11 de março de 2018 – Quaresma 4º Domingo Ano B

1ª Leitura: 2Cr 36,14-16.19-23

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação: no 1º domingo, a aliança com Noé (Gn 9); no 2º domingo, o sacrifício de Abraão (Gn 22); no 3º, os dez mandamentos no monte Sinai (Ex 20); hoje, no 4º, a destruição do templo e o exílio; no próximo (5º), a promessa de uma nova aliança (Jr 31). O 4º domingo da quaresma chama-se é Laetare (da antífona latim de entrada: “Alegre-te, Jerusalém”), representa um pouco de alegria na expectativa da páscoa durante o tempo austero da quaresma (cor litúrgica opcional: rósea).

Ouvimos hoje o fim do primeiro templo contada pela história cronista (redigida cerca de 300 a.C.) que engloba 1-2Cr, Esd e Ne. Enquanto a história deuteronomista (Js; 1-2Sm; 1-2Rs) contou os acontecimentos desde Josué, dos juízes e da monarquia incluindo os dois reinos, do Norte (dez tribos de “Israel”) e do Sul (duas tribos: “Judá” e Benjamin) até a queda de Jerusalém (586 a.C.), a história cronista se concentra só no reino do sul (1-2Cr) e a continuação da comunidade judaica depois do exílio da Babilônia (Esd; Ne).

Os acontecimentos do nosso texto se situam nas datas históricas:

586 a.C.: Destruição de Jerusalém pelo exército babilônico de Nabucodonosor e exílio dos judeus na Babilônia

539 a.C.: Ciro II, rei da Pérsia, conquista a Babilônia

538 a.C.: Edito de Ciro, permitindo a repatriação dos exilados (2Cr 36; Esd 1)

Todos os chefes dos sacerdotes e o povo multiplicaram suas infidelidades, imitando as práticas abomináveis das nações pagãs, e profanaram o templo que o Senhor tinha santificado em Jerusalém. Ora, o Senhor Deus de seus pais, dirigia-lhes frequentemente a palavra por meio de seus mensageiros, admoestando-os com solicitude todos os dias, porque tinha compaixão do seu povo e da sua própria casa. Mas eles zombavam dos enviados de Deus, desprezavam as suas palavras, até que o furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio (vv. 14-16).

Depois do fim do Reino do Norte pela invasão dos assírios e a destruição da capital Samaria em 722 a.C. (2Rs 17), chega-se ao fim do Reino do Sul, também pelos mesmos motivos, “infidelidade” à aliança com Javé Deus, “imitando práticas abomináveis das nações pagãs” (cf. Dt 18,9-12; 20,18; 2Rs 21,2 e a série de 2Rs 17), desprezando e perseguindo os profetas (“mensageiros” da palavra, “enviados de Deus”). O tema apareceu em Jeremias, o profeta que encerrou uma época, e volta em Zc 1, no início da época seguinte (pós-exílio), e no NT na parábola de Mc 12,1-12p.

O Cronista é um levita que tem interesse no templo em Jerusalém, que os ímpios “profanaram” (cf. Ez 5,11; 9,7), por isso, não menciona explicitamente as injustiças sociais que os profetas também criticavam (cf. Is 1; Jr 7 etc.);

A Bíblia do Peregrino (p. 806) comenta: Parece que o Cronista em pressa de terminar esta etapa e não quer repetir com detalhes os últimos passos da catástrofe. Seleciona e resume dados de 2Rs e do livro de Jeremias. Em compensação, amplia a interpretação religiosa dos fatos, como tinha feito o livro dos Reis na queda de Samaria (2Rs 17).

Os inimigos incendiaram a casa de Deus e deitaram abaixo os muros de Jerusalém, atearam fogo a todas as construções fortificadas e destruíram tudo o que havia de precioso. (Nabucodonosor) levou cativos, para a Babilônia, todos os que escaparam à espada, e eles tornaram-se escravos do rei e de seus filhos, até que o império passou para o rei dos persas. Assim se cumpriu a palavra do Senhor pronunciada pela boca de Jeremias: “Até que a terra tenha desfrutado de seus sábados, ela repousará durante todos os dias da desolação, até que se completem setenta anos” (vv. 19-21).

