12 de setembro de 2017 – Terça-feira, 23ª semana

Leitura: Cl 2,6-15

A leitura de hoje soa como eco de alguns atributos mencionados no hino lido na quarta-feira passada (1,14.18-20; cf. Jo 1,14-16). Paulo continua aplicando o hino (1,15-20) à vida dos colossenses.

“Já que vocês aceitaram Jesus Cristo como Senhor, vivam como cristãos: enraizados nele, vocês se edificam sobre ele e se apóiam na fé que lhes foi ensinada, transbordando em ações de graças. Cuidado para que ninguém escravize vocês através de filosofias enganosas e vãs, de acordo com tradições humanas, que se baseiam nos elementos do mundo, e não em Cristo” (vv. 6-8).

Assim como a árvore depende da raiz e a casa depende do alicerce, os cristãos dependem da fé em Cristo, transmitida pelo anúncio do Evangelho. O cristão deve estar vigilante para não ser influenciado por ideais que não sirvam para conhecer e viver com mais profundidade a pessoa de Cristo: “Ninguém vos enrede com sua filosofia.” Uma vez libertos do império das trevas e libertados por Cristo (1,13s), renegar a Cristo para voltar aos erros antigos seria recair na escravidão (cf. Gl 4,8s; 5,1). Não conhecemos o conteúdo das referidas doutrinas, pois nossa única fonte de informação é a carta. O que expõe não coincide com alguma escola filosófica conhecida. O v. 8 só nos oferece dois qualificativos negativos e uma vaga referencia ao conceito de “elementos” (Gl 4,3). Talvez o autor pense em duas forças funestas combinadas: por um lado a especulação e tradição da mente humana; por outro lado, os poderes cósmicos incontroláveis (destino, astros…), ou talvez nos elementos terra, água, fogo e ar que lutam entre si; pelo regime de certos alimentos, por ex., podia-se escapar da influência deles e a alma ascender ao éter celeste.

“É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a plenitude da divindade. Em Cristo vocês têm tudo de modo pleno. Ele é a cabeça de todo principado e de toda autoridade” (vv. 9-10).

Mas se Cristo é a “Plenitude” de Deus (1,19), nele já  se encontra tudo o que é preciso para nos relacionarmos com Deus. Cristo está acima de qualquer poder visível ou invisível. O sentido da palavra “plenitude” (1,19) é precisado aqui pelo advérbio “corporalmente” e pelo adjunto adnominal “da divindade”. No Cristo ressuscitado se reúne todo o mundo divino- ao qual ele pertence, pelo seu ser preexistente e glorificado – e todo o mundo criado – que ele assumiu diretamente (a humanidade) e indiretamente (o cosmo) pela sua encarnação e ressurreição, em suma, toda a plenitude do ser. O cristão participa da plenitude de Cristo, como membro do seu corpo (1,19; Ef 1,23; 3,19; 4,12-13). Associado assim aquele que a cabeça dos poderes celestes, eles lhes é superior, a partir de agora. Os versículos seguintes desenvolverão essas duas ideias: participação do cristão no triunfo (vv. 11-13), submissão dos poderes celestes a este triunfo (vv.14-15).

“Em Cristo vocês foram circuncidados com uma circuncisão não feita por mãos humanas, mas com a circuncisão de Cristo, a qual consiste em despojar-se do corpo carnal” (v. 11).

Cristo nos libertou da morte, perdoando nossos pecados e tornando desnecessária a circuncisão (cf. Gn 17), que era exigida como condição indispensável para participar no banquete da Páscoa libertadora (Ex 12,44.48s; Js 5). Insiste no batismo, que nos incorpora à morte e ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6,1-11). O rito corporal da circuncisão (no órgão corporal da transmissão da vida) incorporava o judeu à descendência de Abraão e à vida generativa do povo (Rm 2,29). O batismo como selo da fé nos incorpora à vida do Ressuscitado: é a nova circuncisão (Rm 6,4).

