10 de Setembro de 2020, Quinta-feira: Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam (vv. 27b-28; cf. Mt 5,44).

23ª Semana do Tempo Comum 

Leitura:1Cor 8,1b-7.11-13

Na leitura de hoje, outro problema é proposto pelos coríntios, e uma nova solução é apresentada pelo apóstolo. Trata-se da vivência cristã no meio do mundo pagão. Na época, havia inúmeros templos para as muitas divindades na Grécia (cf. At 17,16.22s). A carne dos animais ali sacrificados foi considerada um alimento consagrado pelos deuses. No v. 1ª, Paulo se põe a responder a pergunta “no tocante ás carnes sacrificadas aos ídolos todos”. Trata-se das sobras não-utilizadas para fins cultuais e que eram vendidas no mercado (10,25) ou consumidas nas dependências do templo (8,10). Os cristãos em Corinto estavam divididos: podiam-se comprar e comer essas carnes sem tornar-se cúmplice de idolatria? Paulo, a quem se tinha feito a pergunta, responde como em Rm 14-15: o cristão é livre, mas a caridade deve convidá-lo a respeitar as opiniões dos escrupulosos e a não escandalizá-los.

A Bíblia do Peregrino (p. 2751s) comenta: A carne não era alimento comum, por causa do preço, e os sacrifícios por diversas celebrações tinham o atrativo da sua dieta. Naturalmente, o cristão não participava do culto aos ídolos, com sacrifício e banquete. Podia participar das sobras consumidas em contexto profano? Em outras palavras, a consagração ao ídolo ficava aderida à carne como condição inseparável? Em caso afirmativo, comer dela era contaminar-se de idolatria. Assim pensavam as pessoas escrupulosas, talvez pagãos com fervor de recém-convertidos. Paulo, sem apelar para a decisão do Concílio de Jerusalém (At 15), responde em dois planos: o do “conhecimento” ou consciência esclarecida, e o da caridade. Diz o “conhecimento”: se os ídolos são nada, pois não existem divindades a não ser o Deus único, o alimento que se lhes oferece não fica consagrado, continua profano quanto antes. Diz a “caridade”: não se pode escandalizar o irmão que tem a consciência menos formada ou escrupulosa.

O conhecimento incha, a caridade é que constrói (v. 1b).

“Inchar”ou inflar é encher de ar, envaidecer-se sem substância. “Construir” é fazer obra sólida, em favor da comunidade (1,9-15). O “conhecimento” é um dom de Deus (12,8), mas não basta, quando não está a serviço da “caridade”.

Se alguém acha que conhece bem alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber(v. 2).

A frase tem duas formas verbais do verbo “conhecer, saber”: um perfeito, que significa completeza e permanência, e que podemos traduzir “sabê-lo bem, perfeitamente”, e um aoristo de significado simples, essa pretensão de suficiência está demonstrando que ainda não se compreendeu o sentido dinâmico do conhecer, que nunca atinge seu termo.

Mas se alguém ama a Deus, ele é conhecido por Deus! (v. 3).

“É conhecido” ou reconhecido por Deus. No sentido bíblico, isto é: “amado por Deus” (cf. Os 2,22; Lc 1,34 etc.). Pode se comparar com a resposta “não vos conheço” de Mt7,23; 25,12. Em hebraico, o verbo correspondente chega a significar “escolher” (Jr 1,5).

Quanto ao comer as carnes de animais sacrificados aos ídolos, nós sabemos que um ídolo não é nada no mundo, e que Deus é um só. É verdade que alguns são chamados deuses, no céu ou na terra, e muita gente pensa que existem muitos deuses e muitos senhores (vv. 4-5).

“Muita gente pensa que existem muitos deuses” lit.: de fato há muitos deuses. Paulo verifica simplesmente um fato. Trata-se evidentemente dos deuses e heróis da mitologia pagã, nos quais Paulo vê, na realidade, demônios (10,20s).Os “deuses” são os seres fictícios do Olimpo e os corpos siderais; os “senhores” são os homens divinizados.

Para nós, porém, existe um só Deus, o Pai, de quem vêm todos os seres e para quem nós existimos. E, ainda, para nós, existe um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe, e nós também existimos por ele (v. 6).

