, teríeis abraçado a fé em vão. Com efeito, transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber: (vv. 1-3a).

A introdução é solene porque dá lugar ao tema fundamental. Paulo lembra seu primeiro anúncio, a “boa notícia” (= evangelho) que o apóstolo pregou (seu kerigma) aos membros da comunidade; “aceitaram (receberam, abraçaram)” com “fé”, tornando-se “fiéis (firmes)”. O evangelho é “boa notícia”, porque “salva” quem a aceita e “guarda” fielmente (não a despreza nem falsifica, cf. Gl 2,6-9). Não é uma coisa mágica, mas exige a colaboração humana. Paulo também “recebeu” isso: do próprio Jesus como revelação (Gl 1,12) e de outros apóstolos antes dele (Gl 1,18s) como fórmula de fé que ele transmite fielmente. Receber-transmitir é o esquema de uma cadeia de “tradição” (termos tirados do vocabulário técnico da tradição rabínica, cf. 11,23).

A palavra viva do evangelho é transmitida, recebida e guardada (depois de Paulo, esta boa notícia será ainda escrita em forma literária de “evangelhos”, primeiramente por Marcos cerca de 70 d.C.). Mas o “evangelho” é principalmente anunciado (vv. 1.2), proclamado, pregado (v. 11, o kerigma; cf. Mt 4,23, etc.) como objeto de fé (vv. 2.11; cf. Mc 1,15) e caminho da salvação (v. 2; cf. At 11,14; 16,17). Com isso, o caráter salutar da morte de Cristo faz parte da proclamação evangélica anterior a Paulo (cf. Rm 6,3).

Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras; e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze (vv. 3b-5).

É um texto fácil de guardar e recitar em comum. Suas expressões (vv. 3b-4), já fixadas em sua formulação, constituem o germe das futuras profissões de fé (“Credo”; cf. At 13,29-31).

A Bíblia do Peregrino (p. 2762s) questiona: É o germe de elaborações últeriores? É um resumo de muitos ensinamentos? (Faz nos lembrar a profissão de Dt 26,5-10, que outrora se acreditou ser o credo primitivo e germinal dos israelitas e mais tarde se viu que era uma síntese muito madura e decantada).

A profissão de fé é composta de frases breves, bem tratadas em unidade (não mera sucessão). Baseando-se na fórmula confessional do kerigma (“morreu – ressuscitou”, cf. 1Ts 4,14a; At 2,23s.29.32; 3,15; 4,10; 5,30s etc.) desenvolve dois fatos correlativos: morte e ressurreição, ambos “segundo a Escritura” (cf. Lc 24,25-27.45-48; At 13,29-31); morreu não por própria culpa, mas para expiar os “nossos pecados” (e substitui as precedentes expiações; cf. 11,24s; Is 53,12; Mt 26,28; Rm 3,25; Hb 7-10). A sepultura atesta a morte (cf. At 2,29; Paulo não menciona o túmulo vazio), as aparições atestam a vida (ressurreição). A morte é redentora, livra dos pecados porque desemboca na ressurreição; do contrário seria um fracasso incapaz de livrar do pecado (v. 17; cf. Hb 10,11s).

O “terceiro dia” é o tempo de graça e ajuda divina (Os 6,2). Aqui indica também a certeza de que Jesus estava morto, não apenas cataléptico (cf. Jo 11,39). Cristo “ressuscitou” (lit. “foi ressuscitado”, passivo divino: é ação de Deus) e “apareceu” (cf. Gn 12,7; ou: “foi visto”, passivo divino, cf. 9,1). Cefas (pedra, rocha) é o nome hebraico de Pedro. Ele mantém a primazia (cf. Lc 24,12.34; Jo 21), também nas aparições. Os “Doze” são o conjunto do colégio dos apóstolos escolhidos por Jesus (embora falte um, Judas; cf. At 1,15-26).

Mais tarde, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma vez. Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram (v. 6).

Ao Credo de vv. 3b-5, provavelmente o próprio Paulo acrescenta mais testemunhas de outras tradições antigas: os “quinhentos irmãos de uma vez”, não mencionados em outros relatos da ressurreição (gostaríamos saber mais sobre isso). Alguns exegetas veem aqui o cerne histórico de Pentecostes (At 2,1-4), mas pode estar ligado ao ministério inicial de Jesus na região da Galileia e relacionar-se com a tradição atestada em Mc 14,28p.

“A maioria ainda vive”, Paulo quer dizer: muitos podem hoje ainda testemunhar o que viram (a fé na ressurreição de cristo repousa sobre um testemunho seguro). “Alguns já morreram”, lit. “adormeceram”: mesma expressão nos vv. 18,20.51 (cf. 1Ts 4,13).

