12 de Setembro de 2020, Sábado: É semelhante a um homem que construiu uma casa: cavou fundo e colocou o alicerce, porque estava bem construída.

23ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Cor 10,14-22

No cap. 10, Paulo citava exemplos da Escritura e depois segue a aplicação concreta aos problemas da comunidade, como à participação nos banquetes oferecidos aos ídolos (10,14-22) a às refeições familiares junto aos pagãos (10,23-30), onde se recomenda, mais um vez, o respeito à consciência das outras pessoas, para não escandalizá-las. Nossa leitura apresenta oprimeiro assunto cujo problema já foi tratado (cap. 8), mas retorna agora com o argumento da eucaristia.

Meus caríssimos, fugi da idolatria. Eu vos falo como a pessoas esclarecidas. Então, ponderai bem o que eu digo: O cálice da bênção, o cálice que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? Porque há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão (vv. 14-17).

Paulo quer tratar a questão da idolatria, mas de passagem nos oferece um denso ensinamento sobre a eucaristia como comunhão com Cristo e com os irmãos, uma espécie de parentesco “carnal”, de “consanguinidade” misteriosa com o Senhor. Pela comunhão com o corpo de Cristo, os cristãos se unem a Cristo e entre si. A eucaristia realiza a unidade da Igreja em Cristo (cf. 12,12s referindo-se ao batismo). Destaca o paralelismo: corpo eucarístico de Cristo/corpo eclesial de Cristo. O pão único o simboliza, a refeição o realiza.

“O cálice da bênção, o cálice que abençoamos” A expressão redundante explica pelo fato de que o “cálice (taça) de benção” era um termo técnico litúrgico tomado do ritual da refeição pascal judaica. “Que nós abençoamos”; trata-se da ação de graças pronunciada por Jesus na última ceia,que deu origem a Oração Eucarística na liturgia da comunidade (cf. Mc 14,23p).d)

“Nós todos”,lit. “nós, os numerosos” (cf. a polêmica sobre a tradução das palavras de consagração: “por muitos” ou “por todos”; cf. Mc 14,24p; Is 53,12). Outra tradução: “Pois nós somos todos um só pão, um só corpo”. O argumento desenvolvido nos vv. seguintes só tem validez se a expressão “um só corpo”significa “um só corpo com Cristo” (como em 6,16s, onde se subentendem “com ela” e “com ele”).

Na comunhão com o corpo de Cristo, os cristãos são um no Cristo único. Na explicação doutrinal do pensamento de Paulo, o vínculo de causalidade entre a Ceia e a unidade da Igreja é percebido de maneiras diferentes pelas diversas Igrejas, ainda hoje no ecumenismo. Para a Igreja Católica, há de ter certa unidade (na doutrina, na conduta) para poder celebrar (receber) eucaristia juntos. Para Igreja Evangélica Luterana, há de comungar juntos para criar uma unidade eclesial. Outras Igrejas protestantes consideram a eucaristia apenas como símbolo, enquanto a unidade fica por conta do Espírito.

Considerai os filhos de Israel: Os que comem as vítimas sacrificais não estão em comunhão com o altar? (v. 18).

“Os filhos de Israel”; lit. “Israel a carne” (cf. Rm 9,4: “meus irmãos, os de minha raça segundo a carne”; cf. Rm 7,5) por oposição ao “Israel de Deus”(Gl 6,16) que é o povo cristão, herdeiro das promessas.

No “sacrifício de comunhão” em Lv 3, as partes mais vitais do animal sacrificado são oferecidas a Deus; a melhor parte é atribuída aos sacerdotes (cf. Lv 7,29s) e a parte restante é consumida pelos fiéis. Na época antiga, este banquete sagrado era o rito central das festas exprimindo a comunidade de vida e a relação de aliança e de amizade entre o fiel e o seu Deus.

Então, o que dizer? Que a carne de um sacrifício idolátrico tem algum valor? Ou que o ídolo vale alguma coisa? – Nada disso. O que eu digo é que os idólatras oferecem seus sacrifícios aos demônios e não a Deus. Ora, eu não quero que entreis em comunhão com os demônios. Vós não podeis beber do cálice do Senhor e do cálice dos demônios; vós não podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Ou, quem sabe, queremos excitar o zelo santo do Senhor? Somos porventura mais fortes do que ele? (vv. 19-22).

Nos vv. 16-18, a comunhão (mesa) eucarística com Cristo foi comparada às refeições sacrificais do AT, em que os fiéis entravam em “comunhão com o altar” (v. 18). No v. 21, a mesa eucarística é confrontada com a das refeições sagradas que se seguiam às refeições pagãs, “mesa/comunhão com os demônios”. Paulo assim coloca nitidamente a eucaristia em uma perspectiva de “sacrifício”.

