11 de Março de 2020, Quarta-feira – Quaresma: Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (v. 28).

2ª Semana da Quaresma 

Leitura: Jr 18,18-20

Ouvimos hoje a quarta das cinco “confissões” do profeta Jeremias (11,18-23; 12,1-6; 15,10.15-20; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18). Nestas se queixa amargamente do seu isolamento em que se encontrava porque “veio a palavra do Senhor” (1,2; 2,1 etc.) para ele anunciar a destruição de Judá e Jerusalém por uma invasão vindo do norte, pelo exército babilônico (1,14-15; 6,22-23 etc.). Mas esta mensagem está na contramão da sociedade com seus representantes políticos (reis, ministros, proprietários de terra, cf. 1,18) e suas lideranças religiosas apoiando uma política de progresso ilusório que só levará à destruição. Suas alianças com cultos estrangeiros e países traiçoeiros não poderão evitar a tomada de Jerusalém (pelo rei babilônio Nabucodonosor em 586 a.C.). Mas Jeremias está sozinho com sua visão, e sua voz incomoda a propaganda oficial do governo (cf. 6,13s; 7,10; 8,10s; 14,13; 23,17). As autoridades começam a perseguir e ameaçar o profeta solitário (cf. 4,19.21).

Disseram eles: “Vinde para conspirarmos juntos contra Jeremias; um sacerdote não deixará morrer a lei; nem um sábio, o conselho; nem um profeta, a palavra. Vinde para o atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras” (v. 18).

Os adversários não precisam de Jeremias, porque os chefes espirituais os apoiam com mentiras, profecias falsas e distorções da palavra de Deus (cf. 2,8; 5,31; 6,13; 8,8; 23,9-32). A atividade das três categorias (sacerdotes, sábios e profetas da corte) não será paralisada por um único agitador (mas cf. Sl 118,22). Interessante é a atribuição de cada categoria: a “lei” (de Moisés, o culto, a pureza etc.) ao sacerdote; o “conselho” (educação, sabedoria) aos sábios; a “palavra” inspirada ao profeta.

“Vinde para atacarmos com a língua, e não vamos prestar atenção a todas as suas palavras” (v. 18b; cf. 9,2.7; Lc 11,53s). O profeta verdadeiro há de lutar contra interrogatórios, calúnias, armadilhas, indiferença e aversão à verdade (cf. o testemunho de Jesus em Jo 8,32.43s; 14,6; 18,37s e os pecados da língua em Tg 3).

Atende-me, Senhor, ouve o que dizem meus adversários. Acaso pode-se retribuir o bem com o mal? Pois eles cavaram uma cova para mim. Lembra-te de que fui à tua presença, para interceder por eles e tentar afastar deles a tua ira (vv. 19-20).

Não tendo a quem recorrer em sua defesa, Jeremias dirige-se a Deus, pedindo justiça, “Atende-me Senhor, … acaso pode-se retribuir o bem com o mal? Pois eles cavaram uma cova para mim” (vv. 19-20, cf. Sl 35,17-12; 32,21; 109,5; Pr 17,30). Jeremias fica amargamente decepcionado, porque os inimigos querem calar para sempre sua língua que denuncia, mais também intercede.

“Lembra-te de que fui a tua presença para interceder por eles e tentai afastar deles a tua ira” (v. 20; cf. 7,16). Agora a intercessão se converte em pedido de sentença capital e nos versículos seguintes (omitidos por nossa liturgia), Jeremias pede a desgraça para seus adversários (vv. 21-23; cf. Sl 109). Eles zombaram: “Onde está a palavra do Senhor? Que ela se cumpra!” (17,15). Agora Jeremias pede: “Senhor, tu conheces seu plano homicida contra mim; … não perdoe suas culpas, executa-os no momento de ira” (v. 23). Tal convite à vingança divina contra os inimigos encontra-se em muitos salmos que pedem justiça. Jeremias não conhece ainda o mistério da justiça transcendente de Deus (cf. Jó; Is 53,12; Ez 37,1-14; Dn 12,2-3; Sb 3 e Lc 16,19-31, evangelho de amanhã).

Ele ainda está distante (600 anos antes) do Novo Testamento (NT) em que Jesus convida seus discípulos a perdoar e amar os inimigos, mas a trajetória, perseguição e sofrimento deste profeta por causa da palavra já prefiguram a paixão de Cristo (cf. Sl 118,22; Mc 12,1-12; Lc 11,48-59).

Evangelho: Mt 20,17-28

No evangelho de hoje, Jesus anuncia pela terceira vez sua paixão em Jerusalém (16,21-23p; 17,22-23p; 20,17-19). Aos três anúncios da paixão, Mc opôs cada vez a incompreensão dos discípulos. Mt e Lc atenuaram esta incapacidade, porque no tempo deles (80 a 90 d.C.), os apóstolos falecidos já ganharam o status de santos veneráveis.