Os “inimigos” são os babilônios (“caldeus”, v. 17) e seu rei é Nabucodonosor (vv. 13.17), “incendiaram a casa de Deus” (o templo em Jerusalém), “destruíram tudo o que havia de precioso” e levaram o povo ao exílio (cf. vv. 17-18; cf. 2Rs 25,8-30). A arca da aliança que continha as tábuas dos dez mandamentos (cf. Ex 25; 2Sm 6) desapareceu nestas circunstâncias e nunca mais foi achada (cf. Jr 3,16). Na Etiópia, a Igreja copta do lugar diz que tem esta arca guardada, porém, como não a mostra para ninguém, parece ser mais um mito.

O autor cita Lv 26,34s, completado por Jr 25,11 ou 29,11. Para compensar os sábados mal observados, a terra de Israel/Judá fica no repouso por setenta anos (em números redondos).

Jeremias tinha anunciado a destruição de Jerusalém e o fim do exílio após 70 anos (Jr 25,11s; 29,10; cf. Dn 9), número redondo, mas pode ser entendido literalmente fazendo começar a sujeição de Judá já no reinado de Joaquim (609-598 a.C.; cf. 2Rs 24,1: primeira menção de Nabucodonosor). Para os sobreviventes da matança, uma nova etapa de cativeiro em terra estrangeira (cf. Sl 137), repetindo a etapa da escravidão do Egito (cf. as maldições em Dt 28,28.68). O Cronista simplificou, os fatos históricos são mais complexos. A terra continuou ser cultivada, porém menos, porque a deportação não foi completa (cf. Jr 40). Na Babilônia, uns exilados conseguiram certa independência e até prosperidade econômica. Na falta do culto no templo, formaram-se as primeiras “sinagogas” (reuniões de pelo menos 10 homens) para ler e estudar os textos sagrados que foram recolhidos, relidos e acrescentados (cf. Gn 1 e a fonte sacerdotal no Pentateuco).

Ainda no exílio, o profeta Ezequiel anuncia a restauração do país e do templo, e Deutero-Isaías (Is 40-55) vislumbra a ascensão do rei persa, Ciro II, anunciando-o como libertador futuro e quase messiânico: “meu pastor”, “ungido” de Javé (cf. Is 41,2-3.25; 44,28-45,1).

No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do Senhor pronunciada pela boca de Jeremias, o Senhor moveu o espírito de Ciro, rei da Pérsia, que mandou publicar em todo o seu reino, de viva voz e por escrito, a seguinte proclamação: “Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho” (vv. 22-23).

O cativeiro na Babilônia terminou em 538 a.C. com o edito de Ciro (repetido em Esd 1,2s). Os persas haviam conquistado a Babilônia e seguiam uma política de tolerância e respeito para com os costumes e a religião dos povos dominados, que continuavam politicamente dependentes e deviam pagar tributo. O motor da história é Deus: é ele que incitou o rei babilônico, Nabucodonosor, para destruir Jerusalém (cf. v. 17), agora “moveu o espírito de Ciro” para a restauração.

Além da proclamação oral, temos no decreto de Ciro uma proclamação afixada, uma inscrição ou um documento de arquivo, como a de 6,2-8 (cf. 2Cr 30,5-6; Esd 10,7; Ne 8,15).

Numa escrita da época, que os arqueólogos chamam de “cilindro de Ciro”, o rei persa atribuiu sua entrada na Babilônia a Marduk, o deus desta cidade. Ciro não se converteu ao judaísmo, mas parece ter identificado o deus supremo de cada povo com o “Deus do céu” (como é chamado nos atos oficiais) com o deus supremo dos persas, Ahura Mazda (“Senhor sábio), criador do mundo e único digno de adoração.

