12 de Setembro de 2018, Quarta-feira: A respeito das pessoas solteiras, não tenho nenhum mandamento do Senhor. Mas, como alguém que, por misericórdia de Deus, merece confiança, dou uma opinião (v. 25)

Leitura: 1Cor 7,25-31

No cap. 7 da carta, Paulo responde aos coríntios às questões que lhe foram apresentadas a respeito do casamento e da virgindade em geral (cf. v. 1). Fala sucessivamente das pessoas casadas (o casal cristão, vv. 1-11; o casamento entre cristãos e pagãos, vv. 12-16) e das pessoas não casadas (as virgens, vv. 25-35; os noivos, vv. 36-38; as viúvas, vv. 39-40). O princípio geral de solução para as questões abordadas é apresentado nos versículos anteriores da nossa leitura (vv. 17.20.24): “Cada um permaneça na condição em que se encontrava quando foi chamado”.

A virgindade é frequentemente mencionada a propósito do casamento e vice versa. Paulo assim sugere a complementaridade desses dois estados, ambos são um dom: “Cada uma recebeu de Deus o seu dom (carisma) particular; um, deste modo, outro, daquele modo” (v. 7).

A respeito das pessoas solteiras, não tenho nenhum mandamento do Senhor. Mas, como alguém que, por misericórdia de Deus, merece confiança, dou uma opinião (v. 25).

Aqui, Paulo se dirige por igual às “pessoas solteiras” de ambos os sexos, como indicam os vv. 27s. A palavra grega parthenós pode designar qualquer moço ou moça não-casados, e por isso considerados “virgens”.

Tampouco nesse ponto pode apresentar um “mandamento do Senhor” (vv. 10.25), apenas uma concessão (v. 6) ou aqui um conselho, uma “opinião” (v. 25). O próprio Paulo não era casado como Pedro era (cf. vv. 7s; 9,5; Mc 1,30p). Embora Jesus louve os que se fazem “eunucos pelo reino de Deus” (Mt 19,12), não o impõe como preceito. Por puro favor e confiando em sua lealdade, foi encarregaram de uma missão: apoiado nela, pode dar um conselho. Trata-se, portanto, de um conselho apostólico, portanto “merece confiança”.

A tradição cristã distingue os mandamentos divinos (para todos) dos “conselhos evangélicos” (para alguns, cf. Mt 19,12.21; nas congregações religiosas são três: pobreza, castidade, obediência).

Penso que, em razão das angústias presentes, é vantajoso não se casar, é bom cada qual estar assim. Estás ligado a uma mulher? Não procures desligar-te. Não estás ligado a nenhuma mulher? Não procures ligar-te. Se, porém, casares, não pecas. E, se a virgem se casar, não peca. Mas as pessoas casadas terão as tribulações da vida matrimonial; e eu gostaria de poupar-vos isso (vv. 26-28).

Suposto o carisma (7,7), entre dois bens Paulo considera “vantajoso” o celibato (“não se casar”), porque o matrimônio, junto com suas alegrias, traz muitas preocupações. “É vantajoso”, lit. “é bom para o ser humano” (ánthropos). Esse termo grego designa a espécie humana, e não o homem (anêr) ou a mulher (gynê) em particular.

“Em razão das angústias presentes”; Paulo pode pensar nas provações familiares implicadas pela fidelidade ao Cristo das quais se trata em Lc 12,51-53p (divisões na família). Estas angústias caracterizam o tempo intermediário entre a primeira e a segunda vinda de Cristo Talvez pense nas palavras de Deus a Eva (Gn 3,16), na experiência de Rebeca (Gn 25,22) ou nas preocupações de um pai por sua filha (Eclo 42,9-14; cf. Pr 17,25; 19,13).

“Terão tribulações da vida matrimonial”, lit.: terão tribulações na carne. Não se trata das tribulações oriundas da concupiscência (vv. 2.9). O termo grego tem sido habitualmente traduzido por “angústia”, mas este sentido, aqui, não é conveniente. Sobre a noção da tribulação, importante em Paulo, cf. Rm 5,3; 1Ts 3,3 etc.

Eu digo, irmãos: o tempo está abreviado. Então, que, doravante, os que têm mulher vivam como se não tivessem mulher; e os que choram, como se não chorassem, e os que estão alegres, como se não estivessem alegres, e os que fazem compras, como se não possuíssem coisa alguma; e os que usam do mundo, como se dele não estivessem gozando. Pois a figura deste mundo passa (vv. 29-31).

