11 de setembro de 2016 – 24º Domingo Ano C

1ª leitura: Ex 32,7-11.13-14

A 1ª leitura foi escolhida em vista do perdão que Deus concede à quem estava perdido (no evangelho de hoje: a ovelha desgarrada, o filho pródigo). No AT, o povo de Israel é comparado a um rebanho (cf. Sl 23; Ez 34), também é filho predileto de Deus (Ex 4,22; Dt 1,31; Os 11,1 etc.). Ouvimos nesta leitura a intercessão de Moisés em favor do seu povo que acabou de cair no pecado da idolatria, adorando um “bezerro de ouro” como deus libertador.

O Senhor falou a Moisés: ”Vai, desce, pois corrompeu-se o teu povo, que tiraste da terra do Egito. Bem depressa desviaram-se do caminho que lhes prescrevi. Fizeram para si um bezerro de metal fundido, inclinaram-se em adoração diante dele e ofereceram-lhe sacrifícios, dizendo: ”Estes são os teus deuses, Israel, que te fizeram sair do Egito!” (vv. 7-8).

Moisés ficou no monte Sinai “quarenta dias e quarenta noites” (Ex 24,18) para receber “as duas tábuas” (31,18) com os dez mandamentos (Ex 20), e outras leis para seu povo (o código da aliança, caps 21-23, e a grande inserção da redação sacerdotal, caps. 25-31). Mas sem o líder no meio deles, os israelitas ficaram desorientados e desejaram uma representação mais concreta deste Deus invisível; obrigaram Aarão a fabricar uma imagem dourada de um touro, chamado por Deus de maneira desprezível “bezerro de metal” (v. 8).

Adoraram esta imagem e ofereceram-lhe sacrifícios, dizendo “Estes são os deuses de Israel, que te fizeram sair do Egito” (v. 8). Esta aclamação cabe a Javé Deus que se apresentou antes de pronunciar os dez mandamentos: “Eu sou o Senhor (Javé), teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2), e contraria o primeiro mandamento em seguida: “Não terás outros deuses fora de mim. Não farás para ti imagem… e não te prostrarás diante desses deuses” (Ex 20,3-5). Por isso, Deus reclama: “Bem depressa desviaram-se do caminho que lhes prescrevi” (v. 7). Esqueceram-se da libertação da escravidão, da passagem pelo mar Vermelho, da voz de Deus no Sinai e do primeiro dos dez mandamentos (cf. Ex 13-14; 19-20).

Recaíram nos costumes da religião politeísta dos egípcios que representaram muitos dos seus deuses com corpos humanos, mas com cabeças de animais. Javé, o único Deus verdadeiro, porém, é diferente, é absolutamente transcendente e não deve ser confundido com nenhuma criatura nem ser representado por uma imagem de uma criatura. Esse é o primeiro mandamento do Sinai: “Não tenha outros deuses fora de mim e não faça para você ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não se prostre diante desses deuses, nem sirva a eles, porque eu, Javé seu Deus sou um Deus ciumento” (20,3-5).

Obs.: O primeiro mandamento que se aprende na catequese católica é: “Amar a Deus sobre todas as coisas”, mas não se encontra na Bíblia com estas palavras. É uma síntese da resposta de Jesus (quando perguntado sobre o maior dos mandamentos, responde em Mc 12,30p citando Dt 6,5: “Amar o Senhor, teu Deus com todo teu coração…”) e da proibição da idolatria em Ex 20,3-5, mas sem falar de “imagens”, só de “coisas” (criaturas).

Hoje, porém, na disputa com os protestantes, faz-se necessário, ensinar os mandamentos conforme do texto bíblico (AT, NT) e explicar bem porque os cristãos podem produzir e venerar (não adorar!) imagens de Jesus e dos santos sem cair no erro da idolatria: é por causa da encarnação do próprio Deus invisível no homem de Nazaré, Jesus (cf. Jo 1,14; 14,9; Cl 1,15).

