11 de Julho de 2020, Sábado: Portanto, todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante do meu Pai que está no céu.

14ª Semana do Tempo Comum  

Leitura: Is 6,1-8

Iniciamos hoje a leitura do terceiro profeta que escreveu depois de Amós e Oseias: Isaías, filho de Amóz (1,1; não confundir com o profeta Amós). O livro Is é o primeiro entre os profetas maiores (Is, Jr, Ez e, na Bíblia cristã, também Dn), mas seus 66 caps. são de três autores escrevendo em épocas diferentes (Proto-Isaías caps. 1-39; Deutero-Isaías caps. 40-55; Trito-Isaías caps. 56-66). O Proto(primeiro)-Isaías atuava entre 740/736 e 701 a.C. (cf. 1,1; 6,1) no reino do Sul (Judá) durante a ameaça pelos assírios.

Às mensagens dos profetas anteriores no reino do Norte (Israel), de Amós (justiça social e dia do julgamento de Deus) e de Oseias (amor misericordioso de Deus), Isaías acrescenta a sua experiência com o “Santo de Israel” e seu apelo à fé. Com fé na santidade do Senhor (Javé) Deus todo-poderoso, absoluto e transcendente de Israel, Isaías orienta seu ministério profético na corte de Jerusalém, exigindo a confiança absoluta em Deus e pureza na ética.

Em 6,1-13, o profeta nos fala de sua experiência transcendental, numa linguagem de símbolos que convida a vislumbrar o mistério. Pode-se dividir o capítulo em três partes: teofania (vv. 1-5), consagração (vv. 6-7), missão (vv. 8-12). O estilo é dominado por fórmulas ternárias. Visão, audição e participação se espalham por todo o capítulo.

No ano da morte do rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono de grande altura;
o seu manto estendia-se pelo templo
(v. 1).

A data indicada é entre 740 e 736 a.C., dependendo da maneira como se interpreta a difícil cronologia do livro dos Reis (cf. 1,1; 7,1; 2Rs 15,1-7.32; 2Cr 26,21-23). O lugar da visão é o Hekal, a grande sala do templo (20 x 10 x 15 m) que precedia o Debir ou “Santo dos Santos” (10 x 10 x 10 m; cf. 1Rs 6,3-5.17; Hb 1,7). Isaías deve pertencer a classe sacerdotal que tinha acesso ao Hekal, enquanto o povo ficava fora, no pátio (cf. Lc 1,21), onde se encontrava o altar para os holocaustos e o mar de bronze (para purificação); cf. a descriação do templo de Salomão em 1Rs 6,1-8,9 (a tenda do deserto, Ex 25-31).

No Hekal estava o altar de incenso, a mesa dos pães e a menorá (candelabro de sete velas).  O Debir era separado por uma cortina e reservado ao sumo sacerdote, que podia entrar só uma vez por ano (Ex 30,10; Lv 16,2). Nos templos pagãos, uma estátua da divindade ficava nesse lugar (cf. 1Sm 5,2). Na tenda dos israelitas e no templo de Salomão, porém, a Arca da aliança estava dentro, i. é. um baú móvel com as tábuas da lei (dez mandamentos) e na tampa, as figuras douradas de dois querubins (cf. Ex 25,10-22; 26,33s; 1Rs 6,19.23-28).

“Vi o Senhor, sentado no trono” (cf. v. 5; 1Rs 22,19; Am 9,1; Ez 1,26; Ap 4,2). O que Isaias vê, é o que todo judeu em Jerusalém crê: O templo é o centro da terra e o lugar do “pedestal” (a Arca da Aliança: Sl 99,5; 132,7) do trono de Deus, que é lugar onde Deus é manifestado e celebrado como “rei da glória” (Sl 24,7-10).

A Bíblia do Peregrino (p. 1699) comenta esta manifestação divina (teofania): A teofania cria uma sensação de plenitude. A orla ou franja de uma túnica cobre o templo, a fumaça o enche, a glória enche a terra. Enchem e transbordam, porque o Senhor não está circunscrito. O templo é estrado da grandeza supracósmica, a fumaça vela e revela, a terra é templo gigantesco. O Senhor está sentado no seu trono, como rei. A sua corte celeste são os serafins: mantêm-se firmes e cobrem-se respeitosamente. Entoam um canto alternado. Os exércitos são os astros celestes. A teofania, em vez de provocar um terremoto, faz com que o templo estremeça e se encha de fumaça (cf. Ex 19; Sl 104,32).

