11 de Abril de 2019, Quinta-feira: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte” (v. 51).

Leitura: Gn 17,1-9

A leitura de hoje fala do tempo remoto dos patriarcas. Abraão viveu por volta de 1.800 a.C. É uma época distante não só para o leitor de hoje, mas também já era para o autor que pertence à tradição sacerdotal que escreveu este texto durante e após o exílio na Babilônia (séc. VI a.C.). Os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados de “Lei (Torá) de Moisés” ou “Pentateuco”, são uma composição de várias tradições: narrativas que variam o nome de Deus (Javé ou Elohim) e uma tradição/redação que é chamada “sacerdotal”, outra “deuteronomista”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 36) comenta o cap. 17: Releitura pós-exílica de 15,1-21. A circuncisão era um rito de iniciação dos meninos à puberdade e ao casamento (Gn 31,14-24; Ex 4,25); era praticado por várias tribos e povos (Jr 9,25). No exílio, foi usada para afirmar a identidade e a solidariedade dos exilados (Ez 28,10; 31,18). E nos pós-exílio a circuncisão dos meninos no oitavo dia (vv. 12-13; 21,4; cf. Lv 12,3; Lc 1,59) marcava a sua pertença ao povo da Aliança. Narrando que El Shadai (“Deus da Montanha ou das Estepes”, v. 1, cf. 28,3; 35,11; 43,14 etc.) estabeleceu a circuncisão vinculada a uma aliança eterna, junto com a mudança dos nomes de Abraão (“pai de muitas nações”) e Sara (“princesa”), os sacerdotes do pós-exílio querem legitimar esta instituição, colocando-a no princípio da história de Israel (Ex 6,3). Isso, porém pode reduzir a vivência da religião da Aliança à pratica dos rituais.

Abrão prostrou-se com o rosto por terra. E Deus lhe disse: “Eis a minha aliança contigo: tu serás pai de uma multidão de nações. Já não te chamarás Abrão, mas o teu nome será Abraão, porque farei de ti o pai de uma multidão de nações. Farei crescer tua descendência infinitamente. Farei nascer de ti nações, e reis sairão de ti” (vv. 3-6).

Depois de vários relatos mais antigas (Gn 12,1-3.7; 13,14-17; 15) em que Deus prometeu a Abrão terra e descendência, a tradição sacerdotal também apresenta a aliança com Abrão. Longe da sua pátria e do templo, que foi destruído, os redatores sacerdotes estão interessados em tradições e rituais que mantém a identidade dos judeus no meio dos pagãos na Babilônia: a fé na palavra do único Deus (Gn 1), o sábado (Gn 2,1-4; Ex 16) e a circuncisão (Gn 17).

O conteúdo da promessa a Abrão é o mesmo: “descendência infinitamente” (v. 6), mas acrescenta-se aqui que “reis sairão de ti”, o que pode indicar a época do autor que já passou pela monarquia (os reis de Saul, Davi, Salomão etc. até o exílio da Babilônia). O que muda nesta aliança é o nome do patriarca (cf. 32,29) e a contrapartida, além da fé, o ritual da circuncisão (vv. 10-27).

No relato mais antigo de Gn 15, o sinal da aliança (pacto, contrato) era só por parte de Deus: Ele passou como “fogueira fumegante entre animais esquartejados”, comprometendo-se com assim com sua promessa (conforme um ritual antigo, cf. Jr 34,18). No texto sacerdotal de Gn 17, o “sinal da aliança” (cf. 9,12s) é a circuncisão de Abraão e de sua descendência masculina (vv. 10-27). O conteúdo primeiro da aliança é a fecundidade (descendência), então sua marca se leva no órgão da fecundidade. A circuncisão é um rito físico com o qual se expressa a pertença a um povo com o qual Deus faz aliança. Ela continua a ser praticada por judeus, muçulmanos e tribos africanas.