Enquanto Jesus subia para Jerusalém, ele tomou os doze discípulos à parte e, durante a caminhada, disse-lhes: “Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes e aos mestres da Lei. Eles o condenarão à morte, e o entregarão aos pagãos para zombarem dele, para flagelá-lo e crucificá-lo. Mas no terceiro dia ressuscitará” (vv. 17-19).

Mt copiou este terceiro anúncio da paixão de Mc 10,32-34 (mas sem o medo dos discípulos que também é omitido em Lc 18,31). Em Mt 16,21, já no primeiro anúncio, o “Filho do Homem” (Jesus usava este termo com frequência, cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.; Dn 7,13s) devia ir “a Jerusalém” para sofrer. Jerusalém fica 800 metros acima do nível do mar, por isso precisa “subir” para lá. Neste terceiro anúncio, ouvimos mais detalhes sobre a paixão e explicitamente menciona-se a crucificação (cf. 16,24p; 26,2).

A mãe dos filhos de Zebedeu aproximou-se de Jesus com seus filhos e ajoelhou-se com a intenção de fazer um pedido. Jesus perguntou: “O que tu queres?” Ela respondeu: “Manda que estes meus dois filhos se sentem, no teu Reino, um à tua direita e outro à tua esquerda” (vv. 20-21).

Em Mc 10,35-37 foram os próprios apóstolos, Tiago e João, “filhos de Zebedeu” (cf. Mc 1,19s; Mt 4,21s) que fizeram o pedido direto e ambicioso: sentar-se à direita e a esquerda de Jesus na sua “glória” (Mt: “no teu Reino”). Lc omite esta pretensão, enquanto em Mt 20,20 é a “mãe” deles que pede e ainda vem com devoção, “aproximou-se de Jesus com seus filhos e ajoelhou-se”.

O pedido da mãe pode recordar as manobras de Betsabeia em favor do seu filho Salomão (1Rs 1,15-21) e se une com a promessa dos doze tronos no reino (19,28). Entre os doze apóstolos haverá mais íntimos, os imediatos do rei. De fato, Jesus já tinha mostrado preferência por eles, junto com Pedro (cf. 4,21; 17,1). Pretendem os irmãos (e a mãe deles) superar ou antecipar-se a Pedro, passar de segundos a primeiros (cf. 16,18-19; Mc 9,33-35)? Os apóstolos esperam uma manifestação gloriosa e imediata do reino (v. 21), mas está pertence antes à segunda vinda (parusia) de Cristo (cf. 4,17; At 1,6).

A mãe está preocupada em garantir uma posição de prestígio para seus filhos. Jesus estava pensando em se entregar, servir e dar a vida, mas os discípulos estavam pensando nos próprios interesses.

Jesus, então, respondeu-lhes: “Não sabeis o que estais pedindo. Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber?” Eles responderam: “Podemos” (v. 22).

Como em Mc, Jesus responde aos apóstolos (não à mãe). E eles responderam ao desafio: “Podemos”. O cálice é o da paixão (26,27s), a taça amarga da ira do Senhor (cf. Sl 75,9; Is 51,17-23; Jr 25,15-29; 49,12; 51,17; Lm 4,21; Ez 23,32-34; Hb 2,15-16; Ab 16; Zc 12,2).

Em Mc 10,38s, Jesus associa ainda o batismo à sua morte e ressurreição (cf. Rm 6,3s), “podeis… ser batizados com o batismo com que serei batizado?” Mt omitiu esta passagem, talvez por não desvalorizar o batismo por João Batista destacado por Mt em 3,14s.

Então Jesus lhes disse: “De fato, vós bebereis do meu cálice, mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. Meu Pai é quem dará esses lugares àqueles para os quais ele os preparou” (v. 23).

“Bebereis do meu cálice”. Aqui temos outro exemplo que nem tudo o que se pede é concedido da maneira como se imagina; “ainda que não saibamos pedir como é devido” (Rm 8,26; cf. Mt 7,7-11).

“Não depende de mim conceder o lugar” (v. 23b). Jesus não foi enviado para distribuir favores, cargos e recompensas aos homens, mas para salvá-los através da sua cruz (cf. Jo 3,17; 12,32.47).

De fato, a mãe de Tiago e João assistirá a paixão de Cristo de perto (26,55s) e talvez ainda de seus filhos. Quando Mc e Mt escreveram (70 e 80 d.C.), Tiago já sofrera o martírio no ano (At 12,2). O primeiro mártir cristão foi o diácono Estevão (cf. At 6-7), mas Tiago foi o primeiro apóstolo que morreu por sua fé em Jesus Cristo. De João, não sabemos se sofreu o martírio, mas existe também paixão sem chegar ao martírio.

