12 de Setembro 2019, Quinta-feira: Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam (vv. 27b-28; cf. Mt 5,44).

23ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Cl 3,12-17

Na leitura de hoje, o autor da carta (provavelmente um discípulo de Paulo) apresenta a parte positiva da conduta cristã (cf. a parte negativa do “homem velho”, ou seja, pagão, em vv. 5-11, leitura de ontem). É um programa pouco articulado, mas toca pontos essenciais (cf. Ef 4,1-2.32). É lido também no Domingo da Sagrada Família (3,12-21).

Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também (vv. 12-13).

O autor aplica títulos do povo escolhido no AT: santos, eleitos, amados (Ex 19,5s; Is 43,20s; Os 11,1), retomados por 1Pd 2,9. Os sentimentos do povo de Deus devem corresponder aos do Senhor (cf. Ex 34,6s; Fl 2,1-5).

Nesta carta destaca-se a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”; cf. em seguida os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1). O perdão mútuo inspira-se no modelo de Cristo (Senhor), um eco da oração do Pai-nosso (Mt 6,12-15; 18,21-35).

Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição (v. 14).

O amor-caridade (agape) é o dom (charisma) maior; compare-se o hino ao amor em 1Cor 13 (cf. Rm 13,8-10; 1Pd 4,8; Mt 5,43-48).

Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos (v. 15).

O critério para superar litígios deve se construir ou restabelecer, a paz de Cristo (Fl 4,7; Ef 2,14; Jo 14,27); há de reinar sintonia e harmonia, porque os cristãos são os membros do mesmo corpo; o corpo de Cristo é sua igreja (1Cor 12,12; Ef 2,16; 4,3-4).

“Sede agradecidos” (eucharistoi); nosso termo “Eucaristia” significa “ação de graças” em grego.

Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças (v. 16).

“A palavra de Cristo”, outros manuscritos trazem “do Senhor” ou “de Deus”. O texto primitivo trazia talvez simplesmente: “A palavra” (cf. Fl 1,14; Mc 4,13-20). Parece referir-se às reuniões litúrgicas, com ensinamentos partilhados ao mesmo nível (cf. Jr 31,34; 1Jo 2,27) e cânticos inspirados pelo Espírito. Trata-se indubitavelmente de improvisações “carismáticas” sugeridas pelo Espírito durante as assembleias litúrgicas (cf. 1Cor 12,7; 14,26; Ef 5,19s), hinos ou súplicas cristãs, compostos a imitações dos salmos; alguns deles passaram ao NT (cf. 1,15-20; Ef 1,3-14 etc.).

Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele daí graças a Deus, o Pai (v. 17).

Da fé se passa à vida (“em palavras ou obras”), da liturgia se passa ao resto da existência sob o signo de Jesus como Senhor e de Deus como Pai (1Cor 10,31). Novamente o autor exorta para ação de graças (cf. v. 15). Em seguida escreve preceitos particulares de moral doméstica dando conselhos a respeito do relacionamento entre os esposos, pais e filhos, servos e senhores (3,18-4,1 omitidos pela nossa liturgia, cf. 2ª leitura do Domingo da Sagrada Família).

 

Evangelho: Lc 6,27-38

Continuamos ouvir o sermão da planície em Lc (em Mt 5-7 é o sermão da montanha). O amor ao próximo, em particular aos inimigos, ocupa boa parte do discurso programático de Jesus em Lc.

A vós que me escutais, eu digo: (v. 27a).

Dirige-se “a todos os que escutam” (vv. 17-19; cf. Mt 5,1; 7,28), não mais “aos discípulos” apenas (cf. v. 20). Embora esteja formulado em imperativos, não deve ser entendido como novo código legal para regular uma conduta em determinados casos, mas como expressão de um espírito que anima de dentro toda a vida cristã. A motivação não deve ser interesseira; busca precisamente refrear o egoísmo interesseiro. A motivação é o exemplo de Deus Pai (vv. 35b-36), que seu Filho vem revelar (cf. 10,21s), para devolver sua imagem aos homens.

O estilo é aforístico, de frases concisas e incisivas, ligadas ou articuladas em paralelismo e agrupadas em unidades menores. O centro é a chamada “regra de ouro” (v. 31) ligada ao amor aos inimigos.

Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam (vv. 27b-28; cf. Mt 5,44).

Convém tomar juntos os quatros verbos, que reúnem e articulam: o afeto ou atitude, “amai”; as obras, “fazei o bem”; as palavras, “bendizei”; a oração “rezai”. Sobre o último pode-se recordar Moisés intercedendo pelo Faraó (Ex 8,25; 9,28s), e Jeremias por seus perseguidores (15,15). Pela oração, o ofendido recomenda a Deus o ofensor e isso é grande benefício; ao mesmo tempo olha ao ofensor numa perspectiva superior. A oração favorece os três atos procedentes. Em Lc, Jesus pratica estas palavras na sua paixão, rezando pelos que o crucificam (23,34).

Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva (vv. 29-30; Mt 5,39-42).

Demonstra a capacidade de suportar a injustiça no corpo ou nas posses. É como um manifesto de não-violência (cf. a campanha de Mahatma Gandhi pela independência da Índia, conseguida em 1947). Em Jo 18,22s, Jesus não oferece a outra face, mas questiona a atitude do guarda violento. O dar é emprestar a fundo perdido, como o aconselha Dt 15,1-11; comparar com as salvaguardas de Eclo 29,1-13.

O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles (v. 31)

É a chamada “Regra de Ouro” (cf. Mt 7,12). Na fonte original Q (perdida na história, mas absorvida em Mt e Lc que a usavam), esta regra estava ligada ao amor aos inimigos.