A circuncisão é mais antiga que Israel (cf. Jr 9,25). Na sua origem, e atualmente em algumas culturas, é rito de iniciação à puberdade. Em Israel desaparece este aspecto, ao adiantar-se para o oitavo dia do nascimento do menino (v. 12), quando também este recebe o nome (Lc 1,59; 2,21). Na ocasião, é oportuno a mudança do nome do patriarca Abrão para “Abraão” que significa “pai de uma multidão” (v. 5; em hebraico uma alusão: Ab é pai, hamon é multidão). A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 44) comenta: Na realidade, Abrâm e Abrahâm parecem ser variantes dialetais de um mesmo nome, cujo significado é: “o Pai (sem dúvida a divindade protetora do clã) é elevado” ou “o pai ama”. 

Criticando cultos exteriores sem a prática da justiça, os profetas pedirão a circuncisão do coração (Dt 10,16; Jr 4,4). Sendo judeu, Jesus também foi circuncidado (Lc 2,21). Por influência de Paulo (cf. Rm 2,25-29 etc.), o Concilio dos apóstolos em Jerusalém (49 d. C.) decidiu que bastaria o batismo para pertencer ao novo povo de Deus, à Igreja (cf. At 15-16).

Estabelecerei minha aliança entre mim e ti e teus descendentes para sempre; uma aliança eterna, para que eu seja teu Deus e o Deus de teus descendentes. A ti e aos teus descendentes darei a terra em que vives como estrangeiro, todo o país de Canaã como propriedade para sempre. E eu serei o Deus dos teus descendentes”. Deus disse a Abraão: “Guarda a minha aliança, tu e a tua descendência para sempre” (vv. 7-9).

Na época do desterro (séc. VI a.C.) era importante lembrar os judeus que a aliança antiga entre Deus e Abraão (séc. XVIII a.C.) é uma “aliança eterna” (v. 7) e para “para sempre” (três vezes em vv. 7.8.9), portanto vale para toda descendência de Abraão, também para aqueles que não moravam mais em Jerusalém e não podiam mais rezar no Templo, que estava em ruínas no monte Sião. Os exilados que estavam “juntos aos canais da Babilônia, sentados e chorando com saudades de Sião” (Sl 137,1), também podiam realizar o que El-Shaddai (tradução comum: Deus todo-poderoso, cf. v. 1; Ex 6,3) exige de Abraão: “Anda na minha presença (de acordo comigo) e sê honrado (perfeito)” (v. 1). Assim a comunhão com Deus será possível porque ele renova sua promessa de terra e descendência (vv. 2-9; cf. 12,2-3.7; 15,5-18). Deste modo o povo exilado poderá esperar voltar à sua terra e prosperar em grande número.

Evangelho: Jo 8,51-59

Continuamos ouvindo as disputas de Jesus com os judeus (autoridades judaicas) em Jerusalém que já ouvimos nos últimos dias. Mas o evangelho saltou o trecho mais antissemita (antijudaico) de todo NT (vv. 42-47) que só se pode entender no contexto histórico daquela época (cf. comentário de ontem). Os “judeus” em João representam as autoridades judaicas (que excluíram os cristãos da sinagoga, cf. 9,22; 12,42; 16,2) e os descrentes no mundo. Eles não aceitam a palavra de Jesus e o chamam de “samaritano” (v. 48), ou seja, um herege (cf. 4,4-42; 2Rs 17) que tem um “demônio” (vv. 48.52; cf. 7,20; 10,20; Mt 11,18; Mc 3,20s). Jesus se defende alegando seu serviço dedicado ao Pai. Sua meta é oferecer vida e salvação.

(Naquele tempo, disse Jesus aos judeus:) “Em verdade, em verdade, eu vos digo: se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte” (v. 51).

Jesus salienta mais uma vez sua relação única para com Deus e a importância de permanecer na sua palavra (cf. vv. 24.31s; 14,23.26): “Se alguém guardar minha palavra, jamais verá a morte”. Ao guardar a palavra de Jesus, o discípulo permanece e, ao conhecer a verdade, não vê a morte, quer dizer, participa da realidade divina.