A religião persa, criada pelo profeta e sacerdote Zaratustra (grego: Zoroastro), era um dualismo, um deus bom (Ahura Mazda) e um deus mal (Angra Mainyu ou Ahrimã), responsável pelas doenças, desastres naturais, pela morte e por tudo quanto é negativo. Da luta (cósmica e dentro de cada pessoa) entre essas divindades, sairia vencedora a divindade do Bem (monoteísmo ético).

A política persa era de tolerância e respeito às culturas e religiões dos povos subjugados. Doutrinas do Zoroastrismo sobre a escatologia (alma imortal, fim do mundo) e demonologia (satanás), como a crença no “paraíso” (palavra persa!) e no inferno, na ressurreição, no juízo final e na vinda de um salvador (messias), viriam a influenciar o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Podemos relacionar o edito de tolerância religiosa por Ciro com o edito de Milão em 313 d.C., no qual César Constantino deu liberdade à religião cristã, antes duramente perseguida no Império Romano; ambos os editos marcaram o começo de uma nova época. Podemos rezar que volte reinar a tolerância religiosa nos estados islâmicos do Irã (a antiga Pérsia) e seus vizinhos (o Iraque e a Síria são a antiga Babilônia e Assíria), incluindo Israel e a Palestina.

Podemos comparar a volta dos judeus depois do exílio no séc. V a.C. com sua volta à terra de Israel no séc. 20 d.C., depois de 1900 anos de diáspora (dispersão depois da destruição do segundo templo pelos romanos em 70 d.C.). A construção do Estado de Israel em 1948 só foi possível com o apoio dos EUA e da ONU, como era antes pelo rei da Pérsia, mas logo enfrentou a hostilidade dos moradores que já estavam instalado lá há tempo (antes os samaritanos; hoje os árabes palestinos desde o séc. VII).

A Bíblia do Peregrino (p. 806) comenta: Quando se separam os livros de Esdras das Crônicas, ou quando colocaram as Crônicas no final da Bíblia Hebraica, repetiram aqui o começo de Esdras. Assim se marca a união, e a cadência dina deste livro é de esperança, analogamente ao que aconteceu no final de 2Rs.

Com esses versículos vv. 22-23 termina a Bíblia hebraica. O final do evangelho de Mt talvez aluda a este final da Bíblia hebraica, porque tem paralelos com o decreto de Ciro, quando Jesus ressuscitado diz: “Toda autoridade no céu e na terra foi entregue a mim”. Só em vez de convocar os judeus para a Jerusalém, Jesus envia os apóstolos para fora, à direção oposta, a todos os povos pagãos e afirma: “Eu estarei convosco…” (Mt 28,18-20; cf. Emanuel = “Deus conosco” em Is 7,14; está no início, no meio e no fim do evangelho: Mt 1,23; 18,20; 28,20).

 

2ª Leitura: Ef 2,4-10

Por volta de 80-90 d.C., um discípulo de Paulo (talvez Epafras, cf. Fm 23; Cl 1,7; 4,12; Fl 2,25-30; 4,18) escreveu em nome de Paulo aos colossenses (Cl) e depois aos efésios (endereço incerta, falta nos manuscritos mais antigos). No cap. 2 de Ef começou expor a situação dos pagãos, antes submissos às forças negativas (vv. 1-2), e a situação de Israel, antes entregue à carne, ou seja, aos instintos egoístas (v. 3). Antes do batismo, ambos, judeus e helenistas, viviam em estado lastimável e sem esperança (cf. Rm 3,9.23). Mas Deus, pela sua graça em Jesus, fez de todos um só povo, para conduzir todos à salvação (2,14; cf. Rm 9,23s). Por sua iniciativa e por causa de sua misericórdia, Deus fez todos passarem da morte para a vida, do pecado para a graça, e permitiu que todos participassem, já antecipadamente, da vida divina, através da ressurreição de Jesus (vv. 4-7). Tudo isso é dom maravilhoso da graça divina, em vista das boas ações a serem praticadas pelos cristãos (vv. 8-10).

Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus em virtude de nossa união com Jesus Cristo. Assim, pela bondade, que nos demonstrou em Jesus Cristo, Deus quis mostrar, através dos séculos futuros, a incomparável riqueza da sua graça (vv. 4-7).

Em 1980, Papa João Paulo II escreveu sua segunda encíclica com este título: Dives in misericórdia.

Aqui, o autor da carta aos efésios aplica e varia livremente os atributos de Deus no Antigo Testamento como “rico em misericórdia”, “amor”, “graça/favor” e “bondade” (Ex 33,19; 34,6; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8).

Aqui, “nós” designa, ao mesmo tempo, os gentios (vv. 1-2) e os judeus (v. 3) e continua o pensamento interrompido pela digressão do v. 3. Deus nos livrou de semelhante estado (ira, rebeldia, paixões da carne, morte) por pura iniciativa: por misericórdia e por amor, não por méritos de obras (cf. vv. 8-9). Primeiro passo da salvação foi a passagem da morte (pecado) à vida (graça); como a passagem pelo batismo em Rm 6,3-11. Depois, enquanto membros de Cristo, nos faz participar, de antemão ou em esperança, da ressurreição e reinado de Cristo. “Ele nos deu a vida com Cristo (variação: no Cristo) … em virtude de nossa união com Jesus Cristo.”  O corpo (nós da Igreja, cf. 1Cor 12) segue em tudo à cabeça (que é Cristo, cf. 1,22s).

“É por graça” (gratuitamente, cf. At 15,11) que “vós sois salvos! Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus.” O tempo dos verbos gregos indicam o estado presente resultante de uma ação passada. Ef encara a salvação, a ressurreição dos que creem e a sua elevação aos céus como realidades atuais. Esta ideia de uma salvação já realizada é esboçada em Cl (cf. Cl 2,12) e caracteriza Ef e Cl com relação às cartas anteriores (autênticas) de Paulo nas quais essas afirmações exprimem um vir-a-ser (cf. os verbos no futuro em Rm 6,3-11; 8,11.17-18) e constituem uma esperança (Rm 8,24).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2198) sustenta o mesmo autor: Aqui e em Cl 2,12; 3,1-4, Paulo encara já como realidade (verbos no passado) a ressurreição e o triunfo celestial dos cristãos, que Rm 6,3-11; 8,11.17 considerava antes como coisas futuras (verbos no futuro). Essa escatologia realizada é um traço característico das epístolas do cativeiro.

Mas muitos peritos consideram as cartas Cl e Ef “deuteropaulinas”, ou seja, cartas que não foram escritas por Paulo, mas por discípulos dele, que desenvolveram a doutrina paulina por volta de 80 d.C.. Uma escatologia presente encontra-se também no quarto evangelho (cf. Jo 3,18; 5,24s etc.).

“Através dos séculos futuros” lit. nos éons futuros. O termo éon significa século, mundo, decurso das idades (cf. 1,21; 2,7; 3,9.11). Aqui no v. 7, o termo éon parece guardar um sentido predominante temporal. Alguns, entretanto, reconhecem-lhe de novo um caráter pessoal (como na mitologia grega, cf. v. 2).

Com efeito, é pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós; é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. Pois é ele quem nos fez; nós fomos criados em Jesus Cristo para as obras boas, que Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos (vv. 8-10).

Em conclusão, somos nova criação de Deus por meio de Cristo e a nós cabem tarefas (“obras”) que não são condição, e sim consequência da salvação e do batismo. As boas obras testemunham que pertencemos à nova criação.