E o Senhor disse ainda a Moisés: ”Vejo que este é um povo de cabeça dura. Deixa que minha cólera se inflame contra eles e que eu os extermine. Mas de ti farei uma grande nação” (vv. 9-10).

Depois deste pecado com o bezerro do ouro, Deus não quer mais reconhecer este seu povo “de cabeça dura” (lit. “de nuca dura” como novilho que rejeita a canga: Ex 32,9; 33,3; 34,9; Dt 9,6.13; Pr 29,1; Jr 7,26; Br 2,30; At 7,51), mas quer exterminá-lo e somente fazer da descendência de Moisés “uma grande nação” (cf. v. 10). Moisés seria um novo começo como Abraão o foi (cf. Nm 14,12; Gn 12).

Moisés, porém, suplicava ao Senhor seu Deus, dizendo: ”Por que, ó Senhor, se inflama a tua cólera contra o teu povo, que fizeste sair do Egito com grande poder e mão forte? (v. 11)

Moisés intercede por seu povo apresentando dois argumentos: a honra de Deus (v. 12 omitido pela nossa liturgia) e o juramento da aliança (v. 13). Se Deus acabasse com seu povo infiel no deserto, os inimigos egípcios diriam: “Foi com má intenção que ele os tirou, para fazê-los perecer nas montanhas e exterminá-los da face da terra” (v. 12). Toda vez que intercede pelo povo (Ex 32,12; 34,9; Nm 14,13-20; Dt 9,25), Moisés desenvolve este mesmo argumento: ao intervir na história de Israel, Deus se comprometeu de maneira irrevogável. Ele não pode contradizer-se sem comprometer a própria honra (“seu santo nome” em Ez 36,16-23).

Lembra-te de teus servos Abraão, Isaac e Israel, com os quais te comprometeste por juramento, dizendo: ‘Tornarei os vossos descendentes tão numerosos como as estrelas do céu; e toda esta terra de que vos falei, eu a darei aos vossos descendentes como herança para sempre’” (v. 13).

Com grande ousadia, Moisés chama atenção de Javé Deus mostrando que ele está comprometido por causa da sua promessa aos antepassados, aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó-Israel (cf. Gn 12,7; 15,5; 22,16-17; 26,3; 28,13). Esta aliança selada por “juramento” deve permanecer para sempre, mesmo sendo ameaçada.

E o Senhor desistiu do mal que havia ameaçado fazer ao seu povo (v. 14).

Deus cede aos argumentos de Moisés e perdoa (Nm 14,20), porque é o Senhor (Javé) é um “Deus misericordioso e benevolente, lenta para cólera, cheio de fidelidade e lealdade” (Ex 34,6) que “volta atrás da sua decisão de fazer o mal” (Jn 3,10; 4,2).

Este voltar atrás por misericórdia não se deve interpretar como fraqueza ou inconsequência, pelo contrário expressa o poder da intercessão e a fé em Deus todo-poderoso, justo e misericordioso ao mesmo tempo: “Teu grande poder está sempre a teu serviço, … mas te compadeces de todos, pois tudo podes, fechas os olhos diante dos pecados dos homens para que se arrependam. Sim tu amas tudo o que criaste, … se alguma coisa tivesse odiado, não a terias feito… Mas a todos perdoas, porque são teus; Senhor, amigo da vida” (Sb 11,21-26)

As grandes figuras da Bíblia sempre intercedem pelo povo (cf. Abraão em Gn 18,16-33; Jesus em Jo 17 etc.). O projeto de libertação não pode ser elitista (continuar só com Moisés), mas há de contar com as fraquezas e ambiguidades do povo.

No texto base da CF 2014 (nº 161) comenta-se: Adorar realidades criadas no lugar de Deus (cf. Is 10,11; Jr 9,13ss; Ez 8,17ss) é a maior das imbecilidades. “De sua prata e de seu ouro fizeram ídolos cujo destino é serem destruídos” (Os 8,4b; cf. Os 13,2; Jr 14,22; Is 40,12ss).

