10 de março de 2017 – Sexta-feira, Quaresma 1ª semana

 

Leitura: Ez 18,21-28

Os antigos textos do AT consideravam o indivíduo integrado à família, à tribo, mais tarde à nação. Parecia normal que uma cidade, uma nação, fosse castigada em bloco, os justos com os pecadores, e que a sorte dos filhos correspondesse à conduta de seus pais (Ez 20,5; Dt 5,9; 7,10; cf. Jr 31,29 = Ez 18,2).

O texto de hoje sobre a responsabilidade individual (cf. 14,12-23 e o cap. 33) é um progresso importante na história da revelação preparado e provocado pela historia. Ezequiel escreve no exílio da Babilônia (séc. VI a.C.; cf. 1,1-3). A situação amarga dos desterrados é consequência invencível do passado – diz a teologia tradicional. Não os pecados desta geração, que não mereceriam tamanho castigo, mas os pecados acumulados por muitos reis corruptos do passado, por ex.: Manassés que reinava em Jerusalém entre 699 e 643 a.C., revogou a reforma religiosa do seu pai Ezequias e promoveu o culto a outros deuses (Baal, Asera, astros) e os sacrifícios de crianças (inclusive seus próprios filhos, cf. 2Rs 21,1-18; em 2Cr 31,11-20 narra-se sua captura e conversão).

A Bíblia do Peregrino (p. 2950) comenta: Chegou-se a uma plenitude de pecado; crimes seculares encheram e fizeram transbordar a medida da misericórdia divina; esgotada a misericórdia, sua ira derramou-se sobre… a geração à qual coube viver no fim do processo; que fatalidade! É justo? Se Deus leva em conta os delitos paternos, por que não leva em conta a bondade de um Josias, de um Ezequias e de outros? “Por amor a Abraão, por amor a Davi”, diz a tradição.

A aliança com Deus foi rompida. O templo em Jerusalém destruído. Agora, no exílio, falta o culto que permitia reconciliar-se periodicamente com o Senhor. Longe da sua terra e da cidade santa, não há futuro para esta geração de cativos, vítimas de um passado do qual não são imediatamente responsáveis. Sem futuro, o que lhes resta? Parece inútil dirigir-se a Deus com salmos apaixonados de súplica: “Por quê? Até quando?” É melhor a pequena vingança de um refrão: “os pais comeram uva verdes e os dentes dos filhos ficaram irritados” (v. 2; Jr 31-29s), cf. Lm 5,7: “Nossos pais pecaram: já não existem; nós é que carregamos as suas faltas”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2050s) comenta:

O profeta enfrenta o refrão e a atitude de despeito e fatalismo de onde brota esse refrão… Da parte de Deus, traz uma mensagem positiva: é possível romper a corrente do passado, é necessário comprometer-se para refazer o futuro.

            Junto à responsabilidade coletiva, que une solidariamente os membros de uma comunidade entre si e com os antepassados, e sem anulá-la, anuncia a responsabilidade do indivíduo, senhor do seu destino por vontade de Deus. Destino de vida e morte para os judeus (Dt 30,15) e para todos os homens (Eclo 15,11-17). Precisamente na nova situação, a responsabilidade individual se fará mais consciente e mais bem entendida: não vale jogar a culpa nos pais e avós, e menos ainda ironizar a justiça divina. Ao mesmo tempo, a responsabilidade individual é exigência para começar a ação e perseverar nela. O exílio removeu a confiança mecânica no templo e outras instituições, e o profeta remove a confiança preguiçosa em méritos adquiridos.

A mensagem de Ezequiel é esperançosa. Se o Senhor castigou “nos filhos, netos e bisnetos” (Dt 5,9s), “a piedade se prolonga por mil gerações”, abraçando o presente e o futuro.

Se o ímpio se arrepender de todos os pecados cometidos, e guardar todas as minhas leis, e praticar o direito e a justiça, viverá com certeza e não morrerá. Nenhum dos pecados que cometeu será lembrado contra ele. Viverá por causa da justiça que praticou (vv. 21-22).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1619) comenta: A pregação dos profetas tinha que dar ênfase ao individual e aplicar um corretivo aos velhos princípios. Embora Jeremias apenas entreveja no futuro a superação da solidariedade das gerações na culpa e na sanção (Jr 31,29-30), já o Deuteronômio protesta contra o castigo dos filhos por causa dos pais (Dt 24,16; cf. 2 Rs 14,6).

