11 de Julho de 2017 – Terça-Feira, 14° Semana

Leitura: Gn 32,23-33 (gr. 22-32)

Para entender melhor a situação desta misteriosa luta de deus com Jacó da qual ouvimos na leitura de hoje, é necessário relatar resumidamente os capítulos anteriores que nossa liturgia saltou. Em Harã, Jacó se apaixonou por Raquel e trabalhou sete anos para poder casar-se com ela, mas foi enganado por Labão, seu tio e pai de Raquel que lhe deu em casamento sua filha mais velha, Lia. Jacó não percebeu na hora do casamento, porque a mulher estava com o véu. Assim ele foi enganado de maneira semelhante à própria fraude quando fingiu ser seu irmão Esaú para receber a bênção do primogênito pelo pai Isaac (cap. 27, cf. leitura de sábado passado). Igual à bênção do pai, o casamento com Lia também era irrevogável (hoje, porém, seria inválido). Jacó precisava trabalhar mais sete anos para poder casar-se com sua amada Raquel (29,1-30). Então, Jacó tinha duas esposas que rivalizaram em dar filhos e, por isso, deram também suas escravas para Jacó (como Sara fez com Agar e Abraão (cf. Gn 16; 21). Com estas quatro mulheres, Jacó gerou onze filhos e uma filha, Dina (29,31-30,24). Um décimo segundo filho, Benjamim, nascerá depois em Belém (35,16-20).

Jacó levantou-se ainda de noite, tomou suas duas mulheres, as duas escravas e os onze filhos, e passou o vau do Jaboc. Depois de tê-los ajudado a passar a torrente, e atravessar tudo o que lhe pertencia, Jacó ficou só (vv. 23-25a).

Tendo recebido a bênção de Deus, Jacó conseguiu também reunir grande fortuna em rebanhos (cf. 30,25-32,1), mas Deus o mandou de volta para Canaã (31,3.11-13). É preciso atravessar o rio Jaboc entrando no território de Esaú (cf. v. 1). Jacó quer se reconciliar com seu irmão e manda presentes. Mas quando mensageiros contam que Esaú vem ao seu encontro com 400 homens, Jacó entra em pânico que supera com a oração (vv. 4-13). “Ainda de noite tomou suas duas mulheres, as duas escravas e onze filhos e passou o vau de Jaboc” (v. 23). Depois de ter ajudado a atravessar todas as pessoas e as coisas, “Jacó ficou só” do outro lado.

E eis que um homem se pôs a lutar com ele até o raiar da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, este tocou-lhe o nervo da coxa e logo o tendão da coxa de Jacó se deslocou, enquanto lutava com ele. O homem disse a Jacó: “Larga-me, pois já surge a aurora”. Mas Jacó respondeu: “Não te largarei, se não me abençoares” (vv. 25b-27).

Imagine uma luta, de noite, quando você não vê direito o inimigo e, portanto, não o conhece. Quem é esse “homem”? Segundo v. 31 é Deus em pessoa (mas o texto todo evita o nome de Javé); segundo Os 12,5 é um anjo (cf. o encontro em Gn 16,7-13). O autor não buscava a claridade plena para um encontro misterioso (como Moisés em Ex 33-34 ou Elias em 1Rs 19).

Este relato permanece na obscuridade, talvez por resultar da fusão do texto com tradições mais antigas na base, ligadas à origem de nomes: o lugar do vau Jaboc combina com Jacó (Jacob em hebraico) e com o verbo ye’abeq (lutar); “Israel” (Isra-El) significa lutar com Deus (v. 29), Fanu-El é rosto de Deus (v. 31).

Já em Gn 15 havia um encontro misterioso de Abrão com Deus à noite: um contrato (aliança) com os pedações de animais e um fogo que passou pelo meio. Em Gn 18, Deus lhe apareceu em forma humana (três anjos). No sonho de Gn 28, Jacó viu Deus a distância no topo da rampa (escada). Em culturas antigas, a luta pode ter formas míticas ou legendárias, ex. um deus com figura humana, mas limitado ao tempo das trevas, e um herói com força gigantesca que lhe arranca uma concessão.

Fala-se de uma luta física, um corpo a corpo com Deus, na qual Jacó parece primeiramente vencer. O homem “vendo que não podia vencê-lo, tocou-lhe o nervo da coxa e logo o tendão da coxa de Jacó se deslocou” (v. 26). Mesmo cambaleando, Jacó não abandonou a luta. É frequentemente no folclore que o raiar da “aurora” quebre o encanto ou deixe impotente o personagem sobre-humano (p. ex. vampiros).

O homem perguntou-lhe: “Qual é o teu nome?” Respondeu: “Jacó”. Ele lhe disse: “De modo algum te chamarás Jacó, mas Israel; porque lutaste com Deus e com os homens e venceste” (vv. 28-29).

De novo, Jacó é assíduo em receber uma bênção, mas desta vez não nega sua identidade (como fez em 27,19). O nome não é qualificativo qualquer, mas exprime a essência ou a função daquele que o leva, sua vocação, sua razão de ser. Mudanças de nome, decididas por Deus (17,5.15) ou por um rei (2Rs 23,34; 24,17) correspondem a uma função nova (cf. Dn 1,7; Mt 16,18; Jo 1,42).