O episódio mostra também que as crenças seculares não se mudam em poucos dias. Os israelitas permaneceram 400 anos no Egito e tinham assimilado muitos de seus costumes e deuses ídolos. Quando chegaram ao Sinai, 50 dias (Pentecostes) após a libertação da escravidão (Páscoa), sua fé no único Deus Javé ainda era fraca. Erraram durante os 40 anos de caminhada no deserto, porque precisava de uma nova geração que seria capaz de viver a liberdade na terra prometida e a fidelidade na aliança com seu Deus. Mais de 1000 anos depois, a encarnação do Filho de Deus mudou o conceito de ídolos. Enquanto Deus era invisível, valia a proibição de ídolos (imagens que representam Deus). Mas em Jesus, Deus se fez visível (cf. Cl 1,15), a Palavra invisível se fez carne (cf. Jo 1,1-14). Não há mais o perigo de desvio imaginando Deus como um monstro (cabeça de animal), mas “quem me vê, vê o Pai”, disse Jesus (Jo 14,9). Portanto para os católicos e ortodoxos, fazer imagens de Jesus e dos santos não é uma idolatria, mas uma profissão de fé no verdadeiro Deus que se tornou homem em Jesus Cristo. Muitos protestantes, porém, pregam a visão do Antigo Testamento e consideram imagens de Jesus e dos santos como idolatria. Devemos entender idolatria num sentido mais amplo: adorar “coisas” que não são Deus; colocar coisas, ideias e sentimentos, criaturas e pessoas acima de Deus é idolatria. Por isso a catequese ensina como primeiro mandamento: Amar a Deus sobre todas as coisas.

2ª leitura: 1Tm 1,1-2.12-14

Nos próximos domingos ouvimos trechos das duas carta a Timóteo. Junto com a carta a Tito, formam um conjunto à parte na literatura do NT. Não se dirigem a uma comunidade, mas a seus pastores, pessoas individuais que possuem uma responsabilidade no governo, no ensino e no comportamento destas comunidades cristãs. Porque apresentam diretrizes para estes pastores, desde o séc. 18 são chamadas “Cartas Pastorais”. São comumente atribuídas a São Paulo, mas muitos exegetas (peritos na interpretação da Bíblia) atribuem-nas à terceira geração cristã (quem não concorda tem que admitir pelo menos três fases diferentes das 14 cartas de Paulo):

  • Só sete cartas são realmente do próprio Paulo (Rm, 1 e 2Cor, Gl, Fl, 1Ts e Fm). As outras, provavelmente, foram escritos por discípulos dele, mas em nome de Paulo. Estes não queriam falsificar, mas havia um costume de época chamado “pseudepigrafia” que existia já no AT (ex. Deutero- e Trito-Isaías), ou seja, escrever em nome do mestre falecido para homenageá-lo e mostrar a continuidade no espírito dele.
  • Na segunda geração apostólica escreve-se Ef e Cl (cerca do ano 80) afirmando uma evolução da igreja e uma teologia mais avançada: o evangelho foi “anunciado a toda criatura” e “frutifica e cresce no mundo inteiro” (Cl 1,6.23).
  • Já da terceira geração (cf. 2Tm 1,5) são 2Ts e as “cartas pastorais”: 1 e 2Tm e Tt (anos 90 a 100), em que a expectativa da parusia imediata (a volta de Jesus em breve) cede lugar à uma inculturação no cotidiano do Império Romano: Já que Jesus não está voltando logo, devemo-nos arranjar de maneira positiva, equilibrada e sem exageros, e seguir a “sã doutrina” (1Tm 1,10) no mundo em que vivemos. Alguns itens radicais de Paulo são retirados (por ex. em 1Tm 2,9-15 diminui-se a igualdade da mulher de Gl 3,28), porque já não é tempo de inovação ou revolução, mas de tradição e preservação (“depósito da fé”: 1Tm 6,20; 2Tm 1,14), de organização (bispos-presbíteros, diáconos (cf. 1Tm 3,1-13; 5,17-24; Tt 1,5-9), de evangelização tranquila (não provocar perseguições por motivos secundários) e vida moral (burguês?) em face das heresias que surgiram, “fabulas, controvérsias, vãos problemas” (cf. 1Tm 1,4; 4,3; 6,4). O estilo é de uma regularidade harmoniosa, que contrasta com o ímpeto das antigas epístolas do apóstolo.

