12 de junho de 2016 – 11º Domingo Ano C

1ª Leitura: 2Sm 12,7-10.13-14

A 1ª leitura de hoje apresenta o profeta Natã repreendo o rei Davi pelo adultério cometido. Depois de ouvir uma parábola (omitida pela nossa liturgia), Davi tem que reconhecer que ele é o pecador a ser condenado. A relação com o evangelho de hoje é a repreensão de Jesus a um fariseu que julgava certa mulher nem vez de reconhecer que também é pecador (cf. Jo 8,7: “Quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra”).

A Nova Bíblia Pastoral comenta: Começam as tragédias de Davi, cuja causa é ele próprio (cf. 16,21-12). Pela primeira vez, suas ações são condenadas (v. 9; cf. 1Rs 15,5; Sl 51,2). A parábola de Natã (vv. 1-4; cf. 2Sm 14,1-20; 1Rs 20,38-43), que reporta ao duplo pecado de Davi (adultério e morte de Urias; 11,1-26), faz o rei pronunciar sua própria sentença de morte (vv. 13.15; cf. Ex 21,37). Porém a tragédia recai sobre o filho (v. 15). Natã é um profeta da corte (cf. 7,2-17), como o sacerdote Sadoc.

Para melhor entendimento, acrescento a parábola de Natã e a reação de Davi nos vv. anteriores: “O Senhor mandou o profeta Natã a Davi. Ele foi ter com o rei e lhe disse-lhe: ‘Numa cidade havia dois homens, um rico e outro pobre. O rico possuía ovelhas e bois em grande número. O pobre só possuía uma ovelha pequenina, que tinha comprado e criado. Ela crescera em sua casa junto com seus filhos, comendo do seu pão, bebendo do mesmo copo, dormindo no seu regaço. Era para ele como uma filha. Veio um hóspede à casa do homem rico, e este não quis tomar uma das suas ovelhas ou um dos seus bois para preparar um banquete e dar de comer ao hóspede que chegara. Mas foi, apoderou-se da ovelhinha do pobre e preparou-a para o visitante’. Davi ficou indignado contra esse homem e disse a Natã: ‘Pela vida do Senhor, o homem que fez isso merece a morte! Pagará quatro vezes o valor da ovelha, por ter feito o que fez e não ter tido compaixão’” (vv. 1-6).

Esta parábola é a primeira na Bíblia (com certa exceção da fábula sobre Abimelec em Jz 9,1-15) Natã propôs a Davi uma parábola judicial levando o rei a pronunciar sobre um caso fictício uma sentença aplicável a um caso real: o dele mesmo (cf. 2Sm 14,1-20; 1Rs 20,38-43). Davi escutou a parábola como um caso que ele tem de sentenciar com sua autoridade suprema, e sentencia sem perguntar nomes.

Natã disse a Davi: “Esse homem és tu! (v. 7a)

Então o profeta dá um nome ao rico da parábola: “Esse homem és tu”. Com ele nomeia também o pobre e sua ovelha (Urias e sua esposa Betsabeia). O rico é Davi que cometeu adultério com Betsabeia, aproveitando-se da ausência do marido que servia como soldado na guerra. Betsabeia engravidou de Davi, mas este não conseguiu fazer Urias dormir com sua esposa, então mandou matá-lo durante a guerra (cf. cap. 11).

Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Eu te ungi como rei de Israel, e salvei-te das mãos de Saul. Dei-te a casa do teu senhor e pus nos teus braços as mulheres do teu senhor, entregando-te também a casa de Israel e de Judá; e, se isto te parece pouco, vou acrescentar outros favores. Por que desprezaste a palavra do Senhor, fazendo o que lhe desagrada? Feriste à espada o hitita Urias, para fazer da sua mulher a tua esposa, fazendo-o morrer pela espada dos amonitas. Por isso, a espada jamais se afastará de tua casa, porque me desprezaste e tomaste a mulher do hitita Urias para fazer dela a tua esposa” (vv. 7b-10).