Nesta frase, os verbos, ausentes no grego, tiveram de ser acrescentados para compreender o texto. Pode-se também entender assim a segunda frase: “É um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo vem à existência e pelo qual nós vamos (para o Pai).”Como em Cl 1,15-20, o Cristo é apresentado como anterior à criação e autor da mesma (cf. Hb 1,2; Jo 1).

A Bíblia do Peregrino (p. 2751s) comenta: No AT se progride do henoteísmo ao monoteísmo. O primeiro admite a existência de outros deuses para outros povos (cf. Dt 32,8); os israelitas veneravam um só Deus, “Yhwh” (Dt 6,4), superior a todos os deuses estrangeiros (Sl 29,1-2; 95,3; 96,4). O monoteísmo reconhece um Deus único de todos os povos. Paulo reafirma a fé monoteísta, numa espécie de doxologia litúrgica: o Deus que Paulo reconhece é Deus Pai, princípio de tudo e finalidade “nossa”; e junto a ele, reconhece Jesus Cristo como Senhor, mediador na criação do universo, e de “nossa” existência cristã (Rm 11,36; cf. Hb 1,2).

Paulo já reconhece a preexistência do Filho de Deus antes da sua encarnação (cf. Fl 2,6s). A expressão “um só Senhor”(heisKyrios) é muito forte, pois equivale à profissão de fé em Javé Deus em Dt 6,4 (Jhwhehad; cf. Mc 12,29:“o único Senhor”) aqui aplicada a Jesus. Ao mesmo tempo,Paulo admite a existência de outros seres superiores que os pagãos chamam de deuses ou senhores, mas os judeus chamam de espíritos, anjos ou demônios (cf. v. 5; 10,21s).

Mas nem todos têm esse conhecimento. De fato, alguns habituados, até ao presente, ao culto dos ídolos, comem da carne dos sacrifícios, como se ela fosse mesmo oferecida aos ídolos. E assim, a sua consciência, que é fraca, fica manchada (v. 7).

“Alguns habituados, até ao presente, ao culto dos ídolos”; outra versão: “alguns com a consciência até agora do ídolo” (isto é, com a convicção de participarem ainda agora da idolatria). “Comem da carne dos sacrifícios, como se ela fosse mesmo oferecida aos ídolos”; lit. comem como carnes sacrificais.

“Consciência” é termo tirado da filosofia grega. A “contaminação” (“manchada”) de que fala é de natureza ética, não legal. Paulo não louva essa consciência que chama de “fraca”: tem compaixão dela, procura corrigi-la e formá-la com seu ensinamento, porque quer que se superem os resquícios da idolatria anterior.

Em v. 8 afirma quea nossa relação com Deus não se decide no plano da dieta. Em nossa relação com Deus, nem a abstinência é perda, nem o desfruto é vantagem (poderíamos inverter os termos).

E então, por causa do teu conhecimento, perece o fraco, o irmão pelo qual Cristo morreu. Pecando, assim, contra os irmãos e ferindo a consciência deles, que é fraca, é contra Cristo que pecais. Por isso, se um alimento é ocasião de queda para meu irmão, nunca mais comerei carne, para não escandalizar meu irmão (vv. 11-13).

Nossa relação com Deus não se decide no plano da dieta, mas no da relação com o semelhante (irmão).Provocar a queda do irmão é fazer grande ofensa a Cristo. Mantém-se o direito preferencial que o fraco tem de ser respeitado e auxiliado (cf.Eclo 13,21s). “Escandalizar” é provocar a queda do irmão que peca,quando age contra a própria consciência dele, que lhe proíbe comer carnes sacrificadas (cf. Rm 14,15-20).

Os aqui chamados fortes, livres na consciência, resistentes à idolatria, achavam permitido comer a carne sacrificada aos ídolos. Os escrupulosos e “fracos”na consciência, interditavam tudo por medo de se contaminar (cf. o medo de espíritos). No nível do conhecimento, essa carne, em si, é igual às demais, e comê-la ou não comê-la não faz diferença, porque foi oferecida a ídolos, que não representam nada para a fé cristã. Há, porém, outro nível, o do amor ao próximo (caridade, v. 1b), e é aí que Paulo estabelece um princípio importantíssimo. O problema não é comer ou deixar de comer (ou beber) alimentos, e sim respeitar a consciência do irmão mais fraco. Nisso reside o critério fundamental do amor cristão (Rm 14,1-15).