Há outra razão mais forte, que é a parusia (volta do Senhor): sua proximidade iminente relativiza todos os valores e atividades do cristão. Sobre a iminência ou a demora da parusia, pode se comparar 1 e 2Ts. Aquilo que Lc 14,26s diz em termos de preferências, aqui é traduzido em termos temporais.

Temos que levar em conta que Paulo esperava que pudesse ver a vinda de Cristo ainda em vida (cf. 15,51s; 1Ts 4,15). Os escritores posteriores, evangelistas e cartas posteriores tinham que explicar a “demora” da parusia (agora já faz 2000 anos), por ex.: Mt 24-25; Lc 12,35-46; 2Pd 3.

Não é um desprezo desdenhoso do mundo e desta vida com seus sofrimentos e alegrias (como pregavam os filósofos estoicos). É a consciência de que a temporalidade humana é vista aqui à luz da iminência escatológica. Comparam-se as categorias de pessoas com a escatologia de Is 24,1s (cf. Mc 13,15-20p). Paulo convida menos à indiferença para com as realidades profanas do que à vigilância, para evitar se atolar nessas preocupações quando as realidades essenciais estão alhures (em outro lugar, no reino de Deus; cf. Mt 6,25-36). Não se deve esquecer o caráter relativo das coisas em face de Cristo e do reino vindouro.

“O tempo está abreviado”, imagem expressiva e termo técnico da navegação, lit.: o tempo cerrou as suas velas. Qualquer que seja o intervalo entre o momento presente e a parusia (volta de Cristo no fim do mundo; cf. 1,7s; 15,51s; 1Ts 5,1; Mc 13,24-32p; etc.), ele perde de importância, pois de qualquer forma, o mundo futuro já está presente no Cristo ressuscitado. “Pois a figura deste mundo passa”. Termina a figura (grego: esquema) do grande teatro do mundo, ou então a representação e aspecto presentes; para dar lugar a outro (cf. Ap 21,5). Sl 102,27 diz “como roupa que se muda”.

Do seu ponto de vista, Paulo teme que o casado tenha que se preocupar demais das coisas do mundo e agradar a sua esposa em vez de dedicar toda sua energia para o serviço do Senhor (vv. 32-35). Só entenderá o celibato quem está consciente da transitoriedade do mundo com todas as suas necessidades (incluído o casamento).

A Nova Bíblia Pastoral (p.1394) resume: A virgindade é proposta como livre escolha; aliás, a mesma motivação com que Jesus propôs o celibato (Mt 19,10-12). As motivações para essa escolha são três: as tribulações da carne (v. 28), a brevidade do tempo (v. 29) e a transitoriedade deste mundo (v. 31). Diante da expectativa do fim iminente, não valia a pena tomar novas iniciativas. As pessoas começavam a preparar-se para essa vinda do Senhor (2 Cor 6,2).

 

Evangelho: Lc 6,20-26

No evangelho de hoje, como não houve mudança de lugar, o autor parece ater-se à notícia que acabou de dar: “Jesus desceu da montanha com eles e parou num lugar plano” (v. 17; cf. evangelho de ontem). Segue-se o início de um sermão que em Mt é chamado “sermão da montanha” (Mt 5-7), em Lc, porém, é o “sermão da planície” (6,17.20-49).O discurso inteiro de Lc se divide em três partes: as bem-aventuranças e mal-aventuranças (vv. 20-26, evangelho de hoje), o preceito do amor (vv. 27-38,evangelho de amanhã), parábolas e comparações (vv. 39-49, evangelhos dos dias seguintes).

Jesus levantando os olhos para os seus discípulos, disse: (v. 20a).

Em Lc, Jesus dirige essa primeira parte do sermão “aos discípulos”, enquanto em Mt, o povo é o destinatário (cf. Mt 5,1 e 7,28).

Para este sermão, Mt e Lc usam a mesma fonte, uma coleção de palavras de Jesus, chamada Q (que não se preservou como tal; foi absorvida por Mt e Lc). Em Lc, este sermão é mais curto e simples, porque? Ou Lc eliminou da fonte comum o que era demais judaico, ou, mais provável, Mt acrescentou outras coisas que eram do interesse dos seus leitores judeu-cristãos (a interpretação da lei de Moisés, etc.).

Ambos os evangelistas iniciam o sermão com as bem-aventuranças. Mas a proclamação programática de Lc distingue-se marcadamente daquela de Mt:

1) Pela composição: divide-se em duas estrofes paralelas e antitéticas, que correspondem a dois gêneros literários (bem-aventuranças e mal-aventuranças). Cada estrofe articula-se em três peças concisas e um desenvolvimento.