O Senhor deu (cf. o mesmo verbo hebraico em Jz 6,9; 1Sm 2,28) a Davi a casa, o reino e as mulheres do seu “senhor”, i.é Saulo, o primeiro rei de Israel. A “casa de Israel e de Judá” reflete a divisão posterior (depois de Salomão, cf. 1Rs 12) do reino em dois reinos, o do Norte (Israel), e o do Sul (Judá).

“Desprezaste (a palavra) do Senhor” (v. 9), a “palavra” pode ser uma inserção hebraica reverente do texto recebido, ou então foi omitida nas versões gregas (recensão luciânica e Teodocião) sob a influência do v. 10.

O redator deuteronomista apresenta a sentença como oráculo de Senhor e, conservando a clássica correspondência de delito e pena (v. 10: “a espada jamais se afastará de tua casa/família”), alude às revoltas futuras e à morte sangrenta dos três filhos de Davi que deveriam ocupar o trono prioritariamente: Amnon (cap. 13), Absalão (caps. 14-18) e Adonias (1Rs 1-2). Mas quem vai suceder Davi, será Salomão (1Rs 1-2).

A Bíblia do Peregrino (p. 572s) comenta os vv. 7-12: Agora vem o oráculo propriamente dito. Segue com alguma liberdade o esquema clássico: benefícios de Deus = agravante (7b-8), denúncia (9), sentença motivada com a repetição da denúncia (10), continua a sentença com nova introdução (11-12). Além disso, conserva-se a clássica correspondência de delito e pena: a espada castiga a espada, o roubo de muitas mulheres pune o roubo de uma; sublinha-o a repetição de algumas palavras-chave: espada, arrebatar, mulher.

Nossa liturgia omite os vv. 11-12 que pronunciam a desgraça que sairá da própria casa de Davi: suas mulheres serão tomados por outro (seu filho Absalão) que faria isso a luz do dia.

Davi disse a Natã; “Pequei contra o Senhor”. Natã respondeu-lhe: “De sua parte, o Senhor perdoou o teu pecado, de modo que não morrerás! Entretanto, por teres ultrajado o Senhor com teu procedimento o filho que te nasceu morrerá” (vv. 13-14).

A resposta de Davi é brevíssima: “Pequei contra o Senhor”. Iluminado pela palavra do Senhor descobre sua situação diante de Deus e confessa sem comentário seu pecado. O salmo 51(50) expressa seu arrependimento naquela situação (Sl 51,2) com mais palavras significativas.

Como porta-voz de Deus, o profeta Natã declara o perdão de Deus, anulando a sentença de morte. Mas uma pena é imposta a Davi, se lhe comuta a pena de morte na perda do filho do pecado. O pai é castigado no filho ao perdê-lo.

O pecado não é somente a violação de certa ordem moral ou social, mas antes de tudo a ruptura de uma relação pessoal entre o homem e Deus (cf. Gn 39,9; Sl 51,6; 59,2) que só Deus pode restabelecer (Sl 65,4; cf. Mc 2,5-6p). “Por teres ultrajado o Senhor”, tradução corrigida. O hebraico traz: “ultrajado os inimigos de Javé”, para evitar uma blasfêmia.

A Bíblia do Peregrino (p. 573) comenta: O oráculo acrescenta uma dimensão nova: personaliza fortemente a ofensa ao Senhor (cf. Sl 51,6). A rigor se diria que Davi ofendeu Urias; mas o Senhor toma a ofensa como feita a si, e esta é a sua maior gravidade. Isso cria um novo sistema de relações: Davi na parábola é o rico malvado; com relação a Deus, tinha sido a ovelha escolhida e tratada com carinho especial “como uma filha”. Ao abandonar esse papel, toma o lugar do rico, e ofende seu Senhor, o qual se transforma em vingador do pobre e da sua ovelhinha. A abertura transcendente do homem para Deus e o interesse pessoal de Deus pelo homem conferem grandeza e gravidade à caridade e à justiça humanas.