“Fomos criados em Jesus Cristo” (cf. Sl 138,8; Jó 10,8; 2Cor 5,17) “para as boas obras” (Tt 2,14), “que Deus preparou de antemão”; do mesmo modo que a salvação, a vida nova que dela decorre e as obras que a exprimem dependem da graça soberana de Deus. Cabe ao cristão discernir e realizar o que Deus “preparou”. Os vv. 8-10 condensam em algumas frases incisivas a pregação da graça de Deus desenvolvida em Gl e Rm. Mas o tema da justificação, que nessas cartas escritas pelo próprio Paulo constituía a base de demonstração, não mais entra na perspectiva de Ef.

 

Evangelho: Jo 3,14-21

O evangelho de hoje ainda pertence ao diálogo com o velho Nicodemos, conselheiro membro do Sinédrio (cf. 7,48-52; 12,42; 19,34). É o primeiro discurso típico do quarto evangelho (vv. 1-21) e a comunidade do evangelista que fala aqui, não Jesus histórico.

O texto de hoje dá uma interpretação cristológica, descrevendo a serpente no estandarte (Nm 21,4-9) como imagem de Jesus na cruz (v. 14). Nos evangelhos sinóticos, Jesus anunciou sua morte na cruz só depois de certo tempo, na metade do evangelho (cf. Mc 8,31.34p). Em Jo, João Batista indicou o sacrifício de Jesus já no primeiro capítulo, chamando-o “Cordeiro de Deus” (1,29.36). O quarto evangelho não usa a palavra “cruz” (exceto no cap. 19; a cruz era escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, cf. 1Cor 1,23; Gl 3,13; Dt 21,22s), mas fala do suplício em termos de “elevação”.

Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna (vv. 14-15).

Olhando para a serpente de bronze que Moisés levantou num estandarte, os mordidos de serpentes se curavam (Nm 21,8s) pela fé (cf. Sb 16,7.10). É imagem de Jesus exaltado na cruz (8,28; 12,32-34). A serpente era símbolo de astúcia (da tentação e do mal em Gn 3), mas também de sabedoria e poder (na coroa do faraó); na medicina, o veneno de cobras, na dosagem certa, pode servir como remédio para anestesia e contra dor (cf. o símbolo da medicina:

O site Dicionário de Símbolos comenta: O símbolo da medicina é representado pelo Bastão de Asclépio (ou Esculápio), o qual consiste em um bastão, varinha ou haste, com uma cobra entrelaçada. Na mitologia grega antiga Asclépio é o deus da cicatrização, ou da própria medicina… Sua capacidade de curar era tão notável que ganhou a reputação de ressuscitar doentes… Isso porque Asclépio sabia dosar perfeitamente as misturas do sangue de Górgona [Górgonas são terríveis monstros que foram transformados em mulheres de cobra por deusa Athena, por ex. Medusa]. Dada a capacidade de trocar de pele, a cobra constante no símbolo representa o renascimento, bem como a fertilidade.

O título “Filho do Homem” (já em 1,51 e 3,13), em Jo, denota uma insistência sobre a humanidade de Jesus, embora sua origem divina, fortemente acentuada (3,13; 6,62), motive os atos nos quais ele antecipa as prerrogativas escatológicas (5,26-29; 6,27.53; 9,35). O Filho do Homem (cf. Dn 7,13; Mt 8,20; 12,32p; 24,30p etc.) deve ser “levantado”, ao mesmo tempo levantado sobre a cruz e reintroduzido na glória do Pai (1,51; 8,28; 12,32-34; 13,31s).

Jo fala com certo eufemismo da cruz e revela um duplo sentido: Jesus será “levantado” na cruz, quer dizer cumprirá o desígnio do Pai (cf. 19,30) e assim será levantado à glória do céu, de onde saiu (cf. v. 13). A cruz é a volta ao Pai (cf. 13,1.3). Com o mesmo verbo “levantar/elevar”, o evangelista fala da cruz igual à ascensão, e associa a haste da serpente que curava, com a cruz que salva. Na cruz revela-se o maior ato de amor: a doação de sua própria vida em favor dos homens (15,13).

