12 de julho de 2018, quinta-feira: Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios

Leitura: Os 11,1-4.8c-9

Ouvimos hoje um poema do amor paterno de Deus, com traços maternais, que é paralelo ao poema do amor conjugal em Oseias: traços que se completam e se relacionam. Coincidem na quebra paradoxal do esquema: quando tudo parece perdido por causa da resistência da esposa ou do filho, o amor invencível de Deus salva tudo.

Oseias emprega aqui, a propósito de Israel não mais a imagem da esposa, mas a do filho na linha da tradição do Êxodo (Ex 4,22; Dt 1,31; 8,5; 14,1; 32,6; Sb 18,13; Is 63,16; Jr 31,9). Este capítulo está em paralelismo estreito com os caps. 1-3. Depois da analogia do amor conjugal desonrado, temos aqui a do amor paterno desprezado. Deve-se, contudo, notar que nos três primeiros capítulos do livro, os filhos já estavam estreitamente associados à mãe (2,14). Já desde o início (1,2), as duas perspectivas estão unidas.

(Assim diz o Senhor:) Quando Israel era criança, eu já o amava, e desde o Egito chamei meu filho (v. 1).

A metáfora do filho é utilizada para Israel em textos narrativos e proféticos: Ex 4,22s; Dt 8,5; 32,6; Is 1,2; 30,9; Jr 3,4.19-22; 4,22; 31,9.20; Ml 1,6; cf. Dt 1,31; 14,1; 32,11; Is 63,16). Deus chama aqui Israel o seu filho amado, depois o messias também é chamado assim (Sl 2,7; 2Sm 7,14; Is 42,1 grego; Mc 1,11; 9,7). O evangelista Mateus retoma esta mensagem: “Do Egito chamei o meu filho” (Mt 2,15); saúda em Jesus o filho que assume toda a vocação de Israel.

“Amar” é o primeiro verbo neste poema, o motor de tudo (cf. Jr 31,3). Encontra-se, aqui, o primeiro testemunho do tema do amor de Deus como causa da eleição de Israel, doutrina esta que será abundante desenvolvida pela Deuteronômio (Dt 4,37; 7,7-9; 10,15 etc.).

A história remonta à origem no “Egito”, antes da monarquia e da divisão dos reinos. Para Oséias, a verdadeira historia de Israel começa com a saída do Egito. Toda esta passagem descreve a idade do deserto como tempo de intimidade com o Senhor (para lá, o profeta queria reconduzir sua esposa, cf. 2,16). Da história dos patriarcas, Oséias parece ter conhecido – ou conservado – apenas alguns traços desfavoráveis (12,5.13).

Quanto mais eu os chamava tanto mais eles se afastavam de mim; imolavam aos Baals e sacrificavam aos ídolos (v. 2).

O sujeito de “que os chamava(m)” não é explicitado de modo que fica aberta a porta a diversas interpretações: trata-se ou do Senhor e de seus representantes, os profetas, ou das suas divindades estrangeiras; neste último caso, traduziríamos: “outros os chamaram e assim foram para longe de mim”.

Nossa liturgia se decidiu pelo o primeiro caso, o chamado do Senhor que se repete no Sinai e em Canãa; em ambos os lugares, o povo é rebelde. “Baal” era o deus principal dos cananeus (cf. Jz 2,11-13; 1Rs 18), responsável pela tempestade e fertilidade (cf. leitura e comentário de segunda-feira passada: Os 2,16-22).

Ensinei Efraim a dar os primeiros passos, tomei-o em meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles. Eu os atraía com laços de humanidade, com laços de amor; era para eles como quem leva uma criança ao colo, e rebaixava-me a dar-lhes de comer (vv. 3-4).

Cena doméstica em traços de emoção contida. “Efraim” foi um dos dois filhos de José; nasceu no Egito e foi constituído coerdeiro da terra de Israel (Gn 41,50-52; 48,13s.17-19). Deu nome à região central de Israel. Por sua posição privilegiada, Efraim é “meu filho primogênito” em Jr 31,20 (cf. Os 11,1.3), e o reino do Norte foi chamado de “Israel” como também de “Efraim” (cf. 4,17; 5,3.12-14; 6,4.10; 7,1.8.11; 8,9.11; 9,3.8.11.13.16; 10,6.11; 11,3.8; 12,1s.9.15; 13,1.12.15; 14,9).

Deus os atraia com “laços de humanidade”, lit. “com cordas humanas”, como que se opondo às usadas para animais e carros (Is 5,18). Com os “laços de amor” temos um paralelismo sugestivo de “homem e amor”, mas no v. 9, Deus diz que não é homem (por isso, alguns corrigem e leem “carinho”). “Eu era para eles”, pode ressoar o nome de Yhwh (Javé): “Eu estou aqui para vós” (em grego, foi traduzido “Eu sou que sou”; Ex 3,14).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 891) comenta: Nos vv. 3 e 4 a imagem é sempre do pai, mas de um pai dotado de traços maternais. As antigas traduções e provavelmente já o texto hebraico masorético leram “jugo” (‘ol) em vez de “criancinhas” (‘ul); a tradução daí resultante “fui para eles como alguém que afrouxa o jugo perto da boca” supõe que o profeta abandone a imagem do pai e da criança, para assumir uma comparação tirada do reino animal.

Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão (v. 8c).

Nos vv. 5-8b (omitidos pela nossa liturgia) já se pronunciou a sentença inapelável pelo pecado da idolatria, com a execução já em marcha (v. 5: “pois voltará ao Egito, assírio será seu rei”). Mas acontece algo inesperado: um arrebatamento de amor em Deus, expresso numa espécie de monólogo em voz alta: “Como poderei deixar-te, Efraim, entregar-te Israel?” (v. 8a).

Com singular força, soa o verbo hpk, “inverter, voltar-se, contorcer”. É verbo clássico da subversão das cinco cidades de Sodoma e Gomorra, “Adama”, “Seboim” e Soar (cf. v. 8b omitido na liturgia; Gn 19,25; Dt 29,22 e Gn 10,19; 14,2,8). Aqui ocorre uma subversão ao contrário (inversão, comoção) no coração de Deus, uma mudança radical que se realiza no próprio Deus. Oséias parece entender que o castigo previsto é como que vivido previamente no coração de Deus (cf. o grito de Davi pela morte do seu filho subversivo, Absalão, em 2Sm 19,1).

Não darei largas à minha ira, não voltarei a destruir Efraim, eu sou Deus, e não homem; o santo no meio de vós, e não me servirei do terror (v. 9).

“O santo no meio de vós”; esta é a única menção à santidade de Deus feita por Os (cf. todavia 12,1). “Não me servirei do terror”, esta frase é duvidosa; outra interpretação: “não quero arrasar”.

A ciência da religião caracteriza o fenômeno do sagrado, o “santo” por dois aspectos, o “fascinante” e o “aterrador” (R. Otto). Aqui, a transcendência de Deus é fortemente sublinhada, mas, ao contrário de outros textos mais antigos (Ex 19; 2Sm 6,6-8 etc.) ou mais recentes do que estes (Is 6,3), ela é, aqui, despojada do seu aspecto aterrador para exprimir a vontade de amar. A santidade divina manifesta-se pela misericórdia que perdoa, enquanto o homem, habitualmente, dá livre curso à sua cólera. Um ser humano cederia à sua ira, provocada várias vezes e se desligaria de um pacto violado pelo outro parceiro. Mas Deus não é condicionado pela conduta humana: sua santidade pode se manifestar perdoando, convertendo e salvando (cf. Ex 34,6s; Sb 11,20-12,2).

Dois séculos depois, o Segundo Isaias (Deuteroisaías) anima a esperança dos exilados judeus, comparando o amor divino com o amor de mãe que não consegue esquecer-se do seu filho (Is 49,14s).

Este amor divino (perdão sobre-humano), que se nega a pagar o mal com o mal, encontramos no mito de Gn 4 (Caim não é punido com a morte), na profecia de Ez 17,23.32 (“Eu não tenho prazer na morte do ímpio, mas que ele se converta e viva” ) e de maneira universal em Sb 11,22-26: “O mundo inteiro está diante de ti… mas te compadeces de todos, porque tudo podes. Fechas o olhas diante dos pecados dos homens, para que se arrependam. Sim, tu amas tudo o que criaste… se alguma coisa tivesses odiado, não a teria feito… Mas a todos perdoas, porque são teus; Senhor, amigo da vida!”

No NT, Jesus convida a não se vingar, mas perdoar e amar os inimigos para sermos “filhos do Pai do céu” (Mt 5,9.38-48p; 6,12; 18,21-35). Ele nos apresenta Deus como Pai misericordioso que perdoa e acolhe seu filho pródigo (Lc 15,11-32).

 

Evangelho: Mt 10,7-15

No evangelho de hoje, ouvimos Jesus continuando o segundo grande discurso em Mt. Envia os apóstolos para falarem e atuarem como o mestre.

Em vosso caminho, anunciai: “O Reino dos Céus está próximo” (v. 7).

Em Mt, o anúncio de João Batista e de Jesus é o mesmo (3,2; 4,17). Conforme o costume dos seus leitores judeu-cristãos, Mt evita pronunciar o nome de Deus e prefere a expressão “Reino dos Céus” (em vez de Reino de Deus); não designa um reino celeste, mas que Aquele que está no céu (5,48; 6,9; 7,21) reina sobre o mundo.  O reino sempre pertence ao Senhor (Sl 22,29; 103,19; 145,11-13;…), mas este reinado de sempre “se aproximou” dos seres humanos na pessoa de Jesus.

Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios (v. 8a).

Estas quatro ações abraçam toda atividade de Jesus na série dos capítulos anteriores (Mt 8-9), até o poder sobre a morte. A lepra é mencionada à parte, porque contamina (os envios paralelos de Mc 6,7.13 e Lc 9,1-2.6; 10,9 só falam da cura de doentes e espíritos maus).