Havia Serafins de pé a seu lado; cada um tinha seis asas (v. 2a).

Os “Serafins” são uma espécie de anjos. A palavra hebraica significa “ardente, abrasador”. Na sua origem designa uma temível serpente do deserto (Nm 21,6.8; Dt 8,15), representada com asas (Is 14,29; 30,6) e cuja imagem de bronze é honrada no Templo de Jerusalém até o reinado de Ezequias (2Rs 18,4). Seu aspecto ardente talvez faça deles símbolos do relâmpago, quando a manifestação de Deus se assemelha a uma tempestade (como é o caso aqui; cf. v. 4). O termo serve aqui para descrever os seres híbridos (serpentes aladas com rosto e mãos humanas, imagináveis segundo representações conhecidas na iconografia oriental antiga).

Nossa liturgia de hoje omitiu o v. 2b que especifica o porquê das “seis asas”: com duas asas, os serafinas “cobriam o rosto” (por medo de verem a Javé; cf. Ex 3,6; 33,20; 1Rs 19,13), com duas “cobriam os pés” (eufemismo designando provavelmente o sexo; cf. Ex 4,25) e, “com duas, eles voavam” (v. 2b).

Aqui, os serafins são figuras humanas, munidas, porém, de seis asas, que lembram os seres misteriosos com quatro asas que conduzem o carro de Javé em Ez 1 e que Ez 10 chama “querubins”, como as figuras análogas fixadas na Arca da Aliança (Ex 25,18-22; 1Rs 6,23-30). A tradição posterior deu o nome de “serafins” e de “querubins” a duas categorias de anjos.

Eles exclamavam uns para os outros: “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; toda a terra está repleta de sua glória” (v. 3).

“Santo, santo, santo”; sem dúvida, trata-se de uma aclamação já utilizada no culto da época de Is (cf. a aclamação “Ele é Santo”, três vezes em Sl 99,3.5.9; cf. Ap 4,8), pois encontram-se similares no Egito. A santidade de Deus é um tema central da pregação de Isaías que chama muitas vezes Javé “o Santo de Israel” (1,4; 5,19.24; 10,17.20; 12,6; 17,7; 29,19; 30,11.15; 31,1; 37,23; 41,14.16.20, etc.). Esta santidade de Deus exige do homem que ele mesmo seja santificado, quer dizer, separado do profano (Lv 17-26), limpo da impureza do pecado (aqui vv. 5-7) e participante da “justiça” de Deus (cf. 1,26; 5,16). Esta teologia da santidade reaparecerá durante o exílio em Ezequiel, em Is 40-55 e em certas tradições sacerdotais conservadas em Jerusalém (cf. a lei da santidade em Lv 17-26).

O nome “Senhor dos exércitos” (hebr. Yhwh [Javé] Sebaot, muitas vezes traduzido por “Senhor Todo-poderoso”) se refere a seu poder sobre os exércitos de Israel ou sobre os exércitos celestes, os astros, os anjos, ou sobre todas as forças cósmicas (cf. Gn 2,1). O título aparece pela primeira vez em 1Sm 1,3.11, onde está ligado ao culto da Arca da Aliança em Silo (cf. a expressão “Senhor dos exércitos entronizado entre os querubins” em 1Sm 4,4), e entra com ela em Jerusalém (no tempo de Davi: 2Sm 6,2.18; 7,8.27). É retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel), também pelos profetas pós-exílicos (principalmente Zacarias) e nos Salmos.

“Toda a terra está repleta de sua glória”, é outra fórmula litúrgica (cf. Nm 14,21), utilizada nos Salmos (Sl 72,19; cf. 57,6.12; 108,6), como o seu equivalente egípcio nos hinos (“encheste toda a terra com a tua beleza”).

Ao clamor dessas vozes, começaram a tremer as portas em seus gonzos e o templo encheu-se de fumaça (v. 4).

O “tremer” dos lugares, as “vozes” (evocando o trovão) e a “fumaça” lembram as grandes teofanias (manifestações de Deus) do Antigo Testamento (cf. Ex 19,16-19; 20,18; Is 4,5; Sl 18,8-14; 29; 68,9.34; 77,18-19; Jó 37,2-4). A fumaça é sinal da presença de Deus evocando a que sobe do altar do incenso (Lv 1,2; 24,7), mas também a nuvem no deserto e que enche o Templo em 1Rs 8,10-12; Ez 10,4 (cf. a tenda em Ex 30,34-36; 40,34s).