Com esta proclamação de poder dar a vida eterna (cf. 3,16), Jesus se iguala, indiretamente, a Deus (cf. 5,18-24; 11,25s). Só Deus pode vencer a morte (cf. Dt 32,39, como consequência de Javé, “Eu sou”, cf. Jo 8,24.27).

Disseram então os judeus: “Agora sabemos que tens um demônio. Abraão morreu e os profetas também, e tu dizes: ‘Se alguém guardar a minha palavra jamais verá a morte’. Acaso és maior do que nosso pai Abraão, que morreu, como também os profetas? Quem pretendes tu ser?” (vv. 52-53).

Os judeus reagem a esta oferta de vida com um mal-entendido e uma acusação (outra vez de ter um “demônio”, cf. v. 48; 7,20; 10,20; Mt 12,24-37; 9,34; 11,18s; Lc 11,15-28), porque eles entendem mal como que Jesus prometesse vida infinita aqui na terra (cf. Mc 9,1), “jamais verá (lit. provará, cf. Hb 2,9) a morte”, mas: “Abraão morreu e os profetas também” (cf. Zc 1,5). “Quem pretendes tu ser?” (cf. Jo 5,18; 10,33).

Mas Jesus não disse que ele e seus discípulos não provariam a morte. Ele vai morrer (como já indicou em 7,33f; 8,14.21.28); mas os judeus não compreendem que sua morte será a volta a quem o enviou. De fato, ele é maior de que Abraão e os profetas. O discípulo que o segue também tem que morrer, mas “não verá” a morte eterna, porque “permanece” na realidade divina que reconheceu em Jesus (cf. 5,24; 6,40.51).

Jesus respondeu: “Se me glorifico a mim mesmo, minha glória não vale nada. Quem me glorifica é o meu Pai, aquele que vós dizeis ser o vosso Deus. No entanto, não o conheceis. Mas eu o conheço e, se dissesse que não o conheço, seria um mentiroso, como vós! Mas eu o conheço e guardo a sua palavra. Vosso pai Abraão exultou, por ver o meu dia; ele o viu, e alegrou-se” (vv. 54-56).

Primeiro Jesus se defende insistindo outra vez ele não procura a própria honra ou prestígio: ele busca apenas a glória de Deus (cf. v. 49s; 7,18). O próprio Deus, seu Pai, “glorifica” (cf. 17,5); o leitor que já sabe da morte e ressurreição de Jesus entende: Jesus é o verbo preexistente de Deus que se encarnou, vindo do céu (1,14f; 1,30; 3,31), estava no seio do Pai e para lá voltou portanto, só ele conhece Deus e pode dar a conhece-lo (1,18; 6,46). Jesus, porém, conhece o Pai e não pode mentir negando-o (v. 55; cf. 1,18; 5,37; a comunidade cristã faz suas essas palavras: 3,11; 1Jo 1,1-3).

Os judeus não podem conhecer Deus, dizem conhecê-lo, mas não conhecem (nisso, não são melhores do que os samaritanos, cf. 4,22). Por mais que repitam a fórmula tradicional “Javé, nosso Deus” (cf. v. 54), não conhecem ou não reconhecem o verdadeiro Deus, porque rejeitam o seu enviado, Jesus, o único que poder mediar este conhecimento. Portanto, sua pretensão de conhecer Deus é uma mentira (invocam seu nome em vão). Como os judeus adversários não guardam a palavra de Jesus (vv. 31.43.51), também não ouvem a palavra de Deus (v. 47) e não o conhecem (v. 55; cf. v. 21). Também nisso, não seguem a Abraão.

Jesus lhes reconhece que é “vosso pai” (cf. vv. 37-39), mas “vosso pai Abraão exultou por ver o meu dia, ele o viu e alegrou-se” (v. 56). Pode se refere à promessa de Deus a Abraão: “descendência infinita” e uma “eterna aliança … e eu serei o vosso Deus” (Gn 17,1-8; cf. leitura de hoje). O dia em que esta promessa se cumpre é a vinda de Jesus. No sinal do nascimento de Isaac, Abraão já vislumbrou (viu) este dia e “alegrou-se”.