A Tradução Ecumênica das Bíblia (p. 468) comenta; O anúncio da morte da criança prepara a transição para o relato, mais antigo, dos vv. 15b-25; permite também legitimar o nascimento de Salomão, já que o pecado de Davi foi expiado por esta morte.

2ª Leitura: Gl 2,16.19-21

Continua a 2ª leitura da carta aos gálatas. Nossa liturgia omite a segunda visita de Paulo em Jerusalém (no Concilio de Jerusalém em 49 d.C., vv. 1-10; cf. At 15) e o episódio em Antioquia, onde Pedro voltou atrás das decisões do Concílio a respeito da convivência (comunhão e eucaristia) de judeu-cristãos e dos que vieram do paganismo (vv. 11-15). Nossa leitura é a continuação das palavras repreensivas de Paulo a Pedro, mas mais do que a Pedro, Paulo dirige-se aqui aos judaizantes de Antioquia e sobretudo aos de Galácia.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1421) comenta:  Reprovando o gesto de Pedro, Paulo expõe o cerne de sua proposta, aqui apresentada de forma impulsiva, e que será tomada, de modo mais refletido, em Rm 3,21-31. A salvação é realizada pela graça de Deus através da fé em Jesus Cristo, e não pelas obras da Lei. O cristão passa do pecado para a amizade com Deus, que ele chama de “justificação”. Isso corresponde a uma passagem da morte para a vida, ou do regime da Lei para a fé na graça de Deus (Rm 8,2.10).

Sabendo que ninguém é justificado por observar a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus Cristo, nós também abraçamos a fé em Jesus Cristo. Assim fomos justificados pela fé em Cristo e não pela prática da Lei, porque pela prática da Lei ninguém será justificado (v. 16).

“Fomos justificados pela fé em Cristo” (cf. 3,11; Rm 3,20.24; 9,30; Ef 2,8; At 15,10s). Paulo usa aqui um genitivo (fé de Cristo) que aparece também em 2,20; 3,22; Rm 3,2.26; Fl 3,9. Traduzi-lo por “fé em Jesus Cristo” é possível (fé cujo objeto é Jesus Cristo), mas pode significar também a “fé cuja fonte é Jesus Cristo” (genitivo de origem) ou “fé cujo sujeito é Jesus Cristo” (genitivo subjetivo). A Tradução Ecumênica da Bíblia comenta: De fato, e Jesus Cristo quem outorga o crer. Por outro lado, Cristo tem uma fé absoluta em seu Pai, no sentido que se fia nele e lhe obedece filialmente; por essa fé, ele nos justifica, pois ela o faz cumprir sua missão salvadora; esta afirmação é paralela à de Rm 5,19, onde se diz que nós somos justificados pela obediência do Cristo.

“Pela prática da Lei ninguém será justificado”. A Bíblia do Peregrino (p. 2795) comenta: A frase final, que soa como citação, não se acha literalmente no AT; aproximam-se dela Sl 143,2 e textos semelhantes de Jó. O fracasso da lei está indicado no Salmo 19, depois de cantar suas excelências; note-se a forma concessiva: “ainda que teu servo se esclareça e observá-la traga grande proveito…”

Aliás, foi em virtude da Lei que eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Com Cristo, eu fui pregado na cruz (v. 19).