A Regra de Ouro é universal e existe em várias formas nas muitas filosofias e religiões: por ex. Confúcio (China, 551-479 a.C.): “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostaria que fosse feito a ti”. No AT, Eclo 31,15 (grego): “Julgo por ti mesmo o que o outro (próximo) sente e comporta-te sempre com reflexão”. Sua aplicação abrange desde o cotidiano até o heróico. Comparar o imperativo categórico de Imanuel Kant (Alemanha, 1724-1804): “Aja sempre da maneira que tua conduta possa ser uma lei geral para todos”.

Já o rabbi Hilel (60 a.C.-10 d.C.) viu nela um resumo da lei de Moisés. Na forma negativa (Tb 4,15: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”), ela é a mais comum; é um resumo da ética, uma lógica natural (“lei natural”, quer dizer: não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência humana). A forma positiva que Jesus apresenta (cf. “amarás o teu próximo como a si mesmo”, Lv 19,18 citado em Mc 12,31p; Rm 13,9; Gl 5,14) é mais exigente e desafia a criatividade: não somente não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), sim amar e pensar como posso fazer o bem ao outro. S. Tomás de Aquino (1225-1274) definiu: “amar é fazer o bem ao outro”.

Se alguém procura instintivamente o próprio bem, pense que também os outros procuram. Se duvidar como tratar o próximo, consulte seus próprios desejos. Não somente tratar como o tratam, mas como desejaria que o tratassem. Para tanto promove a iniciativa de fazer o bem, pôr-se na situação do outro, adivinhar seus desejos, sentindo os próprios. Como seria uma sociedade regida por este princípio?

Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca (vv. 32-35a; cf. Mt 5,46s).

Repetem-se três normas: amar, fazer o bem, emprestar. Três coisas que homens honestos praticam, só que em limites estreitos e pensando no interesse. O que Jesus propõe é superior, porque derruba os limites da reciprocidade e o motor do interesse.

Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus (v. 35b; cf. Mt 5,45).

A recompensa virá de Deus: “quem se compadece do pobre, empresta ao Senhor” (Pr 19,17). Filho do Altíssimo: o título é usado pelo eclesiástico (Eclo 4,10, encerrando uma situação sobre esmola e beneficência a pobres e oprimidos, órfãos e viúvas, “e Deus te chamará filho”). O título pode ser lido no salmo 82,6, num contexto de administração da justiça em favor do necessitado. Nós diríamos que o filho puxa o pai.

Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso (v. 36; cf. Mt 5,48).

“Compassivo” (misericordioso) é um dos títulos clássicos do Senhor, que se repete em formulas litúrgicas (Ex 34,6; Dt 4,31; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8). Agora o tributo pertence a “vosso Pai”; “como um pai se enternece com seus filhos” (Sl 103,13).

Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Daí e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos (vv. 37-38; cf. Mt 7,1s; Mc 4,24).

Seguem-se quatro sentenças paralelas, duas negativas (julgar, condenar) e duas positivas (perdoar, dar), cinzeladas por formas correspondentes. Seu alcance se estende a qualquer campo da vida. O cristão não deve erguer-se em juiz do próximo, não deve condenar sem razão, ser indulgente. Isso não suspende o juízo de valores que é parte integrante do sentido moral. A imagem da recompensa refere-se a um recipiente de medir cereais, que ao ser sacudido contém mais, e ao qual depois não passa a rasoura. Deus é compassivo e generoso (Pr 19,17).

A Bíblia do Peregrina (p. 2472) comenta: No centro deste sermão soa a regra de ouro (v. 31), que outros textos e culturas formulam em termos negativos (“não faças a ninguém o que não queres que te façam”, Tb 4,15) e Jesus exprime em forma positiva, muito mais exigente: “fazer”, porque o amor inculcado não se esgota em sentimentos (cf. Is 5,1-7). Aqui se vai à raiz da ética: Fazer o bem e não fazer o mal nas relações com os outros. Por serem recíprocas, permitem traçar um quadro para distinguir casos tópicos que se poderiam ilustrar com exemplos ou textos bíblicos:

Faz mal a outrem sem razão: do que se queixa o salmista (35,7; 6,5);

Mal por mal: pode ser castigo legal ou vingança legitima [a lei do talião: Ex 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21]

Mal por bem: máximo agravante (Sl 35,12; 38,21; Pr 17,13; Jr 18,20);

Bem sem razão: por compaixão, por generosidade; Ex 23,4-5 exorta à compaixão pelo asno do inimigo e pelo inimigo;

Bem por bem: se recebido, é agradecimento; não tem mérito especial, segundo vv. 32-33; cf. 1Pd 2,19-23;

Se esperado, é interesseiro: contra isto adverte o v. 34

Bem por mal: 1Sm 24,18; Pr 25,21-22; é o tema central da exortação. Paulo o formula assim: “Não se deixa vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem” (Rm 12,21).

O site da CNBB comenta: A regra do ouro da vida do cristão é resumida por Jesus na frase: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. Todas as pessoas desejam ser amadas, compreendidas e servidas, por isso, todos devem amar, compreender e servir. Devemos ser diferentes das pessoas que vivem a reciprocidade: devemos viver a gratuidade, ser diferentes dos que vivem fazendo justiça: devemos ser misericordiosos. O critério do nosso agir em relação aos outros não pode ser o agir dos outros, mas sim o próprio Deus, que não nos trata segundo nossas faltas, mas ama a todas as pessoas, indistintamente, com amor eterno e as cumula com a abundância dos seus bens. Se vivermos segundo esse critério, seremos filhos do Altíssimo e será grande a nossa recompensa nos céus.

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