Jacó se torna “Israel”, porque “lutaste” (v. 29, lit. “foste forte”; sentido que as versões dão ao verbo hebraico sar’a empregado somente aqui e em Os 12,5; ou significa “ordenar, dominar”). Isra-El, que significava provavelmente “que Deus se mostre forte”, é explicado por “ele foi forte contra Deus”, lutou com El (etimologia popular; a raiz hebraica ). El era a divindade principal em Canaã e aqui é identificado com Elohim (“Deus”) e, depois do rei Josias (640-609), El e Elohim serão identificados com Yhwh (Javé, traduzido por “Senhor”, v. 13).

Esta mudança de nome Jacó para Israel será indicada também em 35,6-10, onde parece ser mais primitiva. É possível que ela exprima a fusão de dois grupos diferentes, do grupo arameu de El, de Betel (Dt 26,5; Ez 16,3.45) com os camponeses de Jacó/Siquém, dando origem ao núcleo mais antigo de Israel (cf. 31,13; 33,20 na chegada a Siquém: “El, Deus de Israel”; 35,7).

O novo nome evoca as lutas que marcam o destino de Jacó e da sua descendência. O nome Israel, portanto, aqui é ainda um apelido de um indivíduo e passa ser o nome de toda sua descendência (o povo de Israel) e a terra deste povo: “Canaã”, a terra dos cananeus, tornar-se-á a terra de Israel (chamada depois de “Palestina” pelos filisteus, gregos e romanos).

Perguntou-lhe Jacó: “Dize-me, por favor, o teu nome”. Ele respondeu: “Por que perguntas o meu nome?” E ali mesmo o abençoou (vv. 30).

Quando reconhece o caráter sobrenatural do seu adversário, Jacó força-o a abençoá-lo. Mas o agressor desconhecido recusa-se a dizer seu nome. “Porque perguntas o meu nome?” (cf. Jz 13,16-18). Deus revelará seu nome só a Moisés em Ex 3,13-14, mas a Jacó, ele dá a bênção desejada.

Jacó deu a esse lugar o nome de Fanuel, dizendo: “Vi Deus face a face e foi poupada a minha vida”. Surgiu o sol quando ele atravessava Fanuel; e ia mancando por causa da coxa. Por isso os filhos de Israel não comem até hoje o nervo da articulação da coxa, pois Jacó foi ferido nesse nervo (vv. 31-33).

O autor utiliza uma velha história para explicar o nome de Fanuel por Peniel (“face de Deus”): (v. 31; cf. Dt 34,10; Nm 12,6-8). No fim, Jacó identifica o personagem que já desapareceu: era “Deus” (cf. Ex 33,18-23+34,6-8; 1Rs 19,11- 13; Jó 42,5).

Nesta narrativa se juntaram explicações de vários nomes antigos, fusões de diversos grupos e até do costume israelita de não comer o nervo da articulação da coxa (v. 33). Dentro da trama é psicologicamente compreensível que, antes da travessia, Jacó tem que ficar só para lutar contra a escuridão dentro de si, enfrentar seu medo do irmão mais velho, superar seu passado desonesto, encontrar força na presença de Deus para o encontro decisivo com seu rival e irmão no dia que nasce. Daquela luta, de noite, Jacó sai abençoado, recebeu um nome novo: “Israel” significa: Deus se mostra forte, quer dizer, que a força de Deus está com aquele que lutou com Deus. Saiu machucado, mas venceu porque não desistiu. Mesmo coxo, luta, caminha e vence! Manco, porque pecador, mas lutador, seguro da bênção e da força de Deus. Assim também o povo de Israel caminhará e lutará porque conta com a força do Todo-Poderoso. Não temerá as batalhas. Delas sairá mais forte. O filósofo Nietzsche (1844-1900) disse sobre a superação: “O que não nos mata, nos fortalece.”

O narrador explica a origem do nome de Israel e ao mesmo tempo lhe confere um sentido religioso: o patriarca se agarra a Deus, força-o a abençoá-lo, criando uma obrigação de Deus para com os que usarão o nome de Israel. Assim a cena tornou-se a imagem do combate espiritual e da eficácia de uma oração perseverante (cf. Lc 11,5-13; 18,1-8; 22,41-44; S. Jerônimo, Orígenes).

Evangelho: Mt 9,32-38

Depois da cura de dois cegos (vv. 27-31), Jesus cura “um homem mudo, que estava possuído pelo demônio”. Nesse relato, Mt destaca mais a atitude favorável do povo e a atitude maliciosa dos fariseus do que o próprio milagre.

Apresentaram a Jesus um homem mudo, que estava possuído pelo demônio. Quando o demônio foi expulso, o mudo começou a falar. As multidões ficaram admiradas e diziam: “Nunca se viu coisa igual em Israel” (vv. 32-33).