“Eu morri pela/para a Lei”; o eu de quem fala é pessoal e exemplar (Rm 7,6). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2255) comenta: Ele quer dizer que a morte e a ressurreição de Cristo se realizaram nele. Ora, a morte do Cristo teve como causa a lei em nome da qual foi condenado; o seu efeito foi libertar os homens do regime da lei e da maldição que ela atraía sobre eles; eis por que Paulo, por causa da seu união com o Cristo crucificado, está morto “pela lei e morto para a lei”. A finalidade dessa união com o Cristo crucificado é a comunhão cum a sua ressurreição; graças a esta comunhão, Paulo vive par Deus e seu serviço.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2190) comenta: Fórmula obscura por excessiva concisão e diversamente interpretada. Crucificado com Cristo, o cristão está morto com ele e nele para a Lei mosaica (cf. Rm 7,1s), em virtude desta mesma Lei (Gl 3,13), para participar da vida de ressuscitado de Cristo (Rm 6,4-10; 7,4-6…). Outros entendem que o cristão renunciou à Lei para obedecer ao AT (Gl 3,19.24; Rm 10,4), ou que ele morreu para a Lei mosaica em força de outra lei, a da fé ou do Espírito (Rm 8,2).

Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou (v. 20).

Segundo as cláusulas penais da lei, Paulo (o ser humano) mereceria a morte; instruído pelo fracasso, em lugar de voltar a ela, a abandona, “morreu para ela”, e busca a salvação em outro lugar, “crendo no Filho de Deus” (var.: “pela fé em Deus e em Cristo”; sobre o genitivo, cf. v. 16) e no amor de Jesus que se manifestou entregando-se na cruz (cf. Jo 13,1; Tt 2,14). Pela fé (Rm 1,16) Cristo torna-se centro e sujeito de todas as ações vitais do cristão (Rm 8,2.10s; Fl 1,21; cf. Cl 3,3s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2795) comenta: O sacrifício de Cristo foi “entrega por amor” e gerou vida imortal para si e para os demais. Paulo se une, de identifica com esse sacrifício, e assim experimenta em si a vida do glorificado, embora ainda viva pela “fé” e esperança.

Embora ainda “na carne” (Rm 7,5), a vida do cristão já é espiritualizada pela fé (cf. Ef 3,17). É uma condição paradoxal, (cf. Rm 8,18-27). Ao mesmo tempo que alude sua experiência pessoal (cf. 1,12-16), Paulo define o que é a existência cristã, a comunhão com o “Filho de Deus”, não é a vida do “eu” carnal que satisfaz (cf. Fl 3,4-11); este está morto (cf. o renascer no batismo, Rm 6,3-10), como Paulo lembra na conclusão da carta em 6,14. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2255) comenta a tensão escatológica (já e ainda): No entanto, esta existência “ainda” é vida na condição mortal do homem pecador – vida na carne- ; mas “já é” vida do Cristo glorioso no crente. Com efeito, a fé abre o homem ao amor gratuito e salvador do Filho de Deus.

Eu não desprezo a graça de Deus. Ora, se a justiça vem pela Lei, então Cristo morreu inutilmente (v. 21).

“Eu não desprezo a graça de Deus”, se Paulo voltasse à Lei, invalidaria a graça de Deus (cf. 3,17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2795) comenta: Vamos resumir a linha do que vem a seguir. O evangelho de Paulo não é “segundo a medida dos homens”, ao gosto dos homens, e sim segundo a Escritura. A experiência dos Gálatas (3,1-5) e o exemplo de Abraão (3,6-18 e 4,21-31) o comprovam. Então, que valor tem a lei? Explica-o em 3,19-4,7. Ao passo que 4,8-20 é um convite a refletir. Por conseguinte, não cabe compromisso entre liberdade e escravidão sob a lei (5,1-12), só que a liberdade se realiza no serviço do amor (5,13-26).

Evangelho: Lc 7,36-50

Ouvimos uma narrativa própria de Lc sobre uma pecadora anônima ungindo os pés de Jesus. Porque Lucas inseriu aqui esta história de pecadora perdoada? Provavelmente porque se une com o que procede em vários detalhes: o julgar e condenar o próximo (6,37); a pecadora corresponde aos “publicanos”, considerados pecadores porque cobravam impostos para os romanos pagãos (7,29; cf. 3,12s); seria uma das arrependidas e batizadas por João que dão razão a Deus com seu arrependimento (v. 29); Jesus come e bebe, é amigo de pecadores (v. 34).