O valor destas cartas para os cristãos, porém, independe do autor ser o próprio Paulo ou um discípulo dele, mas do fato de serem inspiradas por Deus e importantes para a Igreja entender a si mesma.

O destinatário Timóteo (v. 2) é um dos discípulos mais fieis (At 16,1-3; 17,14s; 18,5; 19,22; 20,4; 1Ts 3,2.6; 1Cor 4,17; 16,10; 2Cor 1,19; Rm 16,21). Ele podia ser uma fonte dos Atos dos Apóstolos quando o sujeito da narração das viagens de Paulo muda para a primeira pessoa do plural (“nós” a partir de At 16,10, etc.). Conforme os Atos, Timóteo nasceu em Listra, na Licaônia, filho de pai grego e mãe judeu-cristã, Paulo permitiu que ele fosse circuncidado (At 16,1-3) para não escandalizar os judeus. Ao passar por Listra, na sua segunda viagem missionária, Paulo tomou Timóteo consigo como companheiro de viagem para a Europa (Grécia). Timóteo ficou em Bereia quando Paulo teve que fugir (At 17,14s) e depois se juntou a Paulo em Corinto. Foi mandado para a Macedônia antes da terceira viagem de Paulo (At 19,22) e estava no grupo de Paulo no fim da terceira viagem cerca de 64-65 d.C. (cf. At 20,4).

A carta 1Tm apresenta Timóteo como responsável pela igreja de Éfeso (1,3; cf. At 19). É chamado carinhosamente ”filho verdadeiro na fé” (v. 2), título comum na relação mestre-discípulo (cf. Fl 2,22; cf. Fm 10; 1Cor 4,15; Gl 4,19). O motivo da carta são certas confusões em Éfeso: Falsos mestres transformam a Lei em especulações, fábulas, discussões e vãos discursos, em vez de ensinar a “sã doutrina” do evangelho (cf. vv. 3-11, omitidos pela leitura de hoje).

Agradeço àquele que me deu força, Cristo Jesus, nosso Senhor, pela confiança que teve em mim ao designar-me para o seu serviço, a mim, que antes blasfemava, perseguia e insultava. Mas encontrei misericórdia, porque agia com a ignorância de quem não tem fé. Transbordou a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus (vv. 12-14).

Depois de saudar o(s) destinatário(s) (vv. 1-2), o costume nas cartas de Paulo era agradecer pela fé, esperança e caridade da comunidade (1Ts 1,2-3; 2Ts 1,3-5; Cl 1,3-5). Aqui o autor da carta dá graças a Deus por sua própria conversão e vocação (At 9), “àquele que me deu força” (cf. Fl 4,13; At 9,22), me considerou “digno de confiança” (1,12; cf. 1,15), apesar de ter sido perseguidor violento da Igreja que antes “blasfemava, perseguia e insultava” (cf. At 9 1-2; Gl 1,13; Fl 3,6), apesar da sua “ignorância” (cf. At 3,17; 13,27; 17,30) encontrou “misericórdia… graça”, “a fé e o amor” em Cristo.

Segura e digna de ser acolhida por todos é esta palavra: (v. 15a)

Esta é uma fórmula típica das cartas pastorais (1,15; 3,1; 4,9; 2Tm 2,11; Tt 3,8): “Merece confiança, esta palavra” (“Segura e digna… é esta palavra”). Com ela se garante enfaticamente o valor do que se afirma ou cita.

Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores (v. 15b)

A frase seguinte encontra-se quase literalmente em Lc 15,2; 19,10; Mc 2,17p. Em meio à confusão de ideias e interpretações, é importante voltar sempre ao sentido profundo e primeiro do Evangelho: “Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores”, cf. o resumo em Jo 3,17: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar (julgar) o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. A salvação, portanto, é ato de graça e se confirma como graça abundante porque é oferecida gratuitamente aos pecadores, isto é, a todos aqueles que jamais poderiam merecê-la.

