12 de Junho 2019, Quarta-feira: Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento (v. 17).

10ª semana do Tempo Comum

Leitura: 2Cor 3,4-11

Em 2Cor 2,14, Paulo começou a primeira grande seção sobre seu ministério apostólico que se estende até 7,4. Na leitura de hoje compara a antiga e a nova aliança.

É por Cristo que temos tal confiança perante Deus, não porque sejamos capazes por nós mesmos, de ter algum pensamento, como de nós mesmos, mas essa nossa capacidade vem de Deus (vv. 4-5).

Na ausência de Paulo surgiu uma oposição em Corinto, agora o apóstolo tenta recuperar sua autoridade e a “confiança” na sua capacidade que vem de Deus (cf. 3,4), não de si mesmo (cf. Jo 15,5). Paulo não precisa de uma carta de recomendação (cf. At 18,27; Rm 16,1; Cl 4,10; 3Jo 9-12) dada por autoridades externas, mas a própria comunidade que foi reunida e evangelizada pelo apóstolo é uma “carta de Cristo, despachada por nós, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos corações” (v. 3). Com esta alusão às “tábuas” da lei outorgada no monte Sinai (cf. Ex 24,12; 31,18; 34,28-29) e à lei impressa “no coração” (Jr 31,33; Ez 11,19; 36,26-27), Paulo passa a contrapor em termos audazes e radicais a lei da antiga e a da nova aliança (vv. 6-18). Em Pentecostes, os judeus comemoram a entrega da Lei no Sinai, e os cristãos, a entrega do Espírito (cf. Ex 19; 24; At 2).

Ele é que nos tornou capazes de exercer o ministério de uma aliança nova. Esta não é uma aliança da letra, mas do Espírito. Pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida (v. 6).

Ao sentido bíblico da palavra “aliança”, Paulo acrescenta o sentido jurídico de “testamento” (a palavra hebraica tem ambos os sentidos). Paulo se refere à morte de Cristo que fundou a “nova aliança” (1Cor 22,20; Lc 22,20; 2Cor 3,14; Hb 8,8; 9,15; 12,24). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2236) comenta: A nova aliança não é um texto que completa o antigo, mas a passagem do que é escrito para o que é vivido no coração. Sem o Espírito, a letra mata, mas sem o texto, o Espírito seria afônico (cf. Jr 31,31; Ez 36,26).

A “letra” é a lei mosaica escrita, e em particular a cláusula penal da lei da antiga aliança que era boa em seu conteúdo e trazia como acréscimo cláusula penal em caso de não cumprimento. Como esta lei era externa ao homem e não lhe dava forças para cumpri-la, de fato fazia incorrer nas penas consequentes à “condenação” (v. 9; cf. Rm 7,5). Por isso a chama de “ministério da morte, gravado em pedra com letras” (v. 7; cf. Ex 32,16; 34,1-4). A morte não é finalidade, mais consequência (cf. Ez 18). O Espírito, pelo contrário, personaliza a lei, a interioriza e dá força para seu cumprimento (cf. Ez 36,27; Jr 31,31; e a tríplice invocação ao espírito “firme, santo, generoso” em Sl 51,12-14). Assim garante a “absolvição” (v. 9: “justificação”) e doa vida.

Para entender melhor esta visão de Paulo sobre a lei, precisamos relacioná-la com sua vocação (At 9; Gl 1-2) e ler Rm 7. Ele, como fariseu, achava que a “justificação” (salvação) viria pelo cumprimento da lei, mas experimentou que é só a fé em Cristo que salva. Cristo, porém, sofreu a “condenação” pelo sinédrio (supremo tribunal dos judeus) por esta mesma lei mal interpretada (na base de Dt 13,1-6; cf. Mc 14,65). A lei não é pecado, é santa (cf. Rm 7,7.12), mas o pecado se aproveita da lei: pela proibição instiga a cobiça e a concupiscência (coisas proibidas são mais atraentes, cf. Gn 3) e não dá força para vencer.

Se o ministério da morte, gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória, que os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito? Pois, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais glorioso há de ser o ministério ao serviço da justificação (vv. 7-9).

Outros dois pontos de comparação são a duração das duas alianças (cf. Jr 31,31-34) e a intensidade do seu resplendor (“glória”). Paulo reconhece a glória da antiga aliança que se manifestou no brilho do rosto de Moisés quando desceu da montanha com as tábuas da lei (Ex 34,29-35 que S. Jerônimo traduziu erroneamente: “seu rosto tinha chifres”; é por isso que Miguelângelo e outros artistas fizeram imagens de Moisés com chifres). O resplendor temporário no rosto de Moisés resultava do seu encontro com Deus, privilégio pessoal que Paulo opõe à graça universal dos cristãos (v. 18).