Evangelho: Lc 6,27-38

Continuamos ouvir o sermão da planície em Lc (em Mt 5-7 é o sermão da montanha). O amor ao próximo, em particular aos inimigos, ocupa boa parte do discurso programático de Jesus em Lc.

A vós que me escutais, eu digo: (v. 27a).

Dirige-se “a todos os que escutam” (vv. 17-19; cf. Mt 5,1; 7,28), não mais “aos discípulos” apenas (cf. v. 20). Embora esteja formulado em imperativos, não deve ser entendido como novo código legal para regular uma conduta em determinados casos, mas como expressão de um espírito que anima de dentro toda a vida cristã. A motivação não deve ser interesseira; busca precisamente refrear o egoísmo interesseiro. A motivação é o exemplo de Deus Pai (vv. 35b-36), que seu Filho vem revelar (cf. 10,21s), para devolver sua imagem aos homens.

O estilo é aforístico, de frases concisas e incisivas, ligadas ou articuladas em paralelismo e agrupadas em unidades menores. O centro é a chamada “regra de ouro” (v. 31) ligada ao amor aos inimigos.

Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam (vv. 27b-28; cf. Mt 5,44).

Convém tomar juntos os quatros verbos, que reúnem e articulam: o afeto ou atitude, “amai”; as obras, “fazei o bem”; as palavras, “bendizei”; a oração “rezai”. Sobre o último pode-se recordar Moisés intercedendo pelo Faraó (Ex 8,25; 9,28s), e Jeremias por seus perseguidores (15,15). Pela oração, o ofendido recomenda a Deus o ofensor e isso é grande benefício; ao mesmo tempo olha ao ofensor numa perspectiva superior. A oração favorece os três atos procedentes. Em Lc, Jesus pratica estas palavras na sua paixão, rezando pelos que o crucificam (23,34).

Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva (vv. 29-30; Mt 5,39-42).

Demonstra a capacidade de suportar a injustiça no corpo ou nas posses. É como um manifesto de não-violência (cf. a campanha de Mahatma Gandhi pela independência da Índia, conseguida em 1947). Em Jo 18,22s, Jesus não oferece a outra face, mas questiona a atitude do guarda violento. O dar é emprestar a fundo perdido, como o aconselha Dt 15,1-11; comparar com as salvaguardas de Eclo 29,1-13.

O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles (v. 31)

É a chamada “Regra de Ouro” (cf. Mt 7,12). Na fonte original Q (perdida na história, mas absorvida em Mt e Lc que a usavam), esta regra estava ligada ao amor aos inimigos.

A Regra de Ouro é universal e existe em várias formas nas muitas filosofias e religiões: por ex. Confúcio (China, 551-479 a.C.): “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostarias que fosse feito a ti”. No AT, Eclo 31,15 (grego): “Julgo por ti mesmo o que o outro (próximo) sente e comporta-te sempre com reflexão”. Sua aplicação abrange desde o cotidiano até o heróico. Comparar o imperativo categórico de Imanuel Kant (Alemanha, 1724-1804): “Aja sempre da maneira que tua conduta possa ser uma lei geral para todos”.

Já o rabbi Hilel (60 a.C.-10 d.C.) viu nela um resumo da lei de Moisés. Na forma negativa (Tb 4,15: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”), ela é a mais comum; é um resumo da ética, uma lógica natural (“lei natural”, quer dizer: não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência humana). A forma positiva que Jesus apresenta (cf. “amarás o teu próximo como a si mesmo”, Lv 19,18 citado em Mc 12,31p; Rm 13,9; Gl 5,14) é mais exigente e desafia a criatividade: não somente não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), sim amar e pensar como posso fazer o bem ao outro. S. Tomás de Aquino (1225-1274) definiu: “amar é fazer o bem ao outro”.

Se alguém procura instintivamente o próprio bem, pense que também os outros procuram. Se duvidar como tratar o próximo, consulte seus próprios desejos. Não somente tratar como o tratam, mas como desejaria que o tratassem. Para tanto promove a iniciativa de fazer o bem, pôr-se na situação do outro, adivinhar seus desejos, sentindo os próprios. Como seria uma sociedade regida por este princípio?

Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca (vv. 32-35a; cf. Mt 5,46s).

Repetem-se três normas: amar, fazer o bem, emprestar. Três coisas que homens honestos praticam, só que em limites estreitos e pensando no interesse. O que Jesus propõe é superior, porque derruba os limites da reciprocidade e o motor do interesse.

Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus (v. 35b; cf. Mt 5,45).

A recompensa virá de Deus: “quem se compadece do pobre, empresta ao Senhor” (Pr 19,17). Filho do Altíssimo: o título é usado pelo eclesiástico (Eclo 4,10, encerrando uma situação sobre esmola e beneficência a pobres e oprimidos, órfãos e viúvas, “e Deus te chamará filho”). O título pode ser lido no salmo 82,6, num contexto de administração da justiça em favor do necessitado. Nós diríamos que o filho puxa o pai.

Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso (v. 36; cf. Mt 5,48).

“Compassivo” (misericordioso) é um dos títulos clássicos do Senhor, que se repete em formulas litúrgicas (Ex 34,6; Dt 4,31; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8). Agora o tributo pertence a “vosso Pai”; “como um pai se enternece com seus filhos” (Sl 103,13).

Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos (vv. 37-38; cf. Mt 7,1s; Mc 4,24).

Seguem-se quatro sentenças paralelas, duas negativas (julgar, condenar) e duas positivas (perdoar, dar), cinzeladas por formas correspondentes. Seu alcance se estende a qualquer campo da vida. O cristão não deve erguer-se em juiz do próximo, não deve condenar sem razão, ser indulgente. Isso não suspende o juízo de valores que é parte integrante do sentido moral. A imagem da recompensa refere-se a um recipiente de medir cereais, que ao ser sacudido contém mais, e ao qual depois não passa a rasoura. Deus é compassivo e generoso (Pr 19,17).

A Bíblia do Peregrina (p. 2472) comenta: No centro deste sermão soa a regra de ouro (v. 31), que outros textos e culturas formulam em termos negativos (“não faças a ninguém o que não queres que te façam”, Tb 4,15) e Jesus exprime em forma positiva, muito mais exigente: “fazer”, porque o amor inculcado não se esgota em sentimentos (cf. Is 5,1-7). Aqui se vai à raiz da ética: Fazer o bem e não fazer o mal nas relações com os outros. Por serem recíprocas, permitem traçar um quadro para distinguir casos tópicos que se poderiam ilustrar com exemplos ou textos bíblicos:

Faz mal a outrem sem razão: do que se queixa o salmista (35,7; 6,5);

Mal por mal: pode ser castigo legal ou vingança legitima [a lei do talião: Ex 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21]

Mal por bem: máximo agravante (Sl 35,12; 38,21; Pr 17,13; Jr 18,20);

Bem sem razão: por compaixão, por generosidade; Ex 23,4-5 exorta à compaixão pelo asno do inimigo e pelo inimigo;

Bem por bem: se recebido, é agradecimento; não tem mérito especial, segundo vv. 32-33; cf. 1Pd 2,19-23;

Se esperado, é interesseiro: contra isto adverte o v. 34

Bem por mal: 1Sm 24,18; Pr 25,21-22; é o tema central da exortação. Paulo o formula assim: “Não se deixa vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem” (Rm 12,21).

O site da CNBB comenta: A regra do ouro da vida do cristão é resumida por Jesus na frase: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. Todas as pessoas desejam ser amadas, compreendidas e servidas, por isso, todos devem amar, compreender e servir. Devemos ser diferentes das pessoas que vivem a reciprocidade: devemos viver a gratuidade, ser diferentes dos que vivem fazendo justiça: devemos ser misericordiosos. O critério do nosso agir em relação aos outros não pode ser o agir dos outros, mas sim o próprio Deus, que não nos trata segundo nossas faltas, mas ama a todas as pessoas, indistintamente, com amor eterno e as cumula com a abundância dos seus bens. Se vivermos segundo esse critério, seremos filhos do Altíssimo e será grande a nossa recompensa nos céus.

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