2) Pelo conteúdo: as três equivalem a variações ou mostram aspectos da mesma realidade. Não há atitudes positivas (como beneficência, promoção da paz, misericórdia; cf. Mt 5,3-9). A pobreza não é qualificada pela interioridade (como em Mt: “em espírito”). Talvez a versão de Lc esteja mais próxima da forma original na fonte Q.

Os dois gêneros literários estão bem estabelecidos no AT (Antigo Testamento). A bem-aventurança (felicitação, parabéns) é frequente sobretudo nos salmos e demais livros sapiências.

O AT às vezes expressava felicitações como essas falando de piedade, de sabedoria e de prosperidade (Sl 1,1s; 33,12; 127,s; Pr 3,3; Eclo 31,8; etc.). No espírito dos profetas, Jesus lembra que também os pobres participam das suas bênçãos: as três primeiras bem-aventuranças declaram que pessoas comumente tidas como infelizes e amaldiçoadas são felizes, estão aptas para receber a benção do reino. As outras bem-aventuranças em Mt se referem mais à atitude moral do ser humano, não só à condição social (física e psíquica) como em Lc. Outras bem aventuranças se encontram em Lc 1,45; 10,23; 11,27-28; cf. Mt 11,6; 13,16; 16,17; 24,46; Ap 1,3; 14,13; etc.).

A mal-aventurança (“ai”) é profética (ou fúnebre). Leem-se séries de ais em Is 5,8-23; Hab 3,6-19; Eclo 2,12-14; Mt 23; Lc 11,43-52; como outros gêneros literários formam-se as séries contrapostas de bênçãos e maldições de Dt 27-28.

Em Lc, Jesus une-as num díptico (painel de arte em duas partes) de felicidade e infelicidade, bem e mal do homem. É uma revelação escatalógica que abre caminho pelo paradoxo (não fruto de uma árvore proibida), é um anúncio que confronta e divide a humanidade (cf. Lc 16,19-31), introduz e difunde o reinado de Deus na história humana. Mt e Lc coincidem em acrescentar suas próprias motivações, “porque, vede, pois”; isso parece deslocar a ventura da situação para suas consequências, que se resumem no “reinado de Deus”.

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Bem-aventurados, vós que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir! (vv. 20b-21).

Em Mt, Jesus usa a terceira pessoa (“os”), em Lc se dirige aos ouvintes: “vós”.

Mt apresenta oito ou nove bem-aventuranças (se incluir Mt 5,11s pode ser uma alusão às dez palavras do decálogo) como caminho de vida ética e espiritual (Mt 5,3: pobres “em espírito” são os humildes) com promessas de recompensa celeste. Lc conhece apenas quatro bem-aventuranças preservando mais a versão original (Q) que é crítica social, a mudança de situações entre esta e a futura (cf. 16,25). Os pobres (cf. Dt 15,1-11; Is 29,10; Sl 74,21; 1Sm 2,8 e Lc 1,52s) são também os famintos (Is 32,6s; 58,6s.9s; Ez 18,7.16; Jó 22,7; 24,4-11; Tb 1,17; 4,16; Eclo 4,2; Sl 107,9; Jl 2,26) e os aflitos que choram (Is 25,8; 30,19; Sl 56,9; 126; 137,1). Mas no Reino de Deus, não haverá mais fome nem tristeza (cf. Ap 21,3s; Is 25,6.8; 35,10; 49,10.13; 65,19; Ez 34,29). A profecia de Is 61,1 (lida por Jesus na sinagoga de Nazaré em Lc 4,18) cumpre-se aqui: o messias anuncia a Boa Nova (evangelho) aos pobres.

Bem-aventurados, sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem! Alegrai-vos, nesse dia, e exultai pois será grande a vossa recompensa no céu; porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas (vv. 22-23).

A quarta categoria dos bem-aventurados são os perseguidos por causa de Jesus Cristo (com “alegrai-vos”, vv. 22s; cf. Mt 5,11s). No AT, os profetas foram perseguidos por cumprirem sua missão (11,47s.49ss; At 7,52; 1Ts 2,15; Rm 11,3; Hb 11,32-40; 2Cr 36,16): desde Elias por Jezabel (1Rs 19) até a figura exemplar de Jeremias, passando por Amós (Am 7). O judaísmo acrescentou ainda o martírio de Isaías e outros em livros apócrifos. Esta quarta bem-aventurança reflete as perseguições dos discípulos de Jesus que foram expulsos da sinagoga (cf. Jo 9,22; 12,42; 16,2).