Para ser salvo, será preciso “olhar” para o Cristo “levantado/elevado” na cruz (12,32; cf. Nm 21,8; Zc 12,10 citado por Jo 19,37), isto é, “crer” (vv. 16.18; 6,40; 12,45; 14,9) que ele é o Filho único (3,18; Zc 12,10). Ficar-se-á então purificado graças à água do seu lado traspassado (alusão ao batismo, cf. 3,5; Jo 19,34; Zc 13,1). Fonte de salvação para humanidade é Jesus levantado na cruz (12,32).

Na cruz vai se revelar a “vida” nova, “para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (v. 15). Em vez de falar do “Reino de Deus” (exceto nos vv. 3.5) como os outros três evangelistas, o quarto evangelista prefere falar da “vida”, eterna ou plena (cf. 1,4; 3,36; 4,14; 5,24.26; 6,27.33 etc., cf. 8,12; 10,10; 11,25; 14,6; 20,31; cf. Mc 10,17p).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1991) comenta: Deus, Senhor absoluto da vida (Gn 9,4s; Dt 32,39; Sl 36,10), transmitiu seu poder ao Filho (5,21; 10,18; 17,2). O Filho é a vida (11,25; 14,6), ele tem em si a vida e a dá (5,26) aos que nele creem (1,4. 12; 4,14; 5,24; 6,35; 20,31). Essa vida é simbolizada pela água (4,14) e alimentada pela palavra (6,35). Ela é frequentemente qualificada de “eterna”, palavra que denota uma qualidade propriamente divina, pela qual a vida ultrapassa o que é corporal e o tempo, a duração mensurável (cf. Gn 21,3; Is 40,28; Sl 90,2; Sl 90,2; Sb 5,15-16; etc.). Ela é prometida aos que creem (cf. 2 Cor 4,18), mas já lhes é dada (3,36; 5,24; 6,40.68; 1Jo 2,25) e se consumará na ressurreição (6,39-40.54; 11,25-26; cf. também Mt 7,14; 18,8; 19,16).

Como os israelitas olharam com fé para a serpente de bronze e foram curados da picada da cobra, os cristãos olham para o crucifixo com fé e serão salvos da mordida do diabo, que é a morte (cf. Gn 3). A serpente de bronze livrou de uma morte repentina, Jesus crucificado dará a vida eterna. Como era necessário eliminar elementos mágicos da história da serpente (Sb 16,5-14), deve-se evitar uma devoção mágica de imagens de Jesus e dos santos. Não é a imagem que opera milagres, mas a pessoa representada por ela. Mas uma imagem de Jesus na cruz é um auxílio forte para ter fé em Deus que está conosco também nas dificuldades (sofrimento e morte); não nos abandona nunca, mas nos ama até as últimas consequências.

O site da CNBB comenta (na festa da Exaltação da Santa Cruz): Todos os que creem no Filho de Deus elevado entre o céu e a terra, suspenso na cruz, recebem dele a vida eterna. A cruz, instrumento de suplício e de maldição, torna-se, em Jesus Cristo, instrumento de salvação para todas as pessoas. Por isso, somos convidados a nos associar à cruz de Cristo. Quando falamos em união à cruz, logo pensamos em sofrimento, mas devemos pensar em algo que é mais importante que o sofrimento: Jesus, no alto da cruz, não era nada para si, mas todo para os outros, nos mostrando, assim, que cruz significa não viver para nós mesmos, mas fazer da nossa vida um serviço a Deus e aos irmãos e irmãs. A cruz só pode ser verdadeiramente compreendida sob o horizonte do amor maior.

Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele (vv. 16-17).

“Deus amou tanto o mundo”. Em Jo, o “mundo” pode significar, como aqui, toda criação amada por Deus (17,5.24; Sb 11,24) ou a terra habitada por seres humanos (17,25; 16,21). Muitas vezes, porém, é o mundo que se afastou de Deus, a humanidade perdida que se fechou à luz e odeia os discípulos de Jesus “porque não pertencem ao mundo” como ele também não (17,14).