Disse eu então: “Ai de mim, estou perdido! Sou apenas um homem de lábios impuros, mas eu vi com meus olhos o rei, o Senhor dos exércitos” Nisto, um dos serafins voou para mim,
tendo na mão uma brasa, que retirara do altar com uma tenaz, e tocou minha boca, dizendo: “Assim que isto tocou teus lábios, desapareceu tua culpa, e teu pecado está perdoado”
(vv. 5-7).

Nos relatos de visões ou vocações, é comum expressar a limitação ou inquietação (cf. Gn 15,2s; Ex 3,11.13; 4,1.10; Jz 6,15; Jr 1,6; Lc 1,18.34; 5,8) que geralmente é respondido com uma palavra (“Eu estarei contigo”, etc.) ou um sinal de confirmação.

“Estou perdido”; outra tradução possível: “Estou reduzido ao silêncio”. Não se pode ver a face de Deus sem morrer (Ex 3,6; 33,20; Jz 6,22; 13,22; 1Rs 19,13; cf. Dt 5,26; 18,16, onde se trata apenas de ouvir a voz de Deus). O profeta sente a sua pequenez, incapaz de abranger em vida a grandeza do Senhor; e sente mais ainda sua limitação, a mancha do pecado, no qual é solidário com todo o povo. Antes do exílio, porém, a “santidade” não está ligada tanto à ética ou moral, mas ao culto: é uma esfera sagrada e superior que baixa em lugares, tempos, pessoas e textos sagrados. Seu contrário é a “impureza” (sujeira, mas também a esfera da doença e da morte). Esta impureza é causada pelo pecado e pela conduta antissocial. Isaías está afetado pelo pecado do seu povo, mas Deus está inclinado a perdoar, conforme a religião do templo (cf. Sl 65,3s).

Os “lábios” são os órgãos da pregação profética; precisam ser purificados com uma “brasa”, ou talvez uma pedra ardente semelhante àquelas sobre as quais se cozinha o pão (1Rs 19,6), poderia ter se encontrado sobre o altar do incenso. O fogo é símbolo divino que ilumina e purifica (cf. Gn 15,17; Ex 3,2; 13,21; 19,18; 1Rs 18,24.38s; 2Rs 2,11; Dn 7,9s; At 2,3 etc.). A purificação da boca confirma a vocação do profeta e prepara a sua missão (cf. 1,9; Ez 2,8; Dn 10,16; Ap 8,3-5). A purificação é como rito eficaz que apaga os pecados.

“Teu pecado está perdoado” lit. “apagado”; esta palavra se traduz muitas vezes por expiado ou perdoado, tem sentido técnico que se refere à absolvição do pecado (cf. Ex 29,36-37; Is 22,14; Jr 18,23). A palavra kippur (cf. Yom Kippur, o Dia da “expiação” e reconciliação em Lv 16) tem a mesma raiz hebraica.

Ouvi a voz do Senhor que dizia: “Quem enviarei? Quem irá por nós?” Eu respondi: “Aqui estou! Envia-me” (v. 8).

A prontidão de Isaias lembra a fé de Abraão (Gn 12,1-4; cf. as respostas de Samuel em 1Sm 3 e de Maria em Lc 1,38). Numa visão semelhante de um conselho celeste (1Rs 22,20), não se fala de uma vocação de um profeta, é o espírito profético se dispôs a executar a vontade de Javé. A atividade profética é missão encomendada por Deus. Isaías toma a pergunta como dirigida a si como desafio e convite, e se oferece sem resistência, não como Moisés (Ex 4,10) e Jeremias (Jr 1,6).

Nada em nosso capítulo indica que se trata de uma vocação pela primeira vez! Esta observação pode confirmar a posição deste relato no livro de Is: não é uma vocação no início da atividade profética como nos outros livros proféticos (cf. Jr 1; Ez 1 etc.), mas uma visão que aprofunda a experiência de Isaías para poder anunciar coisas mais críticas e piores do que suas profecias de caps. 2-5.