E eu sou o primeiro deles! Por isso encontrei misericórdia, para que em mim, como primeiro, Cristo Jesus demonstrasse toda a grandeza de seu coração; ele fez de mim um modelo de todos os que crerem nele para alcançar a vida eterna (vv. 15c-16).

Paulo é exemplo vivo do Evangelho da graça. Paulo é apresentando como “modelo de todos os que crerem”, esperançoso para outros, enquanto que Paulo nas cartas antigas propunha como exemplo a fé de Abraão (Rm 4; Gl 3).

O povo de Deus não é formado por pessoas que nunca erraram, mas por pecadores que se convertem e são salvos por pura graça. Os atributos clássicos de Deus (cf. Ex 34,6), compaixão (misericórdia) e paciência (grandeza de coração), são atribuídos a Cristo com toda a naturalidade. A salvação (“alcançar a vida eterna”) se obtém pela fé em Jesus Cristo.

Ao Rei dos séculos, ao único Deus, imortal e invisível, honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém! (v. 17).

O primeiro título desta doxologia (fórmula de louvor), “rei dos séculos”, se encontra em Tb 13,1.6(7).11(13), os “séculos” podem ser as eras da história.

Evangelho: Lc 15,1-32 (ou 1-10)

No caminho de Jesus a Jerusalém, Lc insere uma série de parábolas, mas ampla que a do cap. 8. São três sobre a misericórdia (cap. 15) e mais duas sobres o uso de bens (cap. 16). No cap. 15, apresenta a misericórdia de Jesus numa sólida unidade literária por uma introdução e por três parábolas num paralelismo e progressão (de 99 ovelhas, uma perdida; de 10 moedas, uma perdida; de dois filhos, um pródigo). Tema comum das três parábolas é a alegria de achar o que estava perdido (cf. as conclusões em vv. 6.9.24.32).

A Bíblia do Peregrino (p. 2507) comenta: As três falam do perdão de Deus para o pecador; por isso podemos encabeça-las com o texto clássico: “Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva” (Ez 18,23.32). Predominam nos três os sentimentos, e entre eles, a alegria; e a vantagem de falar com relatos, e não com teorias. Como a ovelha e a dracma, assim i homem, apesar de pecador, é propriedade de Deus: “Perdoas a todos porque são teus, Senhor, amiga da vida” (Sb 11,26).

Os publicanos e pecadores aproximaram-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (vv. 1-2).

As três parábolas são provocadas por uma crítica dos fariseus: Jesus se mistura com gente não recomendável e até come junto com ela. Como em 5, 30 e 7,34, os coletores de impostos (“publicanos”) são mencionados com os “pecadores” (públicos) condenados pelos “fariseus” (cf. 5,29s; 18,9-14). Em face dos “justos” (5,32p) que se indignam como Jesus “acolhe os pecadores”, este acolhimento exprime a alegria que Deus sente ao reencontrar seus filhos perdidos, e convida os fariseus a participarem desta alegria (especialmente na parábola do filho pródigo na cena final de vv. 25-32).

Então Jesus contou-lhes esta parábola: Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? (vv. 3-4).

As duas primeiras parábolas são rigorosamente paralelas e têm inícios interrogativos, frequentes nas parábolas de Lc (cf. 11,5; 14,28.31; 15,4.8; 17,7; cf. 11,11; 12,25s; 14,5). Este método corresponde à pedagogia de Jesus (cf. 10,26; 20,3; 24,17.19).

A primeira parábola toma uma imagem clássica do pastor e seu rebanho (cf. 12,32). Deus como bom pastor é motivo frequente (cf. Ez 34,11s; 20,34; Sl 23; 79,13; 95,7; 199,3; Is 40,11; cf. Mt 9,36; 15,24; 26,31; Jo 10). O rei-pastor vai à luta para resgatar uma ovelha (1Sm 17,34-36; cf. Mq 4,6s; Jr 23,1-4; Ez 34,11-16). As noventa e nove ficam em lugar seguro, o “deserto” é pastagem usual na Palestina, corresponde às montanhas de Mt 18,12.

Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: “Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida!” (vv. 5-6).

Esta parábola tem seu paralelo em Mt 18,12-14 (Mt e Lc a tomaram da fonte Q), mas enquanto Mt a aplica à responsabilidade dos chefes da Igreja em relação aos pequenos das suas comunidades, Lc mostra Deus procurando o pecador e descreve uma alegria maior. Leva a ovelha nos ombros (como em Is 40,11). Ela representa apenas 1% da sua propriedade, mas alegra-se com uma alegria incontida e comunicativa, como se tivesse uma relação pessoal e não simplesmente econômica (cf. a parábola de Natã em 1Sm 12,1-4). O convite a participar da sua alegria (cf. Mt 25,21.23) se encontra também nos vv. 9.23s.32 e é para Lc um traço capital. Ele prepara a reposta final de Jesus às murmurações dos fariseus (vv. 7.10; cf. v. 32).

Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (v. 7).

A alegria sobe ao “céu” (provavelmente significa o próprio Deus, cf. v. 10; Mt 16,19; 18,18). A frase é audaz: no céu se festeja o acontecimento da conversão de um só pecador. Os rabinos contemporâneos falavam da alegria de Deus sobre a ressurreição dos justos e o declínio dos pecadores.

A frase lembra a justificativa de Jesus em 5,31s: “Os sãos não tem necessidade de médico e sim os doentes. Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento.” O contexto que Lc atribui a esta parábola e as suas críticas contra a “justiça” dos fariseus (5,32; 16,15; 18,9; cf. 20,20) sugerem que Lc pensa em falsos justos que deveriam reconhecer a necessidade de se converter.

E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? (v. 8).

Novamente, Lc inicia a parábola com uma pergunta. Desta vez, o caso parece mais modesto à primeira vista. Mas a mulher é bem mais pobre, só tem dez moedas de prata (lit. dez “dracmas”; esta moeda grega corresponde ao denário romano que equivale uma diária de um lavrador; cf. 7,41; Mt 20,2) e perde um décimo de seus bens (a ovelha de vv. 4-6 era só 1%). Sua casa não tem janelas, precisa acender uma lâmpada para procurar a moeda.

Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: “Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!” Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte (vv. 9-10).

Não se fala mais da alegria comparativa (com os “justos”, como em v. 7). A Bíblia do Peregrino (p. 2508) comenta: Contudo, a alegria acusa um sofrimento precedente: a perda dói. A pessoa do pecador convertido é algo valioso que os anjos de Deus recuperam.

Como em v. 7 trata-se da alegria de Deus que ele compartilha com seus anjos. Deus é só designado implicitamente, segundo o uso palestinense (cf. 9,26; 12,8). Um pecador morto não traz alegria para Deus (cf. Ez 18,12.32), mas sua conversão (cf. Lc 15,22-24).

Os escribas e fariseus não fizeram nada para atrair os pecadores. Ao contrário, eles os abandonavam e excluíam. É nós da Igreja? O amor de Deus é abundante, não é proporcional aos méritos de alguém, mas às suas misérias. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele viva de maneira abundante (cf. Ez 18,23 etc.). O pastor e a mulher se colocaram à procura e quando encontraram a ovelha e a moeda, fizeram grandes festas, inclusive, com a participação dos vizinhos. O Papa Francisco nos convida para ir à procura dos outros nas periferias etc., para sermos “pastores com cheiro de ovelhas”.

O site da CNBB comenta: Todos nós somos pecadores, mas Deus nos ama tanto que age sempre com misericórdia para conosco, perdoando o que nos pesa na consciência e sempre dando-nos condições para que nos convertamos e possamos viver na sua amizade, afinal de contas, o verdadeiro Pai não quer vier os seus filhos e filhas dispersos pelo mundo e entregues ao poder do pecado e da morte. Tudo isso faz com que uma das maiores alegrias de Deus seja a conversão dos pecadores. Como Deus, também nós devemos agir com misericórdia para com os que erram e dar-lhes condições para que possam converter-se e, assim, vivam a plena alegria de quem se sente eternamente amado por Deus.