Da sucessão das gerações (pais e filhos; cf. vv. 2-20), Ez passa à sucessão de duas etapas na vida de dois indivíduos: o justo que se torna ímpio (perverso), o ímpio que se torna justo. Embora condicione, o passado não determina, o homem não fica preso nela, é possível superá-lo.

Não somente o homem não é esmagado pelos crimes dos seus antepassados, como também pode subtrair-se ao peso do seu próprio passado. O “arrependimento” dos seus pecados, esse pesar que se refere ao passado e resulta na “conversão”, não coletiva, mas estritamente pessoal, é valorizado. A atitude presente da pessoa é a única a determinar o julgamento de Deus (cf. o apelo à conversão nos vv. 30-32 e no NT: João Batista em Mt 3,2-12; Jesus em Mt 4,17p; Lc 5,32; 13,3.5; os discípulos em Mc 6,12; Lc 24,27 e Paulo em At 20,21; 26,20, etc.).

Será que eu tenho prazer na morte do ímpio? – oráculo do Senhor Deus. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva? (v. 23).

Neste v. (repetido no final do cap. em v. 32) temos o ponto alto do capítulo, uma mensagem de esperança e exigência (cf. 33,11; Sb 1,13; Lc 15; Jo 10,10; 1Tm 2,4-6; 2Pd 3,9).

Mas, se o justo se desviar de sua justiça e praticar o mal, imitando todas as práticas detestáveis feitas pelo ímpio, poderá fazer isso e viver? Da justiça que ele praticou, nada mais será lembrado. Por causa da infidelidade e do pecado que cometeu, por causa disso morrerá (v. 24).

Parece uma simetria entre os vv. 22 e 24, mas não há porque o justo tornado pecador pode converter-se de novo. A simetria fica quebrada por que a vontade de Deus é a vida, segundo o princípio fundamental proposto no v. 23.

Mas vós andais dizendo: “A conduta do Senhor não é correta”. Ouvi, vós da casa de Israel: É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta? (v. 25).

A objeção é dos resignados ao fatalismo ou dos que temem a exigência de conversão (cf. v. 29; 33,17.20). Objeção e resposta compõem uma espécie de pleito ou debate com Deus. Na conduta injusta dos próprios desterrados se inclui a sua maneira de julgar a justiça de Deus (cf. v. 2). Tudo desemboca numa exortação final, palavra de Deus que, ao convidar, torna possível o novo começo (v. 31: “um coração novo e um espírito novo”). Quatro vezes Deus interpela a “casa de Israel” (vv. 25.29.30.31); já não a chama “casa rebelde” (2,3-8 etc.).

Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá (vv. 26-28).

O profeta repete o princípio da responsabilidade individual (cf. 33,12-20). A Bíblia de Jerusalém (p. 1620) comenta:

A salvação de um homem não depende dos seus antepassados nem dos seus próximos, nem sequer do seu próprio passado. Só as disposições atuais do coração entram em linha de conta diante de Iahweh. Tais afirmações radicalmente individualistas serão, por sua vez, corrigidas pelo princípio de solidariedade expresso no 4º cântico do Servo (Is 53,13-53,12; cf. Is 42,1). Por outro lado, aplicadas com rigor numa perspectiva puramente temporal, elas deviam ser contraditadas pela experiência cotidiana (cf. Jó), e essa contradição chama um novo progresso que será traduzido pela revelação de uma retribuição além-túmulo… Enfim, o NT (em especial São Paulo), ao fundamentar a esperança do cristão na solidariedade pela fé com o Cristo ressuscitado, satisfará ao mesmo tempo a reivindicação individualista de Ezequiel e a lei da solidariedade, no pecado e na redenção, da humanidade criada e salva por Deus.

 

Evangelho: Mt 5,20-26

No sermão da montanha (caps. 5-7), Mt apresenta Jesus como novo Moisés que transmite a nova lei na “montanha” (vv. 1-2; cf. Ex 19 etc.). Ele não veio para abolir a lei, mas para aperfeiçoar seu cumprimento (vv. 16-19).

Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus (v. 20).