Na sua primeira fase (caps. 2-5), Is criticou a injustiça social (como Amós) ainda durante o reinado de Ozias (781-740 a.C). Mas Is há de reconhecer que o “coração” (o pensar, não apenas o sentir) do seu povo está endurecido (cf. vv. 9s) como o dos pagãos (cf. o farão em Ex 4,12; 7,3 etc.). A visão de 6,1-13 está bem colocada antes do “Livro do Emanuel” (caps. 7-9) que agrupa os oráculos relativos à guerra siro-efraimita, no qual o rei Acaz (736-716) se envolve e se cumprem as ameaças dos vv. 11-13 desta visão.

Nossa leitura de hoje não nos transmite mais as palavras com as quais Javé confia ao profeta uma missão paradoxal: “Escutais com os ouvidos, mas não compreendereis, …” (vv. 9-13; citadas várias vezes no NT: Mt 13,13-15p; Jo 12,40; At 28,26-27).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1368) comenta: A pregação do profeta embaterá na incompreensão de seus ouvintes. Deus não quer essa incompreensão, ele a prevê, e ela serve aos seus desígnios. Ela descobre o pecado do coração e precipita o julgamento.

A Bíblia do Peregrino (p. 1699) comenta a missão “impossível” do profeta: O seu destino é o fracasso, o seu êxito será piorar a situação. Pregando a conversão, provocará o endurecimento e tornará inevitável o castigo, pois o povo não poderá alegar ignorância. Quando a desgraça acontecer, a palavra, aparentemente ineficaz, será recordada; e à sua luz a tribulação será compreendida e aceita como castigo. Em última instância, essa palavra conduzirá à conversão.

Evangelho: Mt 10,24-33

Continuamos ouvindo o segundo grande discurso de Jesus no evangelho de Mt com o tema da missão dos apóstolos. Nos evangelhos dos dias passados já se falava da tarefa de anunciar o Reino de Deus, e das perseguições que podem surgir de dentro (sinagogas) e ou de fora (reis, governadores).

O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor. Para o discípulo basta ser como o seu mestre, e, para o servo, ser como o seu senhor (vv. 24-25a).

O grande princípio da relação do apóstolo com Jesus (cf. Lc 6,40; Jo 13,16; 15,20) é ser como o mestre (aliás, só existe um; cf. 23,8), nunca deixará de ser servo e discípulo, aprende para servir e servindo aprende. A respeito das perseguições antes mencionadas (vv. 17-22), significa: também os discípulos serão entregues (vv. 17.19.21), açoitados (v. 17), levados diante de governadores (v. 18) e mortos (v. 21) como Jesus. Estas experiências sofridas não só farão parte da missão específica em Israel (vv. 5s), mas do discipulado em si. Eles seguirão nos passos da paixão do mestre, mas também farão parte da sua ressurreição. Por isso, S. Tomas de Aquino fala do “dom do sofrimento por Cristo”.

Se ao dono da casa eles chamaram de Belzebu, quanto mais aos seus familiares! (v. 25b).

No discurso aos discípulos que também devem expulsar os demônios (vv. 1.8), Jesus aplica o princípio do discipulado. O dono da casa é Jesus, os “seus familiares” são seus discípulos (cf. 12,46-50). Em seguida (no evangelho de amanhã) falará da divisão nas famílias (vv. 34-37) e da nova comunidade (família) no nome de Jesus (vv. 40-42; cf. Jo 15,15).

Já em 9,33, os fariseus acusaram Jesus: “É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios”, e retomarão a acusação em 12,24, chamando o chefe dos demônios “Belzebu”. É um dos nomes tradicionais do diabo, tomado do deus da cidade filisteia de Acaron (2Rs 1), cujo nome Beel-Zebul (“senhor príncipe” ou “senhor da morada [celeste]”) é transformado pelo texto hebraico maliciosamente em Baal Zebub, “senhor das moscas”. Atribuir ao diabo (Belzebu) a ação de Deus é para Jesus a máxima blasfêmia e o pecado contra Espírito Santo (12,24-32).

Não tenhais medo deles, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido (v. 26; cf. Mc 4,22; Lc 12,3).

É preciso superar o medo na perseguição. Jesus talvez tenha transformado um ditado popular “Tudo acaba aparecendo à luz do dia”, mas refere-se à vinda do Reino (v. 7). A questão é, quando se revelará a verdade? Aqui na história ou no juízo final? Pode-se pensar na história (p. ex., no Edito de Milão em 313 d.C. pelo qual César Constantino encerrou a perseguição aos cristãos no Império Romano). Mt pensa mais no juízo final (cf. vv. 15.23.28-31.32s.39.41s)

O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia, e o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados (v. 27).