A parábola seguinte do filho pródigo é uma das mais conhecidas, mas encontra-se só em Lucas. Para Lc, a misericórdia de Deus e de Jesus é fundamental (cf. 6,36), não só para doentes e pobres, mas se abre ao perdão dos pecadores e a acolhida dos marginalizados (cf. 7,36-50; 19,10; 23,43). Jesus é Filho, só ele conhece o Pai (10,22) e age como ele acolhendo o pecador (o filho pródigo) e faz refeição com ele, da qual o filho mais velho (os fariseus, cf. v. 2) não quer participar.

Mas a arte literária de Lc deu a esta parábola um sentido mais universal que podia ajudar também na reflexão no Ano da Misericórdia (2016; cf. também n.º 5-6 da encíclica Dives em Misericórdia de João Paulo II) e sobre a juventude (cf. Campanha da Fraternidade 2013), porque os jovens querem conquistar sua liberdade e autonomia, mas às vezes por caminhos errados.

Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada (vv. 11b-13).

Foi sugerido de chamar esta parábola não a do filho pródigo, mas do “Pai misericordioso”, ou dos “dois filhos” (mas já existe outra com este título em Mt 20,28-32). Como é costume chamar as parábolas do reino pelo protagonista (semeador, joio e trigo, tesouro e perola, vinhateiros assassinos etc.), a parábola continua ser a do filho pródigo, no entanto o que Jesus mais revela nela é o Pai (cf. 10,22; Jo 1,18).

Ao contrário do que muitos pensam, já encontramos no Antigo Testamento (AT) textos sobre o aspecto emotivo e entranhado da paternidade de Deus (Os 11; Jr 31,18-20; Sl 103,13), aliás, a palavra “misericórdia, compaixão” vem da palavra hebraica de “entranhas, útero” que se comovem com a miséria dos outros. O amor paternal encontra-se também no desfecho da novela de José (Gn 50) e na história de Davi (2Sm 12,15-25; 19,1-9).

O filho mais novo pede ao Pai a parte de sua herança que lhe cabe (v. 12); a parte que cabe ao mais novo é um terço dos bens móveis (Dt 21,17). Contra a recomendação de Eclo 33,20-24 de não ceder herança em vida, o “pai dividiu os bens entre eles” (mas em v. 31 só deu a parte do mais novo). O filho mais novo “partiu para um lugar distante”, longe da presença paterna, num desterro voluntário, buscando a liberdade, mas o mau uso desta liberdade (cf. Gl 5,13-21), a libertinagem, leva logo a miséria e “ali esbanjou tudo numa vida desenfreada” (v. 13; cf. Pr 23,21; 29,3; Eclo 18,30,19,2).

Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam (vv. 14-16).

Na sua necessidade (Pr 16,25), só consegue um trabalho degradante com um patrão pagão (Lv 25,47): cuidar dos porcos (v. 15), ofício humilhante para qualquer um, mais ainda para um judeu, forçado a ficar no meio de animais impuros que judeus não comem (Lv 11,17; cf. Mc 5,12s). Como não se bastasse, esses porcos gozam de melhor sorte do que o filho (v. 16).

Então caiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’” (vv. 17-19).

O narrador revela os pensamentos do jovem que chegou ao fundo do poço. A necessidade o faz refletir, ainda com interesse próprio, aquela situação passada com o Pai onde era mais feliz do que agora (Os 2,9; Jr 2,9), e depois descobre a dimensão religiosa: O pecado vai contra Deus (vv. 18.21; cf. Gn 39,9; Ex 10,16; Dt 1,41; 2Sm 12,13; Sl 51,8). Em pensamento, o jovem impõe a pena a si mesmo: perder todos os direitos de filho (cf. Gn 43,9).

Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. O filho, então, lhe disse: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho” (vv. 20-21).