A lei não deve ser observada simplesmente por ser lei, mas por aquilo que ela realiza de justiça a fim de que o ser humano tenha vida e relações mais fraternas. A “justiça maior” (cf. Fl 3,9: “que vem e Deus apoiada na fé”) não será um preceito exterior, será a prática do amor e da misericórdia, como Jesus resume toda Lei de Moisés na regra de ouro e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (cf. 7,12 no evangelho de ontem e 22,34-40p; cf. Jo 13,34: Rm 13,8-10; Gl 5,14; Cl 3,14).

Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: “Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal”. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: “patife!” será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de “tolo” será condenado ao fogo do inferno (vv. 21-22).

Em 5,21-48, Mt apresenta seis exemplos em forma de antítese, para mostrar como é que uma lei deve ser entendida. Nas sinagogas se transmitia o ensino oralmente (“vos ouvistes”) ao povo simples. Na forma repetida “Vós ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44), Jesus se apresenta como autoridade soberana, maior que Moisés.

A primeira antítese compreende duas partes: sobre o homicídio e sobre a reconciliação. O mandamento de “não matar” (lit. “não assassinar”; Ex 20,13; Dt 5,17; Lv 24,17) radicaliza-se na atitude interior (“cólera”, cf. Lv 19,17-18; Tg 1,19-20; Ef 4,26) de onde brota o homicídio (Gn 4,1-7; 37,4.8) e se estende a ofensas menores, por ex. palavrões.

“Patife” (imbecil, cabeça vazia, inútil) e “tolo” (idiota, louco; insensato; pode significar “ímpio” para judeus) são insultos graves que negam ao outro a capacidade de compreender. São expressões de desprezo, rancor, inveja e podem conduzir a ações graves. “Condenado pelo tribunal” (vv. 21-22) faz alusão aos tribunais disseminados pelo país, em contraposição ao grande sinédrio (conselho, tribunal supremo) que tinha sua sede em Jerusalém. O tribunal será a primeira instância, a segunda o conselho nacional, ao final o próprio Deus e o castigo, “o fogo do inferno” (v. 22; cf. 3,12), localizado na Geena (cf. Is 66,15.16.24, lugar associado no AT a sacrifícios humanos de crianças, Jr 7,31).

Parece-nos um absurdo ser condenado ao inferno, só por ofender um irmão com uma única palavra. Mas Jesus quer levar ao absurdo a mania legalista dos fariseus de julgar (cf. 7,1-5) e quer chamar atenção sobre o fato de que o pecado começa já no próprio coração, e não só quando se cometer um homicídio: “Confesso a Deus todo-poderoso que pequei por pensamentos e palavras, atos e omissões,…” Sentimentos involuntários, porém, não são pecados, mas depende como lidamos com eles; devemos transformar os negativos em positivos, vencer o mal pelo bem (amar até os inimigos, cf. 5,43-48).

Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e ali te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta (vv. 23-24).

O preceito negativo “não matar” estende-se a exigência positiva da reconciliação (vv. 23-26; Lc 12,58-59; cf. Mc 11,25), com ênfase em relação com o culto. É por isso que damos um “sinal de paz e reconciliação” e de “comunhão fraterna” na missa, antes de aproximarmo-nos do altar para receber a sagrada Hóstia e ter comunhão com Cristo. Mas é um gesto simbólico que não deve interromper o clima de oração na missa.

Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo (vv. 25-26).

Mesmo ofendido e inocente, o discípulo de Jesus deve ter a coragem de dar o primeiro passo para reconciliação. Caso se sinta culpado, procure urgentemente a reconciliar-se, porque sobre a sua culpa pesa um julgamento. O ensinamento de Jesus poderia citar textos afins do AT (como Is 1,10-20; 58,1-12; Jr 7; Eclo 34,18-22).

O site da CNBB resume: Todas as pessoas costumam falar em justiça, mas para a maioria delas o fundamento dessa justiça são princípios e valores humanos, principalmente o que está escrito nas leis. Para nós cristãos, esse critério não é suficiente para entendermos verdadeiramente o que é justiça. Não é suficiente em primeiro lugar porque nem tudo o que é legal, é justo ou moral, como por exemplo a legalização do divórcio, do aborto ou da eutanásia. Também devemos levar em consideração que todas as pessoas, embora sejam seres naturais, possuem um dom de Deus que faz delas superiores à natureza, participantes da vida divina, e como Deus é amor, o amor é, para quem crê, o único e verdadeiro critério da justiça.

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