Pode-se referir também, segundo interpretações da época, a uma revelação messiânica que Abraão teria tido quando recebeu as promessas (cf. Gn 15,9ss; Hb 11,9): “Essa visão profética e escatológica (“ver” os últimos dias como o fim do mundo e julgamento), foi concedido no judaísmo a todos as grandes figuras do AT (cf. 12,41s). No AT, falava-se do “dia do Senhor”, o dia do juízo e da instauração do reino messiânico (Am 5,18; Is 13,6; Ez 30,3; Jl 1,15); a expressão aplica-se agora à parusia (vinda) de Jesus (cf. Lc 17,20-24; 1Cor 1,8; 5,5; 2Cor 1,14). Em espírito, Abraão via o mundo futuro, o dia escatológico, que é o presente de Jesus (cf. 12,41).

Abraão “viu este dia e alegrou-se”, mas os “judeus” não se alegram com Jesus, mostram mais uma vez que não são filhos verdadeiros de Abraão (cf. v. 39s).

Os judeus disseram-lhe então: “Nem sequer cinquenta anos tens, e viste Abraão!” Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão existisse, eu sou” (vv. 57-58).

Novamente julgam Jesus segundo a carne (v. 15): “Nem sequer cinquenta anos tens e viste Abraão?” (v. 57). Entenderam mal e distorcem as palavras: Jesus não disse que ele viu Abraão, mas que Abraão viu o dia de Jesus. Em Lc 3,23, Jesus tinha “mais ou menos trinta anos”, quando começou seu ministério depois do batismo. Mas os judeus conseguem ver em Jesus apenas o ser humano e terrestre (cf. 6,42) e nunca sua dimensão celeste, para eles é um “possesso” (vv. 48.52; 7,20; 10,20).

Jesus, porém, enfatiza agora esta dimensão, declarando sua preexistência e seu título (“Eu sou” = Javé em Ex 3,14 grego: “Eu sou aquele que sou”): “Antes que Abraão existisse, eu sou” (v. 58; cf. vv. 24.29; 1,1-3; 13,19; cf. a preexistência da sabedoria antes da criação em Pr 8,22-31). O Filho eterno existe já antes de Abraão. Chegou-se a um novo ápice da autorrevelação de Jesus (cf. v. 19).

Preexistência é participação da eterna divindade de Deus (cf. 5,26; 17,5.24). O Credo Niceno-constantinopolitano a expressará no séc. IV: nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por Ele todas as coisas foram feitas.

Então eles pegaram em pedras para apedrejar Jesus, mas ele escondeu-se e saiu do templo (v. 59).

Não mais tentaram prendê-lo (7,30.44; 8,20; cf. 10,39; 18,1-12), mas já partem para linchá-lo. Quando faltam os argumentos, parte-se para violência (cf. 18,22s). Tomando a resposta de Jesus como blasfêmia, os judeus procuram apedrejar Jesus (novamente em 10,31; cf. At 7,55-60; Lv 24,16), mas ele vai-se embora às escondidas, como tinha vindo (7,10). Não os judeus, mas aquele que nasceu antes de todos os séculos determinará a “hora” da sua morte (cf. 2,4; 7,6.30.44; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1).

O site da CNBB comenta: O nosso Deus é o Deus da vida e da vida em abundância. Ele é causa de alegria para todos os que verdadeiramente creem nele e em Jesus ele manifesta todo o amor que tem por nós. Assim sendo, Jesus, que é o Filho do Deus vivo, veio nos ensinar o caminho da verdadeira vida, por isso nos diz que quem guarda a sua palavra jamais verá a morte. E como todos nós desejamos a vida e nos alegramos com ela, Jesus também é a causa de nossa alegria, assim como foi a causa para Abraão exultar de alegria ao ver o seu dia, ao reconhecer o seu Deus como o Deus da vida. Aos que não acreditam nas verdades do Reino de Deus e rejeitam os valores evangélicos, só resta a revolta, a tristeza e a morte.

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