Um fariseu convidou Jesus para uma refeição em sua casa. Jesus entrou na casa do fariseu e pôs-se à mesa (v. 36).

Em Lc, Jesus aceita dos fariseus convites para refeições (11,37; 14,1) e aproveita a ocasião para ensinar. O anfitrião é correto e cortês, mas não é cordial: não presta deferências extraordinárias como vemos depois (vv. 44-46; cf. Gn 18,4; Sl 23,5). Pretende também provar Jesus em sua conduta e doutrina? O fariseu é identificado depois com o nome de Simão (v. 40).

Certa mulher, conhecida na cidade como pecadora, soube que Jesus estava à mesa, na casa do fariseu. Ela trouxe um frasco de alabastro com perfume, e, ficando por detrás, chorava aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, enxugava-os com os cabelos, cobria-os de beijos e os ungia com o perfume (vv. 37-38).

Nisso “certa mulher”, depois caracterizada como “pecadora” da cidade, provavelmente uma prostituta, irrompe na sala (cf. Os 1,2; 3,1). Jesus e seus conterrâneos nunca se sentaram à mesa, como se costuma traduzir, mas “deitaram-se” à mesa. Conforme o costume de época, os comensais estavam reclinados em almofadas, com a cabeça para frente e os pés para fora, portanto os pés de Jesus estavam a mostra por trás dele. Embora a sala do banquete estivesse aberta, era muito pouco decoroso que tal mulher entrasse na casa de tal anfitrião; os fariseus eram muito cautelosos nesses assuntos. O termo “fariseu” significa “separado” (dos pecadores, da impureza), era provavelmente um apelido (cf. “crente”), eles mesmos se chamavam “companheiros” (haverim).

O que a mulher faz depois com Jesus é tão afetuoso quanto escandaloso: na presença de homens, soltar os cabelos, enxugar com eles os pés banhados em suas lágrimas, o esbanjamento do perfume embora não o derrame na cabeça, como era costume. Ela devia ter a intenção de ungir a cabeça (homenagear Jesus como messias = ungido; cf. Mc 14,3-9p), mas para isso não teve tanta coragem nem tanto acesso na casa do fariseu. E Jesus a deixa fazer sem rejeitá-la nem opor resistência.

Vendo isso, o fariseu que o havia convidado ficou pensando: “Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora” (v. 39).

O anfitrião se escandaliza, mas por cortesia se abstém de manifestá-lo em voz alta, apenas “ficou pensando”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2477s) comenta: Pronuncia um juízo mental. Se Jesus não adivinha a profissão da mulher, não possui a clarividência própria de um profeta (não pensa na outra parte: se conhece a profissão dela é culpado por omissão, por deixar fazer; a omissão é mais grave que a ignorância). Mas Jesus adivinha o pensamento dele, e com isso rebate o julgamento sobre ele, e lhe responde em voz alta, corrigindo assim o seu juízo sobre a mulher.

Jesus é mais do que “profeta” (cf. vv. 16.18-23). Numa refeição anterior com pecadores (5,29-32), Jesus respondeu à crítica dos fariseus comparando-se com um “médico” (cf. 4,23) que não veio para os que têm saúde (justos), mas para os doentes (pecadores).

Jesus disse então ao fariseu: “Simão, tenho uma coisa para te dizer.” Simão respondeu: “Fala, mestre!” (v. 40).

O nome do fariseu chama atenção. Em diversos trechos paralelos, Mc ou Mt escreveram contra os fariseus, mas Lc parece visar os próprios líderes cristãos, assim aqui também: Simão é o primeiro nome de Pedro (4,38; 5,1-11)

Mas em Mc 14,3p acontece uma unção de Jesus antes da sua paixão (cf. Jo 12,1-8): “Enquanto Jesus estava na casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher, trazendo um frasco de alabastro com perfume… “. Lc omitiu esta unção antes da paixão, antecipou-a mudando a unção da cabeça para os pés e transformando Simão num fariseu, visando assim também as lideranças da igreja.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: O recurso é contar uma parábola para distanciar e ao mesmo tempo comprometer o fariseu: terá de julgar o caso, como mentalmente o julgou. No fim, o juiz será julgado; como Davi (2Sm 12) ou jurado na canção vinha (Is 5,1-7).