O servo da sinagoga anunciava o início do sábado tocando o chofar (chifre do carneiro) do telhado mais alto da cidade. Jesus não podia transmitir a sua mensagem senão de maneira velada, porque os seus ouvintes não podiam compreendê-la (cf. o segredo messiânico em Mc 1,34; etc.) e porque ele mesmo não tinha ainda acabado a sua obra, morrendo e ressuscitando. Mais tarde os seus discípulos podiam entender e deviam proclamar tudo sem medo algum. Hoje a imagem do anúncio sobre os telhados corresponde à evangelização moderna usando as antenas de televisão, rádio, celular e internet.

A mensagem de Jesus não é esotérica, embora, por enquanto, seja comunicada a um círculo escolhido. O medo não deve induzir a escondê-la (Jr 1,8.17). Tampouco é propriedade exclusiva. Embora se aprenda privadamente, está destinada aos outros. Como diz Ben Sirac: “Farei brilhar meu ensinamento como aurora para que ilumine as distâncias” (Eclo 24,32). A comparação indica o caráter expansivo da mensagem. O sentido das mesmas palavras em Lc 12,3 é inteiramente diferente: os discípulos não devem imitar a hipocrisia dos fariseus, porque tudo quanto eles quiserem ocultar acabará por ser conhecido ao mesmo modo. Assim o que importava é que falassem abertamente.

Não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Pelo contrário, tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (v. 28).

Uma palavra dessa mostra que os membros da comunidade estavam sendo perseguidos e contavam com o perigo concreto do martírio (cf. 2Mc 6,30). Aparece aqui a distinção grega de uma “alma” imortal e um “corpo” que os homens podem matar, mas o judeu-cristão Mt distingue entre uma vida simplesmente biológica e a vida plena e transcendente. Na Bíblia, a palavra grega psykhé equivale muitas vezes a vida (v. 39; 16,25s). Aqui, Mt não identifica simplesmente alma e vida; o corpo é aquilo pelo qual o ser humano se exprime, a alma é o princípio que o mantém em relação com o Deus da vida. Interessante é que a alma não é imortal aqui como era tida na antropologia grega. Deus pode arruinar também a alma no inferno (cf. Ap 20,6; 21,8). Este detalhe que parece contrariar a doutrina cristã da imortalidade da alma interpretava-se assim: Deus pode matar a alma humana, mas não o faz, ou: a palavra não é “matar”, mas fazer perecer, destruir, “arruinar”, o que equivale o castigo eterno no inferno. O fogo é símbolo do castigo escatológico, definitivo (cf. Is 66,24; Mc 9,48).

Quem faz arruinar o corpo e a alma no inferno, não é o diabo, mas Deus, e por isso devemos temê-lo. O “temor de Deus”, porém, está relacionado ao amor a Deus (cf. Dt 6,5; 10,12.20; 13,5). O temor e o amor convergem na obediência à sua vontade (declarada na Lei, cf. 6,10; 12,50; 22,36s; Jo 14,21.23; 1Jo 4,16-18). Teologicamente, o temor a Deus está relacionado ao seu poder imenso, sua soberania. O que consola os discípulos não é a imortalidade da alma, mas a soberania de Deus, enquanto o poder dos homens está limitado apenas ao corpo visível.

Não se vendem dois pardais por algumas moedas? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai. Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados. Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais (vv. 29-31).

Com dois exemplos (pardais, cabelos), Jesus apresenta o poder de Deus que se manifesta na sua providência (cf. 6,26-30p: aves e lírios). O Deus todo-poderoso no céu, que é “vosso Pai”, cuida também dos humildes e pequeninos (cf. Is 66,1s), até dos pardais. Pardais eram as aves mais baratas no mercado, o frango dos pobres; o preço de dois pardais correspondia ao de um pão. Para estipular o valor de um ser humano precisaria de muitos pardais. “Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais” (v. 31). De ambos, Deus se ocupa paternalmente: um filho de Deus é mais que qualquer animal (cf. Sl 8; 36,7-10). “Nenhum deles cai no chão”, ou seja, nenhum discípulo morre “sem o consentimento do vosso Pai”, o Pai estará presente; sua morte não será em vão ou fortuita, terá um significado.

“Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados” (v. 30). Os cabelos da cabeça são minúsculos e exemplo proverbial de algo incontável (Sl 40,13; 69,5). Tudo está nas mãos de Deus (Sl 31,6.16). Em Lc, as testemunhas de Jesus não perderão “um só fio de cabelo” (cf. Lc 21,18; cf. 12,7; 1Sm 14,45). Deus, o Senhor sobre o corpo e a alma, é também um Pai que ama e sustenta a comunidade no sofrimento, como ela é sustentada pelo Espírito (v. 20) e pelo Senhor ressuscitado (28,20). O poder e o amor de Deus estão juntos, influem o temor de Deus e libertam do medo diante os homens.

Poderia concluir que nada nos acontece por acaso ou sem a vontade do nosso Pai celeste. Mas não quer dizer que Deus queira as guerras, os assaltos, as traições e mortes violentas, etc. O sentido da frase de Jesus é consolar-nos em grandes perigos com a afirmação de que Deus é nosso Pai. Não devemos interpretar essa frase fora do seu contexto e não insistir na especulação sobre a realidade do mundo e o mistério de Deus que ultrapassa os nossos limites (teodiceia).

Portanto, todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante do meu Pai que está no céu. Aquele, porém, que me renegar diante dos homens, eu também o renegarei diante do meu Pai que está no céu (vv. 32-33).

Esta frase já concluiu o tema na fonte Q (cf. Lc 12,8-9) que Mt usava aqui. Ele só destaca que o Senhor do juízo será o mesmo “Pai que está no céu” que cuida dos seus e a quem se dirigem na oração (cf. 6,5-14), em contraste está a ruptura em seguida com os pais (familiares) aqui na terra (vv. 35-37).

A “revelação” decisiva (v. 26) acontecerá neste juízo final. Diante do Pai que está no céu, caberá a Jesus como testemunha (“darei testemunho”) reconhecer os seus ou os estranhos (cf. 25,12). O testemunho do discípulo é sua prática da fé que pode incluir o derramar do próprio sangue (vv. 26-31; cf. Lc 12,8s), unindo o próprio destino ao de Cristo. “Negar” Jesus é dizer: “Não conheço este homem” (Pedro em 26,34.74); aos que o renegam, Jesus dirá por sua vez: “Eu não vos conheço” (7,23; 25,12). Não admite a neutralidade nem as concessões, afirma a reciprocidade (no entanto, perdoa a Pedro em Jo 21,15-19; cf. Mt 16,18s). Aos que o seguem na prática da misericórdia, dirá: “Vinde, benditos do meu Pai” (25,34). Jesus é mais do que uma testemunha neste juízo (“eu”), mais do que intercessor (cf. Rm 8,34; 1Jo 2,10), ele é também o “Filho do Homem” a quem o Pai entregou a sentença e o Reino (25,31-46; cf. Lc 12,8s; Dn 7,13s). Sua palavra decide sobre vida e morte, salvação ou condenação. É a primeira vez que Mt fala da salvação dos discípulos no juízo.

Na história da Igreja, nosso texto animou a confissão de fé diante dos juízes e carrascos deste mundo em tempos de perseguição, depois inspirou a profissão da doutrina ortodoxa (doutrina reta: Cristo é Deus) frente às heresias (Cristo é só homem, etc.). Hoje, o texto convida a professar a nossa fé através da prática da justiça (cf. 6,33), testemunhar Jesus numa existência humilde, indefesa e sofrida, e não ter medo dos homens, mas assumir a missão de discípulos missionários com coragem contando com a providência e o amor do Pai e sua recompensa no Reino.

O site da CNBB comenta: Aos homens, é impossível entrar no Reino de Deus, mas para Deus, tudo é possível. A salvação não é obra nossa, é ação divina sobre todos nós e é gratuidade do amor misericordioso do nosso Deus que vem ao nosso encontro. Mas, se é obra divina, por que devemos desenvolver o trabalho evangelizador? É porque o próprio Deus, que é amor infinito e poderia ter feito tudo sozinho, quis que todos nós participássemos da divina missão da salvação da humanidade, fazendo de todos nós colaboradores seus. Para nós, cabe corresponder a esse amor através do nosso sim e do anúncio desse Deus amoroso a todas as pessoas.

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