Na medicina da época, os demônios eram a causa de muitas doenças e deficiências, por isso uma cura bem-sucedida foi vista como expulsão do demônio. Se uma pessoa nasce surda, não aprende a falar, fica muda. Também depois de um acidente vascular no cérebro (AVC), a pessoa não consegue falar, porque as conexões de nervos entre o pensar e o falar foram prejudicados. As multidões são discípulos em potencial, “ficaram admiradas”, mas não é ainda a fé de discípulos.

Os fariseus, porém, diziam: “É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios” (v. 34).

Os fariseus têm outra explicação para a cura benfazeja de Jesus: “É pelo príncipe dos demônios…”. Esta distorção e inversão na acusação, Jesus a desqualifica mais tarde como “pecado contra Espírito Santo” (12,27-28.31-32p).

Em 12,22-23, Mt conta a mesma história com variações. Esta duplicidade é resultado das duas fontes: uma cura do surdo-mudo foi narrada em Mc 7,31-37 e também na coleção Q (Lc 11,14). Também a acusação de expulsar pelo chefe dos demônios que se encontra em Mc 3,22-27 e em Q (Lc 11,15-23), duplica-se em Mt 12,24-29. Para Mt, o importante é que Jesus está cumprindo as promessas e profecias de Israel ao realizar toda esta séria de curas (cf. 11,5s): “Nunca se viu coisa igual em Israel” (v. 33), mas uma ruptura está se formando (cf. 8,10 sobre a fé do centurião, no início desta série).

Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade (v. 35).

Com um resumo da atividade de Jesus, Mt conclui esta parte narrativa dos dez milagres (doze curas). Mt escreveu a mesma frase já na introdução do sermão da montanha (4,23). Os leitores sabem agora qual é o Evangelho do reino (3,2; 4,17 e caps. 5-7: sermão da montanha) e como o messias cura todas as doenças (cap. 8-9), tornando-se conhecido em Israel. Através destes capítulos, sabem que Jesus está cumprindo a escritura, a lei e os profetas (5,17; 7,12; 8,17).

Agora estamos antes do segundo grande discurso em Mt, desta vez sobre a missão dos apóstolos (cap. 10; cf. 11,1; evangelhos dos próximos dias). A série dos dez milagres (doze curas) foi interrompida duas vezes com um diálogo de seguimento e um relato de vocação. Agora Mt abordará formalmente o grande tema de escolha e missão dos doze.

Esta nova unidade se abre e termina resumindo a atividade missionária de Jesus: percorrendo as cidades, pregando, ensinando e curando (9,35 e 11,1). No centro do discurso de Mt 10 enuncia o princípio da semelhança: os discípulos como o mestre. Por isso, a atividade de Jesus emoldura toda a instrução aos discípulos.

Jesus ensina “nas sinagogas”, porque eram lugares de culto e também de ensino ou catequese. Jesus escolheu esses lugares de reunião para anunciar o Evangelho, a “boa notícia do reino” (4,17p.23; cf. Lc 4,16-30). Mas o êxito de Jesus aumenta o trabalho, para o qual reúne os primeiros colaboradores que agindo aprenderão juntos dele. Mas precisa de mais trabalhadores:

Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: ”A Messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita!” (vv. 36-38).

Jesus sente profundamente a dor e as enfermidades do povo, “se compadece” ao vê-lo, como Moisés no monte Nebo quando lhe foi anunciada sua morte próxima (Nm 27,12-17); como o profeta Miqueias viu o povo na presença de dois reis (1Rs 22,17). Jesus assume o ofício de bom pastor e deixará a seus discípulos a tarefa de colher (cf. Jo 4,37; 10).

À imagem da pesca (“pescadores de homens” em 4,19) se acrescentam a clássica do “pastor” (Jr 23; Ez 34; Sl 23; 80) e a do ceifador (“trabalhador” rural, cf. Sl 126) que continuam a ser usadas para se descrever o apostolado na Igreja. A multidão em Israel tinha seus chefes: sacerdotes e doutores da lei; no entanto, não cuidavam bem do rebanho, ou seja, do povo (cf. Jt 11,19; Ez 34,5). As pessoas estão “cansadas e abatidas”, porque não foram cuidadas. Como hoje, p. ex. crianças que estão nas ruas, abandonadas pelos pais, ou jovens que não recebem a educação que merecem. A corrupção e má distribuição fazem com que as riquezas da nação não cheguem às pessoas de maneira igualitária e aumentam a violência e o uso de drogas.

O site da CNBB comenta: Existem pessoas que vivem chorando pelos cantos por causa das ofensas e calúnias das quais são vítimas no trabalho evangelizador. O Evangelho de hoje nos mostra que não deve ser essa a atitude dos discípulos de Jesus. Quando Jesus realiza a expulsão de um demônio, é caluniado, pois afirmam que é pelo poder do mal que ele faz exorcismos. Jesus simplesmente continua a sua caminhada, preocupando-se com o sofrimento e as dores de todos os que encontra pelo caminho e fazendo o bem a todos, olhando a todos com compaixão e preocupando-se porque são como ovelhas que não têm pastor. Assim também devemos ser nós, não devemos viver preocupados com as calúnias que nos são dirigidas, mas sim preocupados em fazer o bem.

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