Depois, apareceu a Tiago e, depois, apareceu aos apóstolos todos juntos (v. 7).

Tiago aqui não é o filho de Zebedeu nem o de Alfeu (Mc 3,17s), mas um parente da família de Jesus, o “irmão do Senhor” (cf. Mc 6,3p) que sucede a Pedro em Jerusalém como líder dos judeu-cristãos (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-26; Gl 1,19; 2,9.12; Tg). “Todos os apóstolos”, os apóstolos assim entendidos constituem um grupo mais numeroso do que os Doze do v. 5; são os primeiros missionários oficiais (cf. Rm 16,7 e Barnabé e Paulo em At 13,1-3; 14,3-5.14).

Nesta série, Paulo não menciona as mulheres dos relatos evangélicos (Mc 16,1-8p; Jo 20,1s.11-18), talvez o motivo da omissão seja o fato de que as mulheres não eram reconhecidas como testemunhas qualificadas na época (cf. Lc 24,11).

Por último, apareceu também a mim, como a um abortivo. Na verdade, eu sou o menor dos apóstolos, nem mereço o nome de apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus (vv. 8-9).

Frente a Lucas, que encerra essa etapa de aparições com a ascensão, Paulo a alonga até a visão de Damasco: e “a mim”. Paulo acrescenta-se, em pé de igualdade, na lista das demais testemunhas, embora no último lugar da fila (Ef 3,8) e encerrando a série (sua conduta precedente reforça seu testemunho: do perseguidor ao apóstolo, cf. vv. 9s); “como a um abortivo” alude ao caráter anormal, violento, “cirúrgico” da vocação de Paulo. Talvez Paulo tenha retomado aqui um palavrão aplicado a ele pelos adversários (cf. “eunuco” em Mt 19,12). Em Lc 24,51 e At 1,9s, é a ascensão do Senhor que encerra a série de aparições; seu autor, Lucas, não chama mais Paulo de apóstolo (limitando o título aos Doze, cf. At 1,21s; exceto em At 13,1-3; 14,4.14), mas de testemunha escolhida (cf. At 9,15 etc.).

O próprio Paulo, porém, não faz diferença alguma entre a aparição (melhor: visão e audição) na estrada de Damasco e nas aparições de Jesus como seu corpo ressuscitado até a ascensão. Para ele, o encontro com Jesus (elevado no céu) em Damasco foi o fundamento da sua fé e do seu apostolado (cf. At 9; 22; 26; Gl 1,1.15s; 1Cor 1,1; 9,1; Fl 3,5-11) que ele precisava afirmar constantemente contra adversários que negaram de ele ser um “apóstolo” (cf. 2Cor 10-12).

É pela graça de Deus que eu sou o que sou. Sua graça para comigo não foi estéril: a prova é que tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos – não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo. É isso, em resumo, o que eu e eles temos pregado e é isso o que crestes (vv. 10-11).

Paulo falou de aborto não porque é prematuro, mas pela falta de vida. Em contraste, apresenta a vitalidade do seu apostolado, pela graça de Deus. Ele aplica a si o critério de discernimento dos espíritos: “Pelos frutos os reconhecerão” (Mt 7,17-20p). Seu trabalho apostólico “prova” que ele é um apóstolo verdadeiro, não um impostor: “tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos – não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo.”

O que soa como autoelogio, foi provocado pelos adversários que questionam o que ele é, “apóstolo” (cf. 2Cor 10-12). Mas Paulo sabe por experiência que o dom de Deus é gratuito e que o homem colabora com ele (2Cor 11). Não se aprofunda aqui o problema de coordenar a ação divina com a liberdade humana: isso caberá a teólogos posteriores.

“O que eu e eles temos pregado e é isso o que crestes” (v. 11). A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2225) comenta: A afirmação preciosa do ponto de vista ecumênico: todas as testemunhas de Cristo ressuscitado proclamam a mesma mensagem; e todos os fiéis professam a mesma fé. Por isso é impossível não procurar esta unanimidade quando perdida.

 

Evangelho: Lc 5,1-11

No Evangelho de Lucas, Jesus agiu sozinho até agora, no território da Galileia. Daí para frente vai alargar seu campo de evangelização e rodear-se de colaboradores. Nesta vocação de Pedro, Lc não se contenta em contar sucintamente chamada e resposta (como se lê no relato mais antigo que serviu como fonte: Mc 1,16-20), mas narra de modo que apareça como projeção antecipada do que será a missão apostólica da Igreja.

(Naquele tempo), Jesus estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor para ouvir a palavra de Deus. Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. Subindo numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem. Depois sentou-se e, da barca, ensinava as multidões (vv. 1-3).