“Com ele, vocês foram sepultados no batismo, e nele vocês foram também ressuscitados mediante a fé no poder de Deus, que ressuscitou Cristo dos mortos” (v. 12).

O batismo, que substituiu a circuncisão, leva o cristão a participar da morte e ressurreição de Cristo, isto é, a passar da morte para vida em Cristo. Em Rm 6, a participação na morte era formulada no passado (mortos com Cristo), a participação na ressurreição reportava-se a um futuro comum com Cristo (nós viveremos com eles; cf. Rm 6,5). Aqui um paralelismo mais estreito se estabelece: nós morremos e ressuscitamos com Cristo. Os dois verbos estão no passado: é uma antecipação que epístolas anteriores não tinham feito. O objetivo permanece igualmente concreto: afirmar aos cristãos sua libertação com relação a toda potência. A carta aos Efésios irá ainda mais longe (cf. Ef 2,5-6).

“Vocês estavam mortos por causa das faltas e da incircuncisão da carne, mas Deus concedeu a vocês a vida juntamente com Cristo: Ele perdoou todas as nossas faltas, anulou o título de dívida que havia contra nós, deixando de lado as exigências legais; fez o título desaparecer, pregando-o na cruz; destituiu os principados e autoridades, oferecendo-os em espetáculo público, após triunfar sobre eles por meio de Cristo” (vv. 13-15).

Os vv. 13-15 retomam outro hino que celebra a vitória: através da morte de Cristo na cruz, Deus anulou o registro dos pecados e venceu todas as potências que poderiam escravizar os homens. Portanto, os cristãos agora são livres e não devem se submeter a nada ou a ninguém que não seja Cristo. As imagens se sobrepõem: sepultura, documento de dívidas cancelado e posto no pelourinho (levado ao lugar de execução), marcha triunfal do vencedor com seu cortejo de prisioneiros subjugados (cf. 1Pd 2,24; 2Cor 2,14). Em resumo, ninguém pode competir com Cristo, nenhum complemento falta à sua ação.

 

Evangelho: Lc 6,12-19

No Evangelho de hoje, Lc apresenta a lista dos doze apóstolos, copiando a do evangelho mais antigo de Mc (cf. Mc 13-19p). No seu segundo volume, Lc reapresenta esta lista sem o traidor Judas, mas com Maria, a mãe de Jesus e as mulheres (At 1,13-15).

“Nesses dias, Jesus foi para a montanha a fim de rezar. E passou toda a noite em oração a Deus” (v. 12).

Jesus vai à montanha para rezar. Lc menciona muitas vezes a oração de Jesus (3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28-29; 10,21; 11,; 22,32.40-46; 23 34,46). Sai da massa entusiasta e dos rivais hostis, sobe à “montanha”, lugar do encontro com Deus (1Rs 19), “passa a noite” (Sl 1,2; 42,4; 119,55) “orando”. Sobre o conteúdo da oração de Jesus, os evangelhos sinóticos (Mc, Mt, Lc) são muito sóbrios: uma efusão do Espírito Santo (10,21-22), a angustia em Getsêmani (22,39-46); O evangelho de João é mais explícito. No contexto, essa oração prepara a escolha dos doze e o grande discurso da planície.

“Ao amanhecer, chamou seus discípulos, e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de apóstolos” (v. 13).

Jesus tem a iniciativa da escolha (no AT, Javé: 1Sm 10,24; Sl 78,68,70) de doze apóstolos, que formarão o núcleo da comunidade nova que ele veio criar. A palavra apóstolo significa aquele que Jesus envia para continuar a sua obra. São doze, como as tribos que formam o Israel clássico (cf. Gn 29,31-30,24; 35,21; Ex 1,2-5; etc. 1Rs 4,7). São doze como corpo ou colégio. No tempo da Igreja, embora os doze tenham um lugar único, o título se estende e se aplica com maior facilidade; e forma derivados, como apostólico, apostolado etc. Lc emprega o título apostolo seis vezes em seu evangelho (aqui; 9,10; 11,49; 17,5 22,14; 14,10; Mt e Jo 1 vez; Mc: 2 vezes). Ao contrario de Paulo (1Cor 12,20; Ef 2,20), Lc reserva este nome para os Doze (salvo At 14,4.14).