De graça recebestes, de graça deveis dar! (v. 8b).

Parece que muitos curandeiros da época cobravam caro por seus serviços. Mas o poder dos discípulos vem de Deus, então devem fazer diferença, imitando a atitude de Jesus, a gratuidade (cf. Pedro em At 3,6); para Paulo (e Lutero), somos salvos pela graça, não pelas obras (da lei, cf. Rm 5,15-20 etc.).

Não leveis ouro, nem prata, nem dinheiro nos vossos cintos; nem sacola para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão, porque o operário tem direito ao seu sustento (vv. 9-10).

As recomendações de não levar quase nada pelo caminho (levar duas túnicas já era considerado certo luxo, cf. Lc 3,10) já estavam em Mc 6,8s (lá, pelo menos sandálias e um cajado são permitidos) e na fonte de palavras Q (Lc 9,3; 10,3). Mas Q afirmou também a razão: “porque o operário tem direito a seu sustento” (lit. alimentação; Lc 10,7b: digno do seu “salário”), ou seja, o missionário pode contar com o sustento pela comunidade. 1Tm 5,17s estabelece dois salários para presbíteros. Em 1Cor 9,14, Paulo afirma estas palavras de Jesus, mas não se vale deste direito (1Cor 9,15-18) para não ser confundido com missionários exploradores (cf. os “superapóstolos” em 2Cor 11,5-7.20). Confiando em Deus, o missionário não tem preocupações materiais (cf. 6,11.25-33).

Em qualquer cidade ou povoado onde entrardes, informai-vos para saber quem ali seja digno. Hospedai-vos com ele até a vossa partida (v. 11).

“Informai-vos para saber quem ali seja digno”. Além da prudência, esta recomendação pode se referir à precaução dos judeus que não entram em casa de pagãos, publicanos ou pecadores (cf. 8,8; Jo 18,28; mas 5,46-47; 9,10-13; 21,32; cf. At 11,2s).

“Hospedai-vos com ele até vossa partida” (já Mc 6,10 o recomendou). Havia missionários ociosos vivendo à custa do povo mudando de casa em casa (cf. 2Ts 3,6-11). No século VI, contra monges vagabundos, S. Bento afirmou a “estabilidade do local” (mosteiro) e o trabalho além da oração como eixo da vida religiosa (ora et labora, “reze e trabalhe”).

Ao entrardes numa casa, saudai-a. Se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; se ela não for digna, volte para vós a vossa paz. Se alguém não vos receber, nem escutar vossa palavra, saí daquela casa ou daquela cidade, e sacudi a poeira dos vossos pés. Em verdade vos digo, as cidades de Sodoma e Gomorra serão tratadas com menos dureza do que aquela cidade, no dia do juízo (vv. 12-15).

Shalom (“Paz” em hebraico) é a saudação comum em Israel, até hoje, e significa não só o silêncio das armas, mas a plenitude dos bens (saúde, educação, trabalho, prosperidade; cf. Jo 20,19.21.26; Nm 6,26).  A fonte Q também transmitiu a ordem de desejar a paz, que voltaria se não fosse um amigo da paz (vv. 12-13; Lc 10,5-6). Os apóstolos levam a paz do messias que os amantes da paz saberão reconhecer (cf. 5,9; Sl 120; 122).

Mas a rejeição será fatal (cf. Lc 19,42-44), acarretará um castigo pior do que o das cidades Sodoma e Gomorra que violaram a hospitalidade (v. 15; cf. Gn 18-19; Sb 19,13-17). “Sacudir a poeira dos pés” (v. 14) é um gesto simbólico que toma o pó como sinal (2Rs 5,17): nada do território ignorante e culpado se apegue aos apóstolos (At 13,51). A palavra da boa notícia se torna “juízo” e condenação para quem a rejeita.

Os discípulos-missionários devem seguir o exemplo de Cristo, levar uma vida simples junto ao povo sofrido, confiando em Deus e não nas coisas materiais nem na violência; ao final, devem anunciar a paz e o reino de Deus e não o estilo de vida consumista. Por isso precisa de simplicidade, desapego, coerência material com a mensagem espiritual: fé em Deus, confiança na sua providência (cf. 6,19-34; crer-crédito em Deus). Uma atualização interessante deste evangelho foi o “Pacto das catacumbas” de vários bispos em Roma no final do Vaticano II (1965), entre eles D. Hélder Câmara.

O site da CNBB comenta: A vida de quem é discípulo de Jesus consiste em fazer as obras do reino de Deus para manifestar a sua presença no meio dos homens. É deixar de lado as suas próprias obras para que, como enviado por Jesus, realize as obras de Deus. Para que isso seja possível, o discípulo de Jesus não deve colocar a sua confiança nos bens materiais, mas em Deus, que tudo proverá para que a sua obra seja coroada de êxito. Com essa confiança em Deus, o discípulo de Jesus deve procurar estar atento a tudo o que acontece ao seu redor, para que não perca nenhuma chance de fazer o bem aos que necessitam dele e possa ser, também, um promotor da paz.

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