Na antiga aliança, “os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa de seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito?” (vv. 7-8).

Realmente, em comparação com uma glória tão eminente, já não se pode chamar glória o que então tinha sido glorioso. Pois, se o que era passageiro foi marcado de glória, muito mais glorioso será o que permanece (vv. 10-11).

Aqui Paulo compara a intensidade do resplendor (“glória”). Imagina-se a glória em termos de luminosidade, p. ex. um fósforo acesso não brilha à luz do sol do meio-dia. Assim a nova e eterna aliança supera em muito a antiga que era passageira. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2236) resume as diferenças entre as duas alianças:

Antiga Aliança: Tábuas de pedra, a letra mata (3,6), ministério da morte (3,7), ministério de condenação (3,9), passageiro (3,11), AT lido com véu (3,14), glória temporária (3,7), sobre o rosto de Moisés (3,7)

Nova aliança: tábuas = corações de carne (3,3), ministério da nova aliança, o Espírito vivifica (3,6), ministério do Espírito (3,3.8), ministério de justiça (3,9), o que permanece (4,6), iluminação do conhecimento (4,6) da glória de Deus (4,6) sobre a face de Cristo (4,6).



Evangelho: Mt 5,17-19

Uma visão muito mais positiva da Lei do que na 1ª leitura encontramos no Evangelho de Mt. Seus destinatários são judeu-cristãos que vivem ainda no meio de outros judeus, mas fora de Israel, talvez em Antioquia na Síria ou em Alexandria no Egito. Esta visão se caracteriza pelo “melhor cumprimento”, não pela ruptura. Na tradição crista, o evangelho é atribuído a Mateus, coletor de impostos (9,9; 10,3), não era fariseu que rompeu com a tradição judaica como Saulo-Paulo. A pesquisa contemporânea vê como autor não Mateus, mas um escriba que sabe, “semelhante a um pai de família tirar do seu tesouro coisas velhas e novas” (13,52).

Depois de propor “felicidades” (bem-aventuranças, vv. 1-12; cf. comentário de segunda-feira) em lugar de “mandamentos”, Jesus expõe sua posição diante da lei tradicional, a Torá (a Lei de Moisés que contém os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também de Pentateuco); primeiro em termos genéricos (vv. 17-20), incluindo toda escritura na fórmula consagrada “lei e profetas”, depois numa serie de antíteses (vv. 21-48).

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento (v. 17).

A expressão “a lei e os profetas” (cf. 7,12; 22,40; cf. Lc 24,27; Mc 9,4p) designa a parte da Bíblia que chamamos de Antigo Testamento (AT) e que era a única Escritura sagrada dos judeus. A Bíblia hebraica se divide em três partes (T-N-Q), Torá (a “lei” de Moisés ou Pentateuco, os primeiros cinco livros: Gn, Ex, Lv, Nm, Dt), Nebiim (“profetas”: 1-2Sm; 1-2Rs; Is, Jr; Ez e os 12 profetas menores) e Quetubim (“escritos” sapiências: Sl; Jó; Pr; … cf. Lc 24,44).

Contra conclusões precipitadas (talvez derivadas da teologia de Paulo que substituiu a lei pela fé, a circuncisão pelo batismo, etc.), Mt quer apresentar Jesus como mestre que aperfeiçoa a lei em vez de aboli-la.

Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra (v. 18)

Esta frase, Mt já encontrou numa fonte comum (chamada Q) com Lc (cf. Lc 16,17). “Nem uma só letra ou vírgula” lit.: “nem um iota nem o mínimo traço”. O iota é a letra menor do alfabeto hebraico; os traços talvez designem a ponta ou a barra que distinguem as letras (p. ex. entre G e C), num tempo posterior, pelo trabalho dos masoretas, traços e pontos indicavam os vocais (cf. o ponto do i), já que este alfabeto só contém consoantes. O sentido de v. 18 é que nenhum pormenor da lei deve ser menosprezado. A lei se cumpre quando seus múltiplos preceitos são postos em prática. As profecias, como predições, se cumprem quando o anunciado acontece. Mt não se cansa em salientar as profecias cumpridas durante a vida de Jesus (cf. 1,22; 2,7.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (v. 19).