“Simão, a quem também deu o nome de Pedro, e seu irmão André; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelota; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, aquele que se tornou traidor” (vv. 14-16).

Para o pensamento bíblico, aquele que dá um nome novo a um homem assume o poder sobre ele (2Rs 23, 34; 24,17), como ele um destino novo pela eficácia do mesmo, sobretudo quando é o próprio Deus quem impõe o nome novo (Gn 17,5.15;32,29). A atribuição a Simão do nome de Pedro é relatada pelos evangelhos em momentos diferentes: Jo 1,42 a situa no primeiro encontro do discípulo com o Mestre; Mc 3,16 e Lc a vinculam à escolha dos Dozes; ambos sublinham esse dado mencionando até então Simão (Lc 4,38; 5,1-10, salvo 5,8), e em seguida Pedro (Lc 22,31 e 24,34, usando o nome Simão, devem provir de fontes particulares).

Nesse texto com seu contexto já aparece uma estrutura da comunidade. Em círculos concêntricos situam-se o povo, os discípulos, os doze. Pedro figura sempre em primeiro lugar e Judas Iscariotes no último. O grupo é heterogêneo: há dois de nome grego (André, Filipe), um ex-colaboracionista (identificando Mateus com Levi, cf. Mt 9,9p), um ex-simpatizante dos extremistas zelotes (Simão “cananeu é “zelota”: Lc traduz o termo aramaico de Mt 10,4; Mc 3,18), e até um traidor.

“Jesus desceu da montanha com os doze apóstolos, e parou num lugar plano. Estava aí numerosa multidão de seus discípulos com muita gente do povo de toda a Judéia, de Jerusalém, e do litoral de Tiro e Sidônia. Foram para ouvir Jesus e serem curados de suas doenças. E aqueles que estavam atormentados por espíritos maus, foram curados. Toda a multidão procurava tocar em Jesus, porque uma força saía dele, e curava a todos” (vv. 17-19).

Um novo sumário, de ensinamento e curas, serve de fundo ao discurso que se segue. Como Moises, Jesus desce da montanha para dirigir-se ao povo. O narrador insiste na multidão de discípulos e de povo vindo da capital e da sua província (não se menciona a Galileia) até o litoral pagão de Tiro e Sidônia (cf. 10,13-14). Essa afluência significa primeiramente uma reunião da diáspora; num segundo tempo simboliza a Igreja de judeus e pagãos. Jesus atrai por seu ensinamento (cf. 11,31); é um dado que prepara o próximo discurso; e por seu poder curador, que se transmite por contato. Podemos falar do poder de Deus encarnado em corpo humano, do poder vivificante que “nossas mãos tocam” (1Jo 1,1). O povo vem de todas as partes ao encontro de Jesus, porque a ação dele faz nascer a esperança de uma sociedade nova, libertada da alienação e dos males que afligem os homens.

Lc copiou este sumário de Mc 3,7-12 (só antecipou o grito dos possessos a respeito do Filho de Deus em 4,41). Mc tinha o colocado antes de Jesus subir a montanha e escolher seus apóstolos. Mt e Lc o apresentam antes de um sermão que em Mt acontece na montanha (5,1-7,29) e em Lc na planície (v. 17.20-49; evangelhos dos próximos dias). Apesar desta diferença geográfica é surpreendente o fato que os dois evangelistas inserissem este sermão no mesmo lugar da narração, porque eles trabalham independentemente um do outro (cf. a narração divergente da infância de Jesus). Foi o Espírito Santo que inspirou esta inserção paralela ou existia uma versão redigida (em que o sermão já estava inserido neste lugar) de Mc (Deuteromarcos) que ambos usavam?

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