Deus ama até as últimas consequências (cf. 13,1), “que deu seu Filho unigênito/único”; em vez de “deu” talvez seja melhor traduzir “entregou” (palavra-chave da paixão) “o Filho unigênito” (1,18: “o unigênito que é Deus no seio do Pai”); talvez com alusão oblíqua ao sacrifício ao sacrifício de Isaac (Gn 22,2.16; cf. Rm 8,32; Gl 2,20; 1Jo 4,9-10).

Deus não quer que os homens se percam, nem sente prazer em condená-los (cf. Ez 18,23). Ele manifesta todo o seu amor através de Jesus, para salvar e dar a vida a todos.

De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito (vv. 17-18).

Outra palavra-chave em Jo é “enviar”. Jesus é o enviado do Pai (cf. 4,34; 5,24.36-38; 9,7; 8,42; etc.). “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Como nas cartas de Paulo é apenas a fé que decide sobre salvação ou condenação (Rm 1,16s; 3,21-26; Gl 2,16 etc.); outros destacam as obras de caridade (Tg 2,14-26; Mt 7,21-23; 25,31-46; cf. 1Cor 13,13).

Fé é acolher Jesus (1,12; 5,34), conhecer e reconhecê-lo como enviado do Pai (6,29; 12,44; 14,1.10; 17,8,21-25; 20,31). Quem crê, será salvo, terá a vida eterna (vv. 16.18; 5,25; 10,26-28). Como contrário à “salvação”, entende-se aqui o “julgamento” de condenação (vv. 17-19). A incredulidade se fecha ao dom do amor, e com isso fica julgada e condenada.

Ora, o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus (vv. 19-21).

A palavra grega krisis significa julgamento/condenação e distinção/separação. No princípio, “Deus separou a luz das trevas” (Gn 1,4): ao vir ao mundo, Jesus, a luz do mundo, atua um julgamento de separação de acordo com a reação dos homens (8,12; 12,46-48).

O tema se desenvolve com a imagem clássica da luz e das trevas (Jo 1,5; Is 5,20: inversão de valores). Deus “amou” o mundo (Rm 8,32; 1Jo 4,9), os homens “amaram” as trevas (cf. Sb 17,4 e, referido à morte, Sb 1,16). O perverso busca a escuridão para agir impunemente, como refúgio no delito (Jó 24,14; Eclo 23,18-19). A luz de Jesus manifesta a realidade do ser humano (Sl 90,8). O fato de que Deus quer salvar este mundo que não o merece, e ainda dar (entregar) o mais precioso que ele tem, o seu Filho unigênito, é o milagre do seu amor.

Em v. 14, a cruz já foi anunciada no símbolo da serpente de bronze. O Papa Francisco falou na Sexta-feira Santa (2013) no Coliseu: “Nesta noite, deve permanecer uma única palavra, que é a própria Cruz. A Cruz de Jesus é a Palavra com que Deus respondeu ao mal do mundo. Às vezes parece-nos que Deus não responda ao mal, que permaneça calado. Na realidade, Deus falou, respondeu, e a sua resposta é a Cruz de Cristo: uma Palavra que é amor, misericórdia, perdão. É também julgamento: Deus julga amando-nos. Lembremo-nos: Deus julga amando-nos. Se acolho o seu amor, estou salvo; se o recuso, estou condenado, não por Ele, mas por mim mesmo, porque Deus não condena, Ele unicamente ama e salva.”

O site da CNBB comenta: A vinda de Jesus ao mundo é a grande manifestação do amor misericordioso de Deus, que não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva, e por isso manda o seu próprio Filho, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele, ou seja, pelo mistério de sua paixão, morte e ressurreição, todas as pessoas que querem viver segundo a luz, realizando as obras de Deus, e fugir das obras das trevas, fugir do pecado e das suas consequências, deixam de ser escravas do pecado e da morte e tornam-se livres, filhos e filhas de Deus, para viver segundo a graça e caminhar na esperança de que viverá eternamente junto de Deus.

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