Não se deve pensar, porém, que Jesus ensina cumprir a lei como ensinam os fariseus. Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma burocracia escravizante. Jesus revela o sentido mais profundo da lei, a vontade de Deus, buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que o homem tenha vida e relações mais fraternas. Jesus resume toda lei na Regra de Ouro (7,12p) e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (22,34-40; cf. Jo 13,34: Rm 13,8-10: Gl 5,14; Cl 3,14).

O amor e a misericórdia são a perfeição na Lei (cf. v. 48) e a justiça maior: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vos não entrareis no Reino dos Céus.” (v. 20, omitido pela leitura de hoje).

A maneira como Jesus dá pleno cumprimento as leis do AT é diferente do legalismo dos hipócritas, fariseus e mestres da lei que “só falam e não praticam” (23,3). Para Mt, é importante a ética, ou seja, praticar a vontade de Deus (cf. 7,21). A justiça dos cristãos que deve superar a dos doutores da lei e dos fariseus (cf. v. 20), não consiste em cumprir ao pé da letra os mínimos detalhes da lei, mas na criatividade do coração que ama: “Tudo o que você desejam que as outras façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os Profetas” (Regra de Ouro em 7,12). A interpretação de Jesus (seu “jugo leve”, cf. 11,30) a respeito da Lei é o mandamento maior do amor: “Ame o Senhor teu Deus com todo o teu coração, … ame seu próximo como a si mesmo. Toda lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (22,34-40; Dt 6,5; Lv 19,18). Com esta interpretação, o evangelista Mateus ainda se encontra com os pensamentos do apóstolo Paulo que costumava polemizar contra a lei judaica. “Cristo é o fim da lei” (Rm 10,4) ou é a “finalidade da lei”; a palavra grega pode exprimir ao mesmo tempo a ideia de meta, de termo e de realização.

Para o mestre da lei, Saulo de Tarso, a Lei era a salvação; mas depois da sua conversão, Saulo-Paulo reconheceu, que “ninguém se tornará justo diante de Deus através da observância da Lei, pois a função da Lei é da consciência do pecado. Agora, porém, independentemente da Lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas. É a justiça de Deus que se realiza através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam” (Rm 3,20-22). Paulo sabe que “a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12), mas a Lei não salva, sim conscientiza e condena. O Tribunal Supremo dos Judeus (Sinédrio) condenou Jesus por sua interpretação diferente da Lei. Não só a Lei, antes é a promessa, a graça e a fé que importam. “Não torno inútil a graça de Deus porque se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu em vão” (Gl 2,21). “Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gn 2,16). “A lei do Espírito, que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Paulo escreveu contra aqueles que queriam obrigar pela lei a circuncisão dos cristãos que vieram do paganismo, enquanto para Paulo basta batizá-los como sinal da fé em Jesus Cristo. Por isso ele opôs a Lei (a circuncisão, a carne, as obras) à fé (a graça, a promessa, o espírito, a fé). Mas ele reconhece também que a liberdade da lei (da circuncisão) não dispensa do amor ao próximo: “Pois toda Lei encontra sua plenitude num só mandamento: “Ame seu próximo como a se mesmo … Carreguem os fardos uns dos outros, assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 5,14; 6,2).

A oposição de Paulo (só a fé salva, não as obras da lei) de um lado, e de Mateus (não abolir, mas cumprir a lei) e Tiago (a fé sem obra é morta; cf. Tg 3,14-26) no outro lado, explica-se pelo público diferente. Paulo escreveu para os pagãos e queria poupá-los das exigências da lei cultual (circincisão), mas não da ética (amor ao próximo). Tg e Mt escreveram para judeu-cristãos que viviam dentro da lei judaica e valorizam a sabedoria da Lei de Moises e dos Profetas, mas agora são convidados a interpretá-los conforme a lei máxima do amor a Deus e ao próximo.

Sem normas, regras, leis uma sociedade não pode existir, também a Igreja tem seu Código Canônico com 1752 leis (cânones)! São Filipe Neri disse: “Para ser obedecido, precisa de poucas normas. Eu escolhi a caridade.”

No site da CNBB comenta: Todos nós estamos de acordo que devemos obedecer a Deus, mas não estamos muito de acordo se perguntarmos por que devemos obedecer a Deus. Isto porque existem duas formas de obediência. A primeira é a obediência de quem reconhece o poder de quem manda e se submete a este poder por causa das vantagens da obediência ou das consequências da desobediência. É aquele que diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. A segunda é de quem reconhece os valores que motivam a autoridade e assume esses valores como próprios, vendo na obediência a grande forma de concretização desses valores. Jesus não veio mudar a lei, mas mostrar as suas motivações, os seus valores, a fim de que a sua observância não seja um jugo, mas uma forma de realização pessoal.

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