”Certo credor tinha dois devedores; um lhe devia quinhentas moedas de prata, o outro cinquenta. Como não tivessem com que pagar, o homem perdoou os dois. Qual deles o amará mais?” Simão respondeu: “Acho que é aquele ao qual perdoou mais.” Jesus lhe disse: “Tu julgaste corretamente” (vv. 41-43).

A parábola é brevíssima e a solução é óbvia. “Quinhentas moedas de prata” são 500 diárias, uma grande quantia.

O “acho” do fariseu pode exprimir modéstia ou sarcasmo, desconfiado por ter caído na armadilha do carpinteiro esperto. O fariseu entrou no jogo, agora não pode evitar a aplicação. Abre-se outro julgamento sobre a mulher no qual, por comparação, o fariseu está implicado.

Então Jesus virou-se para a mulher e disse a Simão: “Estás vendo esta mulher? Quando entrei em tua casa, tu não me ofereceste água para lavar os pés; ela, porém, banhou meus pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Tu não me deste o beijo de saudação; ela, porém, desde que entrei, não parou de beijar meus pés. Tu não derramaste óleo na minha cabeça; ela, porém, ungiu meus pés com perfume (vv. 44-46).

O contraste triplo dá relevo às mostras de um afeto intenso e incontido. Lavar os pés ao hospede foi costume patriarcal (Gn 18,4; 19,2; 24,32; e posterior 1Sm 24,41). Ungir (a cabeça) também era costume (Sl 23,5; 141,5; cf. Mc 14,3p). Os gestos citados não eram obrigação do anfitrião, o fariseu agiu corretamente, mas a mulher demostrou mais amor

Por esta razão, eu te declaro: os muitos pecados que ela cometeu estão perdoados porque ela mostrou muito amor. Aquele a quem se perdoa pouco mostra pouco amor” (v. 47).

O fariseu não se considera pecador; por isso, fica numa atitude de julgamento, e não é capaz de entender e experimentar o perdão e o amor. Jesus mostra que a justiça de Deus se manifesta como amor que perdoa os pecados e transforma as condições das pessoas. O amor é expressão e sinal do perdão recebido.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: Na parábola e na sua aplicação, todos os intérpretes e muitos leitores têm observado uma estranha incoerência, que podemos resumir assim: ama muito, porque lhe perdoaram muito (parábola); foi-lhe perdoada muito, porque amou muito (aplicação). Note-se que “amar” pode equivaler a “agradecer” (que em hebraico se exprime com o verbo “brk”). Substitui-se o “porque” por “posto que, sinal que” de manifestação. No Salmo 116 o orante pronuncia: “Amo” (v. 1), “acreditei” (v. 10) e pergunta: “Como pagarei o Senhor por todo o bem que me fez?” (v. 12), mas não fala de arrependimento.

Talvez a explicação se obtenha considerando as duas realidades, amor e perdão, como correlativas, que se implicam mutuamente. Tentemos explicá-los brevemente. Alguém pode arrepender-se de ter violado uma norma objetiva (respeito pela ordem), ou porque vê sua indignidade (vergonha de si), ou por ter ofendido outra pessoa sem razão. O terceiro caso implica estima (um aspecto de amor) por tal pessoa. Quem pede e espera obter perdão, estima o ofendido, sente-se atraído por ele (amor e fé confiante). Obtido o perdão, no afeto do agradecimento, o amor se desenvolve sem empecilhos …

Jesus insinua que os fariseus tenham pouco de que ser perdoados? Em termos de lei e observâncias, talvez. Mas a religiosidade deles é mesquinha, calculista, não entra de cheio na dimensão do amor. Quem entrou no reino recebeu o perdão por pura graça e tem de viver em puro agradecimento.