No texto original está escrito “um certo dia”, que a liturgia substituiu pelo costumeiro “naquele tempo”. Cafarnaum é uma cidade na beira do “lago de Genesaré”, chamado também mar da Galileia ou mar de Tiberíades (Mc 1,20 etc.; Jo 6,1; 21,1). O primeiro chamado tem como cenário as multidões; no entanto, Jesus se afasta para expor-lhes “a palavra de Deus”, fórmula que a liturgia popularizou e que designa a mensagem evangélica. Conforme o costume dos mestres da época, Jesus ensina sentado (cf. Mt 5,1s). O pescador oferece sua barca como plataforma ou tribuna para o mestre (Mc 4,1p). O ofício empírico de pescador será o objeto do prodígio e a imagem do novo ofício, “pescador de homens” (v. 10; em outro sentido Jr 16,16 e Hab 1,14).

Quando acabou de falar, disse a Simão: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”. Simão respondeu: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”. Assim fizeram, e apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. Então fizeram sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajudá-los. Eles vieram, e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem (vv. 4-7).

Pedro experimenta seu fracasso humano e seu êxito ao obedecer a Jesus; suas palavras, entre reticentes e confiantes, expressam estima e respeito: “em atenção à tua palavra (já que o dizes)”. Efetivamente, a ordem de Jesus compensa fadigas e transborda em expectativas.

Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!” É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer. Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados. (vv. 8-10a).

Em quase todas as vocações há uma objeção. Aqui Pedro tem de descobrir sua condição pecadora revelada pela presença e atuação de Jesus, o Santo (cf. 1,35; 4,34p; Jo 6,69; At 2,27; 3,14; 4,27.30; Ap 3,7), e como pano de fundo do chamado, de modo semelhante a Isaías, “eu, homem de lábios impuros” (Is 6,5) e como o salmista confessa: “Puseste nossas culpas diante de ti, nossos segredos à luz do teu olhar” (Sl 90,8).

Como pecador, sente que Jesus deve afastar-se do seu contato; mas o chamado pede mais, como que uma reconciliação (cf. depois da ressurreição em Jo 21). Simão “cai aos pés” de Jesus (v. 8), e Lc já escreve o nome oficial de “Simão Pedro”! Este apelido será imposto só em 6,14 (cf. Mc 3,16; Mt 16,18; Jo 1,42; 1Cor 15,5).

Ao final da cena se acrescentam os sócios do outro barco (v. 7), os dois irmãos Thiago e João (6,14; 9,54; Mc 1,19s; 3,17; 10,35-41; At 1,13; 12,2) que formarão o trio dos apóstolos mais íntimos (cf. 6,14; 8,51p; 9,28; Mc 13,3; 14,33; Gl 2,9; cf. Pedro e João em 22,8; At 3,1ss; 4,13ss; 8,14). O irmão de Pedro, André, não é nomeado, porque está no barco de Simão (cf. os plurais em vv. 5.6.7).

Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! De hoje em diante tu serás pescador de homens.” Então levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus (vv. 10b-11).

“Não tenhas medo”, esta frase faz parte de muitas vocações e encontros com o divino (cf. Gn 15,1; 21,17; 26,24; 46,3; Jz 6,23; Jr 1,8.17; Mc 6,50p; 16,6p; Mt 1,20; Lc 1,13.30; 2,10; 5,10 etc.).

Pescar é imagem de apostolado, como será depois o pastoreio; o pescador vive em mais contato com a natureza, está mais exposto ao acaso dos elementos e à sorte do trabalho. A abundância da pesca pode simbolizar para a comunidade a expansão da Igreja (para todo tipo de peixes, ou seja, para todos os povos; cf. Jo 21,11; Mt 28,19). Simão é o primeiro apóstolo (cf. 6,14p; At 1,13 etc.), chamado a ser “pescador de homens” (em outro sentido Jr 16,16 e Hab 1,14). Pedro e seus sócios respondem ao chamado com o seguimento imediato e incondicional (18,28; cf. 5,28; 9,57-61). Hoje, somos nós os chamados a lançar as redes em águas mais profundas e fazer nossa experiência com Jesus juntos com outros companheiros no dia a dia.

O site da CNBB comenta: Um dos elementos mais importantes do cristianismo é a vida comunitária. Para quem é cristão, não existe lugar para o individualismo. Jesus nos mostra isso quando não realiza sozinho a sua missão, mas chama os apóstolos para participarem ativamente dela. Para o apostolado, Jesus não chama os melhores do ponto de vista da economia, da sociedade ou mesmo os mais santos; Jesus chama a todos, sem fazer qualquer tipo de distinção entre as pessoas. Assim, nos mostra que na atuação pastoral, devemos nos preocupar não simplesmente em fazer o trabalho, mas sim em envolver todas as pessoas, para que a atuação pastoral seja comunitária e revele este importante valor do Evangelho.

 

 

 

 

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