No AT, o “zelo”, o ciúme é cólera de Deus para com os membros do povo de Deus que prestam culto aos ídolos (Dt 32,16.21 etc.). Entre tantas referencias a demônios nos evangelhos, podemos destacar a figura de Satanás frente a frente com Jesus no deserto; a última exigência de Satã é ser adorado (Mt 4,1-12p).

A Bíblia do Peregrino (p. 2753) comenta sobre a participação em banquetes culturais pagãos: No banquete cultual o homem se torna comensal da divindade, “partilha” sua mesa (Sl 36,9; 63,6; 65,5; 116,13). Porém, conforme foi dito antes (8,4), poderiam objetar: se os ídolos são nada, seu banquete é neutro. Paulo responde com outra versão (que a apologética explorará): as divindades pagãs são demônios. E esses demônios são hoje os “rivais” do nosso único Deus, que é um “Deus ciumento” (Ex 20,5; 34,14; Dt 4,24; 5,9; 6,15). Ver especialmente Dt 32,16-17 (provável inspiração de Paulo), que enumera em paralelismo sinonímico “deuses estranhos, abominações, demônios que não são deuses, deuses desconhecidos”.

 

Evangelho: Lc 6,43-49

Ouvimos hoje a conclusão do sermão da planície que termina de forma semelhante ao sermão da montanha em Mt 7. Ambos os evangelistas, Mt e Lc, copiaram da mesma fonte Q (uma coleção de palavras de Jesus que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída através de Mt e Lc). A terceira parte do sermão não apresenta mais imperativos proféticos, mas parábolas (vv. 39-49). Depois da metáfora da vista (guia cegos; cisco e trave no olho, vv. 39-42), continua com outras comparações, uma agrária (árvore) e outra urbana (casa), na combinação clássica daquela cultura (cf. Jr 1,10); entre as duas, Lc apresenta uma comparação doméstica (baú, tesouro). Nelas sintetiza a importância decisiva da interioridade e a necessidade da traduzir o ensinamento em conduta prática.

Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio. Por que me chamais: “Senhor! Senhor!”, mas não fazeis o que eu digo? (vv. 43-46).

Cada árvore dá fruto segundo sua espécie e qualidade. Pelo fruto identificamos a árvore (Tg 3,12). Assim como as árvores são conhecidas pelos frutos, do mesmo modo os homens são conhecidos pelos seus atos.

Não se quer dar um ensino sobre diferentes espécies de “árvores”, mas oferecer uma regra para discernir os espíritos. A comparação com os “frutos” é tradicional (Eclo 27,6; Pr 1,31; 3,9; 10,16; 11,30; 31,3; Tg 3,12.17; cf. também as parábolas de Joatão em Jz 9 e de Isaias em Is 5). Podem ser as ações ou os efeitos da pregação (cf. Jr 8,11; Ez 13,10), em Mt, dos falsos profetas; em Lc, talvez falsas doutrinas (cf. At 20,29s).

Mt usou este material duas vezes (Mt 7,16-18; 12,33-35), aplicando-o aos profetas falsos (ou seja, aos fariseus, cf. Mt 7,15) e sublinhando o juízo final (Mt 7,19.22s; 12,36s). Em Lc, há um sentido mais geral: o interior (coração) de um homem (qualidade da árvore) determina suas palavras e ações (frutos, cf. 8,15). O “coração” como centro e fonte de expressão humana está cheio de preciosidades como um “tesouro” (cf. Mt 13,52 coisas novas e velhas do tesouro). As palavras boas ou más revelam o coração de um homem, seu pensamento interior.

O tesouro pode ser o depósito, a adega ou despensa. No homem é a intimidade, o coração como sede da vida consciente e livre. Referindo à boca, à palavra, o provérbio se aplica a quem ensina; mas seu alcance é mais amplo. Segue-se a necessidade de ir assimilando e acumulando coisas boas para partilhá-las com outros no momento oportuno.

No v. 45, Lc destaca as palavras da boca que revelam o coração, enquanto no v. 46 (com Mt 7,15-20) frisa as ações que não correspondem as orações. As palavras da boca podem estar distante do coração.

No plano da imagem, “senhor” é o patrão: pouco vale que o criado diga “sim, senhor”, se depois não cumpre as ordens (Ml 1,3; Mt 21,28-32). No tempo em que Lucas escreve “Senhor” é título de Jesus; era muito importante reconhecê-lo e confessá-lo (Rm 10,9), o que supõe a assistência do Espírito Santo (1Cor 12,3). Contudo, a invocação pode esvaziar-se de sentido, se não conduz a cumprir seus ensinamentos.