A ambiguidade da resposta de Jesus reflete-se no problema dogmático da iniciativa de Deus (graça, perdão) e da colaboração humana (amor, obras).

E Jesus disse à mulher: “Teus pecados estão perdoados.” Então, os convidados começaram a pensar: “Quem é este que até perdoa pecados?” Mas Jesus disse à mulher: “Tua fé te salvou. Vai em paz!” (vv. 48-50).

Seguindo a lógica da parábola, é evidente que os pecados da mulher já “estão perdoados”, por isso demonstrou muito amor. Jesus confirma isso (enquanto em 5,20 perdoou os pecados no momento da declaração). A forma passiva (teológica) indica que Deus perdoou, já pela atuação do Batista. Então, por que agradecer a Jesus? – Porque é ele que confirma e atualiza o perdão com autoridade e dá sentido ao batismo de João.

Não é que o amor dela tem conseguido o perdão. Pela “fe”, ela aceitou o perdão afetuoso de Jesus (de Deus) que a “salvou” (cf. João Batista como precursor em 1,77)

Jesus pronuncia a fórmula da absolvição, sancionando a reconciliação (Sl 32,1; 103,3). Isso provoca admiração ou um segundo escândalo, mais grave do que o primeiro, porque atinge a missão e a revelação de Jesus: “Quem é este que até perdoa pecados?” (cf. 5,21). Mas Jesus não se importa com os adversários, ele despede a mulher com a fórmula convencional: “Vai em paz!”, destacando a importância da “fé” (e não das obras da lei, cf. a teologia de Paulo contra a dos fariseus em Gl 2,16 etc.; cf. a aceitação do pecador ao contrário do fariseu em Lc 5,27-32; 18,9-14), como a mulher hemorroíssa em 8,48p e o cego em 19,42p.

Esta fórmula da paz já parece ter prática litúrgica, se carregou de sentido transcendental e passou aos sacramentos da penitência e eucaristia.

O site da CNBB comenta: “Dize-me com quem andas e eu direi quem és!” A partir deste ditado, vemos as relações de exclusão que são estabelecidas entre os “santos” e os “pecadores”. E claro que quem é “santo” não pode conviver com os “pecadores”, pois correrá o risco de se contaminar e se tornar um deles. Esta é a lógica da mentira e do farisaísmo que marca a vida de muitos de nós. Ninguém é “santo”, pois só Deus é Santo, e o pecado marca a nossa existência, e quem disser que não é pecador, é mentiroso, logo não somos melhores que ninguém. Se uma pessoa é reta de coração, deve conviver com todos para que possa testemunhar a todos o amor de Deus, a vivência na busca da santidade, e assim colaborar com a conversão dos pecadores.

Depois disso, Jesus andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Nova do Reino de Deus. Os doze iam com ele; (v. 1)

Depois do encontro com a pecadora na casa do fariseu, Jesus continua sua missão, andando e pregando pelas cidades e povoados da Galileia (cf. 4,43s; Mc 1,39; Mt 4,23; 9,35).

No seu caminho, Jesus vai formando uma comunidade nova, um povo de Israel renovado: os “doze” apóstolos representam as doze tribos de Israel (6,12-16; Gn 35,22b-26; Ex 1,1-4; 1Rs 4,1-7). Jesus cumpre sua missão em companhia de um grupo de discípulos, como farão mais tarde os missionários da Igreja (At 8,14; 11,26; 13,2-3…). Mas os doze só receberão a responsabilidade da missão a partir de 9,1s.

E também algumas mulheres que haviam sido curadas de maus espíritos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios (v. 2)

No movimento de Jesus não há somente homens reconhecidos pela sociedade. Entre os doze encontramos um publicano (cobrador de impostos para os romanos, cf. Mt 9,9; 10,3) e um guerrilheiro (terrorista ou zelota: Simão Cananeu; cf. Lc 6,12p), marginalizados pela sociedade do seu tempo, como eram as mulheres. Elas também são parte integrante do grupo que acompanha Jesus. A presença dessas mulheres em volta dele é um fato excepcional no mundo palestinense (cf. Jo 4,27).