O pai não se deixa levar pela lei (Dt 21,20), mas pela graça, ou seja, pelo afeto paternal (Jr 31,20; Os 11,8), identificando-o de longe e “sentiu compaixão” e, mesmo sendo velho, “correu-lhe ao encontro” (v. 20). O abraço com beijos sela a reconciliação antes que o filho pronuncie a confissão (cf. Jr 3,13).

Mas o pai disse aos empregados: “Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado”. E começaram a festa (vv. 22-24).

É recebido como “filho” e assim restituído com a “melhor túnica” e um “anel” (v. 22). É um reviver, “meu filho estava morto e tornou a viver”; não a simples volta, mas o arrependimento e o perdão precisam ser festejados (cf. Eclo 32,5,6; 2Cor 5,17-19). A história poderia terminar com esse convite à alegria como nas duas parábolas anteriores (cf. vv. 6-7.9-10).

O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. O criado respondeu: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde” (vv. 25-27).

Mas esta parábola tem uma segunda parte, porque nem todos (os fariseus, nós?) se alegram com o resultado da misericórdia desse pai. Nem todos aceitam nem compreendem o coração do Pai, por ex. Jonas que não queria ser profeta de um “Deus compassivo e clemente, paciente e misericordioso” (Jn 4,2; cf. Ex 34,6; Jl 2,13; Sl 86,15; 103,8; 145,8; Ne 9,17). O filho mais velho voltou do campo, não estava folgado, mas dedicado ao trabalho. Ele estranha ao ouvir o barulho da música e a notícia sobre o irmão.

Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. Ele, porém, respondeu ao pai: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (vv. 28-30).

O irmão mais velho ficou com raiva, não quer entrar na alegria (cf. 14,15-24; 18,17.24s; Mt 5,20; 7,21; 23,13; 25,10.21.23) e discute com o pai em termos de retribuição comparativo. Sua fala é mais explícita do que a do próprio narrador: “esbanjou teus bens com prostitutas” (v. 30; apenas “vida desenfreada” em v. 13). Não chama o mais novo de “meu irmão”, apenas de “teu filho”.

Então o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (vv. 31-32).

O pai faz ver seu filho obediente que está bem pago convivendo com ele: “Tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”. Já que o mais velho participa de tudo do Pai, deveria também participar da sua alegria de recuperar seu filho, porque a vida de uma pessoa vale mais do que bens perdidos (cf. Mc 5,1-20; 9,36). O padre belga José Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica, dizia: “Cada operário vale mais que todo ouro da terra”. Muito mais ainda vale o filho para o pai do que um empregado.

A parábola termina aqui. Não sabemos se o filho mais velho aceitou a misericórdia do Pai e se reconciliou com seu irmão. Assim a parábola fica aberta com um convite a todos nós: mais do que obedecer todas as ordens do pai, devemos partilhar do seu coração compassivo. Paternidade gera fraternidade. Verdadeira obediência a Deus é amor aos irmãos.

Devemos amar Deus, mas amar também o irmão (cf. 1Jo 2,9-11; 3,11-17; Mt 6,14; 18,21-35; 22,34-40; Cl 3,13). E para facilitar a conversão (e a volta à Igreja), todo pecador deve saber que Deus não é um monstro vingativo, mas é um Pai misericordioso que quer a liberdade e a vida. “Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva” (Ez 18,23-32). “Aproximemo-nos, então, com segurança do trono da graça para conseguirmos misericórdia e alcançarmos graça, como ajuda oportuna” (Hb 4,16).

O site da CNBB conclui: A Igreja precisa se aproximar cada vez mais dos pecadores e pecadoras para dar-lhes oportunidades reais de conversão e meios concretos para que possam seguir o itinerário da fé e trilhar os caminhos da santidade. Isso só é possível quando seguimos o exemplo de Jesus e acolhemos todas as pessoas que vivem no pecado e que são marginalizadas por causa disso. Se não nos dispomos a criar espaço nas nossas comunidades para essas pessoas e não criamos mecanismos pastorais e evangelizadores eficazes, os pecadores e as pecadoras não terão as melhores condições para corresponder à graça divina e nós seremos responsáveis por isso.

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