Invocar Jesus como “Senhor” é profissão solene da fé (cf. At 2,36; Fl 2,11), mas não basta invocar só pela boca, nem duas vezes (“Senhor, Senhor”; cf. Mt 7,21). Para Paulo e João, confessar Jesus como Senhor é importante, mas o critério é o amor-caridade (1Cor 12,3 e cap. 13; 1Jo 3,10; 4,2). A aclamação dupla lembra a liturgia; na sua comunidade, Lc vê uma distância entre fé e vida, palavra e ação? Seus leitores não fazem o que Jesus diz (neste sermão)?

Na descrição do juízo final de Mt 25,31-46 são enumeradas as ações que qualificam o autêntico reconhecimento de Jesus como Senhor: as obras da misericórdia e do amor ao próximo. Em Lc, o sacerdote e o levita, ambos vindos de Jerusalém (do culto), não ajudaram a vítima do assalto no caminho, mas um samaritano teve compaixão e ajudou (10,25-37).

Vou mostrar-vos com quem se parece todo aquele que vem a mim, ouve as minhas palavras e as põe em prática (v. 47).

O caminho da salvação para o discípulo é “vir” a Jesus (14,26; Mt 11,28; cf. Jo 6,35.37 etc.), “ouvir” suas palavras (o anúncio do reino; cf. 10,38-42) e “pôr em prática” (cf. 8,15). Não se trata de cumprir a lei ou certos mandamentos, mas da adesão na fé com todas as consequências. Não o louvor pela boca, mas a prática das suas palavras faz reconhecer, de verdade, a autoridade (“Senhor”) de Jesus (v. 46).

É semelhante a um homem que construiu uma casa: cavou fundo e colocou o alicerce, porque estava bem construída. Aquele, porém, que ouve e não põe em prática, é semelhante a um homem que construiu uma casa no chão, sem alicerce. A torrente deu contra a casa, e ela imediatamente desabou e foi grande a ruína dessa casa” (vv. 48-49).

A comparação conclui todo o discurso à maneira de exortação. Todo o ensinamento de Jesus é para a vida; se fica na simples informação, sem se traduzir em obras, carecerá de fundamento para ele. Também insinua que a construção da vida cristã estará ameaçada de fora. Se o edifício é valioso, sua ruína será terrível. Quem põe em prática a mensagem de Jesus, constrói a vida pessoal e comunitária sobre alicerce firme, que resiste à alienação, aos conflitos e até mesmo à perseguição. Quem fica somente no ouvir ou no falar, jamais colabora na construção de nova sociedade.

Era costume semítico de encerrar com uma parábola. Semelhante aos finais das leis da santidade (Lv 26) e do Deuteronômio (Dt 30,15-20), o término do sermão da montanha/planície (na sua fonte Q, cf. Mt 7,24-27) coloca os ouvintes diante de uma grande escolha, aqui em forma de parábola sobre a construção. No início, Lc entra com mais detalhes do que Mt: o homem “cavou fundo” (até encontrar a rocha sólida) e “colocou o alicerce”. Na segunda parte, a descrição da “torrente” em Lc tem menos detalhes que Mt. A imagem de um rio transbordando em enchente representa o julgamento final (cf. o dilúvio em Gn 7-8). Pode-se ler a comparação sobre o pano de fundo de Ez 13,10-14, que fala da construção fraca que é derrubada pelo aguaceiro.

Para os judeus, o alicerce da casa (ou seja, do projeto de vida) é a Lei de Moisés (que Jesus interpreta da forma nova em Mt 5). Para os cristãos, é a prática das palavras de Jesus. Apenas o conhecimento das suas palavras leva a perdição, tudo depende da obediência. O sermão da planície é mais escatológica que o sermão da montanha de Mt, mostrando certa urgência. Ao ouvinte que deve lembrar-se dos assuntos centrais deste sermão (amar os inimigos, não vingar-se nem julgar) é oferecido a salvação, mas preciso decidir-se e praticar.

O site da CNBB comenta: Podemos falar muitas coisas a respeito dos valores que devem nortear as nossas vidas e dos fundamentos mais profundos desses valores, porém o maior discurso que nós podemos fazer sobre o Reino de Deus e a Vida Nova em Cristo é o discurso da vida, uma vez que a nossa vida expressa o que de fato cremos e que valores de fato temos. Se temos uma vida marcada pelo amor e pela solidariedade, na busca da justiça e da fraternidade, é porque de fato a nossa fé é verdadeira, que possui o seu alicerce na verdadeira rocha, que é o próprio Jesus.

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