Enquanto em Mc, evangelho mais velho e fonte para Mt e Lc, aparecem mulheres acompanhantes de Jesus só no final, na morte e no túmulo de Jesus (Mc 15,40-16,8), em Lc elas tem um destaque desde o início (cf. Maria, Isabel e Ana em Lc 1-2; Maria e Marta em 10,38-42). O primeiro lugar na lista das discípulas sempre ocupa a testemunha da ressurreição em todos os evangelhos: Maria Madalena. Como ela é chamada pelo nome do lugar (Magdala – madalena; cf. Nazaré –nazareno), pode se deduzir que não tinha família (marido, pai, filho) que se importava com ela.

Ela se encontra ao pé da cruz (Mt 27,56p), no sepultamento de Jesus (Mt 27,61p) e no túmulo aberto (Lc 24,10p), onde ela será a primeira a ver o Ressuscitado (Jo 20,11-18; Mt 28,9s). Como Jesus ressuscitado a enviou para comunicar a boa notícia aos apóstolos, S. Tomás de Aquino a chamou “apóstola dos apóstolos”. Em 2016, a sua “memoria” litúrgica no dia 22 de julho foi transformada numa “festa”, igualando-a às festas dos apóstolos (decreto papal, 03/06/2016).

A ideia de que vários demônios podem possuir a mesma pessoa se encontra também em 8,27. 30 e 11,26. Isso deve ser uma representação judaica para significar o poder da influência de Satanás sobre o possesso (sobretudo com o número sete, que significa plenitude). Para Maria Madalena, Lc não esclarece: é doença ou possessão? Ela é a pecadora anônima de 7,36-50 como às vezes se pensou e assim a tradição a identificou? Enquanto “certo fariseu” (7,36) foi identificado por “Simão” em 7,40-44, “certa mulher” (7,37) ficou sem nome, apenas conhecida como “pecadora” (7,37.39), a quem Jesus perdoou (cf. a adúltera anônima em Jo 8,1-11).

Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e várias outras mulheres que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam (v. 3).

“Joana, mulher de Cuza”; o cargo exato deste funcionário Cuza e a sua importância são mal definidos, como também a função de Manaém junto a Herodes em At 13,1. Vários têm visto uma relação entre a menção de Lc a esses personagens do séquito de Herodes e os dados que só ele reporta sobre o tetrarca e sua família (Lc 3,1; 13,31; 19,12-14; 23,7-15; At 4,27; 12). Joana, que se encontra também no túmulo vazio (24,10), teria sido uma informante para o evangelista?

As mulheres curadas “ajudavam” a Jesus e a comunidade (já a sogra de Pedro em 4,39; cf. At 9,36-42: Tabita), como outras também, e não só com bens materiais (cf. Maria e Marta em 10,38-42; Priscila em At 18,2.18.26 etc.). Mas para motivar seus leitores greco-romanos, Lc destaca a presença e a partilha de pessoas abastecidas (cf. 19,1-10; At 4,36s).

O site da CNBB comenta: Assim como Jesus não parava, mas vivia caminhando de um lado para o outro anunciando a chegada do Reino de Deus, a sua Igreja não pode ficar parada. Ela deve ir sempre ao encontro do outro, abrir novas fronteiras no trabalho evangelizador para que todos possam ter a oportunidade de conhecer o Reino de Deus, assim como livremente optar por ele. Para realizar a sua missão, a Igreja deve, assim como o divino Mestre, envolver o maior número possível de pessoas, sem distinção entre elas, que queiram colocar a sua vida a serviço do Reino de Deus, como fizeram as mulheres, conforme nos narra o Evangelho de hoje.

 

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