A perseguição “por causa do Filho do Homem” (por Jesus e seu evangelho) é uma constante da Igreja desde a época dos Atos dos Apóstolos e tem lugar importante no Apocalipse (cf. 1Pd 4,14). Paulo alegra-se nas perseguições, porque provam a autenticidade do Evangelho (cf. 2Cor 7,4; 12,10; Fl 1,18; 2,17; cf. Cl 1,24; At 5,41; 14,22 etc.). Muitos cristãos estão sendo perseguidos por causa da sua fé ainda hoje em vários países (p. ex. muçulmanos ou comunistas) e, às vezes, discriminados, ofendidos ou ridicularizados por ideologias laicas nos países ocidentais. Mas os fiéis podem contar com recompensa grande da parte de Deus (cf. Mc 8,35p; 9,41p; Lc 12,8-9p; Mt 19,28).

Mas, ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação! Ai de vós, que agora tendes fartura, porque passareis fome! Ai de vós, que agora rides, tereis luto e lágrimas! Ai de vós quando todos vos elogiam! Era assim que os antepassados deles tratavam os falsos profetas (vv. 24-26).

Entre os discípulos históricos não havia muitos ricos (cf. 1Cor 1,26), por isso surpreende que, em Lc, Jesus se dirige aqui com “vós”. Mas podemos imaginar pessoas de condição financeira melhor entre o povo que escutava este sermão (vv. 17-19.27), e, com certeza, dentre da comunidade de Lc (cf. as mulheres em 8,3; as admoestações em 12,13-21; 16,19-31; a inserção de Zaqueu em 19,1-10; a descrição de Barnabé em At 4,36s).

Lc é sensível à justiça social, pode ser que ele mesmo tenha acrescentado os quatro ais como apelo à conversão (cf. Lc 12,13-21; 16,19-31; At 2,45 etc.). Outra opinião vê as mal-aventuranças já presente na fonte Q, então precisa explicar por qual motivo Mt as teria eliminado (geralmente, Mt é mais fiel às suas fontes): talvez quisesse apresentar um retrato positivo do discípulo (como do próprio Jesus) através das bem-aventuranças ampliadas. Talvez Mt quisesse apresentar uma série de “dez palavras” (aludindo a Moisés e os dez mandamentos “na montanha”; cf. Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4) em vez de duas partes opostas (as bênçãos e maldições encerram, não iniciam o discurso de Moisés, cf. Dt 28 e 30). O refrão em Mt 6,2.5.16 (“eles já receberam sua recompensa”) lembraria ainda dos ais em Lc 6,24s.

O modelo para estes ais são os anúncios proféticos de desgraça no AT (cf. Am 5,18; 6,1; Is 1,4; 5,8-24; 10,5ss; 30,1s; 33,1; Hab 2,5-20). A injustiça acompanha o luxo; parecida é a descrição de Sodoma (cf. Ez 16,49); enérgica é a descrição do luxo em Amós (Am 6,1-9; cf. Tg 4,9; 5,1). Ao reinado de Deus, que comunica seu consolo (Is 40,1; 49,13; 51,12), opõe-se o consolo humano efêmero e vão (cf. Jó 21,34; Sl 49; 37; 73; os fariseus em Mt 6,1-5; 23,5).

“Não dura muito o homem rico e poderoso, é semelhante ao boi gordo que se abate” (Sl 49,13.21). Enquanto o rico, muitas vezes, se apega aos bens e prazeres da terra, o pobre pode contar com a recompensa no reino de Deus que “cumulou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (o canto de Maria em Lc 1,53; cf. a parábola do pobre Lázaro e do rico esbanjador em 16,19-31). O homem tem que se decidir entre “servir a Deus ou ao dinheiro” (16,13p).

O site da CNBB comenta: O mundo nos prega valores que não são do Reino de Deus. Se formos viver de acordo com os valores do mundo, seremos egoístas e buscaremos unicamente a nossa própria satisfação. Porém, se quisermos viver de acordo com os valores do Reino de Deus, deveremos ser capazes de amar e, em nome do amor, buscar a felicidade, a satisfação e o bem estar de todos, e denunciar com coragem profética todos os que vivem e pregam os valores que não são do Reino de Deus. As consequências dessas posturas são que os que vivem de acordo com os valores do mundo, terão a consolação do mundo, e os que vivem de acordo com os valores do Reino, terão a consolação do Reino.

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