Quando os outros dez discípulos ouviram isso, ficaram irritados contra os dois irmãos. Jesus, porém, chamou-os, e disse: “Vós sabeis que os chefes das nações têm poder sobre elas e os grandes as oprimem. Entre vós não deverá ser assim. Quem quiser tornar-se grande, torne-se vosso servidor; quem quiser ser o primeiro, seja vosso servo (vv. 24-27).

A todos os apóstolos, Jesus fala que ambição e abuso do poder não podem ser modelo para os cristãos. “Entre vós não deve ser assim” (v. 26a). Na Igreja haverá autoridade, mas esta deve ser exercida sem ostentação de poder e com espírito de serviço (cf. Jo 13; 1Pd 5,1-4). “Quem quiser ser o primeiro seja o vosso servo” (cf. 23,11; Mc 9,35; Lc 9,48).

Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (v. 28).

Jesus é o exemplo supremo desta autoridade-serviço, do rei-servo-escravo (cf. Jo 13; Fl 2,5-11) que nos salva, “resgata” pela entrega da sua vida. Os pecados são uma dívida dos homens para com a justiça divina, a pena de morte exigida pela lei (cf. 1Cor 15,56; 2Cor 3,7,9; Gl 3,13; Rm 8,3-4). A fim de libertá-los, Jesus pagará o “resgate” e quitará a dívida com o preço de seu sangue (1Cor 6,20; 7,23; Gl 3,13; 4,5), morrendo “em lugar” ou “em favor” do povo culpado, como o Segundo Isaías profetizou sobre o “Servo de Javé” (Is 53,11s; cf. o “resgate” ou a “libertação” em Rm 3,24; 1Cor 1,30; Ef 1,7.14; 1Tm 2,6; Sl 49,8-10).

A expressão “em favor de muitos” (cf. 26,28; Is 53,11s) opõe o grande número de redimidos ao redentor “único”, sem sugerir que esse número seja limitado (Rm 5,6-21). Por isso, na oração eucarística se pronuncia sobre o cálice: “meu sangue derramado por vós e por todos.” Bento XVI queria que a tradução fosse mais fiel (literal) a Mt 26,28 e Mc 14,24 (“por muitos”), mas admite que a intenção de Jesus era morrer “por todos” (cf. Jo 6,51), no entanto, nem todos aceitam este serviço de resgate que Jesus prestou a toda humanidade.

Naquele tempo, como também hoje, os que tinham o poder não tinham muito interesse pelas pessoas humildes. A política do Império Romano era cobrar impostos e concentrar as riquezas, sem interesse pela vida real dos mais pobres. Jesus insiste em afirmar a atitude de serviço (cf. o lema da CF 2015: “Eu vim para servir”, lembrando que o Vaticano II destacou que a Igreja deve servir à sociedade, não exigir o contrário). Quando o império se destruiu pelos seus problemas internos, a comunidade cristã poderá oferecer um modelo alternativo de vida, solidariedade como eixo principal. Assim St.º Agostinho refletiu a queda o império romano na sua obra “De civitate Dei” para orientar uma sociedade medieval cristã depois.

“Não teremos nenhuma comunhão com Jesus, se não nos abaixarmos para acompanhar o seu abaixamento, se não nos entregarmos com ele” (S. Kierkegaard).

O site da CNBB comenta: Nós todos, que nos dizemos discípulos e discípulas de Jesus, não podemos deixar os critérios do Evangelho para viver segundo os critérios do mundo. No mundo, autoridade significa ocasião para a tirania, a opressão e a busca da satisfação dos próprios interesses, sejam de quais naturezas forem. O próprio Jesus nos fala que entre nós não deve ser assim. Ele é o modelo de autoridade para todos nós, pois sendo verdadeiro Deus, o Senhor de tudo, se fez servidor dos homens e despojou-se de tudo, desde a sua condição divina até a sua vida humana, para nos resgatar e nos fazer participantes da vida divina.

Na festa de S. Tiago (25.07, com o mesmo evangelho) o site da CNBB comenta: Estamos vivendo em uma época que é marcada pela diferença vista não pelo critério da complementariedade, mas pelo critério da oposição e da hierarquia. Este fato faz com que vivamos em uma sociedade marcada pelo conflito e pela disputa constante de supremacia sobre os demais, de modo que o outro é sempre um concorrente, não é nunca irmão ou irmã, companheiro de caminhada na construção do Reino de Deus. O Evangelho de hoje nos mostra que esses valores que fundamentam a vida das pessoas não vêm de Deus e nem conduzem para Deus. Somente a fraternidade, a justiça e o amor vão possibilitar um mundo marcado pela convivência pacífica entre os seres humanos.

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