13 de abril de 2017 – Quinta-feira, Semana Santa 5ª feira Santa (Missa da santa ceia)

1ª leitura: Ex 12,1-8.11-14

Nas paróquias, inicia-se o Tríduo Pascal com a missa do Lava-pésa noite (nas dioceses, com a missa dos santos óleos à tarde, às vezes antecipada). Como 1ª leitura, a liturgia apresenta-nos o relato da instituição da Páscoa no AT (Antigo Testamento).

O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: ”Este mês será para vós o começo dos meses; será o primeiro mês do ano (12,1-2).

Já na vocação de Moisés (3,18) e nas audiências com o farão (5,1-3 etc.) se falava da festa ou do sacrifício que o povo hebreu devia celebrar em honra a seu Deus Javé. Em seguida apresenta-se o relato sobre a origem da festa maior dos judeus, a páscoa. Nele, dois elementos se fundem: a narrativa histórica e as práticas litúrgicas. A parte narrativa inclui: a morte dos primogênitos egípcios (12,12.29-30), comer o cordeiro e o rito de marcar com sangue os batentes, a refeição apressada com pão sem fermento (12,1-14), a fuga precipitada com os presentes ou empréstimos dos egípcios (12,31-42). A parte litúrgica inclui: o rito da páscoa com sua rubricas e cerimônias (vv. 2-24.43-49), os pães ázimos (vv. 15-20), a consagração dos primogênitos (13,1.11-16). Misturam-se práticas específicas de pastores (cordeiro), de agricultores (pães ázimos) e outras sem fronteiras (primogênitos; cf. Gn 22).

A origem da festa da Páscoa talvez seja um ritual de pastores nômades: com o sangue de um cordeiro (ou cabrito), colocado na entrada do curral ou da casa, esperava-se a proteção dos males (demônios? invasores?). Em Israel, pastores nômades e agricultores sedentários misturavam-se (não sem conflitos, cf. Gn 4), assim coincide a festa dos pastores com a festa dos agricultores na primavera, a festa dos “pães ázimos” (pães sem fermento por sete dias; v. 8). De fato, páscoa e ázimos são duas festas originariamente distintas: a festa dos ázimos começou a ser celebrada pelos agricultores somente em Canaã e só foi unida à festa da páscoa depois da reforma de Josias (2Rs 22-23). A origem destas duas festas está em tempos remotos, seu conteúdo natural (rebanho, pães de trigo) ganha depois um sentido histórico: a comemoração da libertação do Egito. Assim, a ligação entre a páscoa, a décima praga e a saída do Egito é apenas ocasional: esta saída aconteceu por ocasião da festa.

Ouvimos hoje a primeira parte das instruções do Senhor. Até o v. 11 se lê como ritual de cerimônia que se deve observar ao celebrar a páscoa: qualidade do animal, os que vão comê-lo, como prepará-lo, data exata e hora do dia.

A origem da palavra “Páscoa” (hebraico: pesah) é desconhecida; a explicação tradicional é que significa “passagem” (cf. v. 13.23.27; o verbo hebraico pasahsignifica “passar ou saltar por cima”). A passagem do ano que, na época, começava na primavera (v. 2: “o começo dos meses… o primeiro mês do ano”) torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O primeiro mês da primavera no hemisfério norte chamava se Abib no antigo calendário (Dt 16,1), ou Nisan no calendário pós-exílio de origem babilônica. O dado supõe um calendário estabelecido com um ano que começa na primavera (nisan); diferente do que faz o ano começar no outono.

Falai a toda a comunidade dos filhos de Israel, dizendo: ‘No décimo dia deste mês, cada um tome um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa. Se a família não for bastante numerosa para comer um cordeiro, convidará também o vizinho mais próximo, de acordo com o número de pessoas. Deveis calcular o número de comensais, conforme o tamanho do cordeiro (vv. 3-4).

O filósofo judaico Martin Buber (1878-1965) comparou a sociedade egípcia com uma pirâmide e a comunidade israelita com uma fogueira de acampamento. Enquanto a sociedade egípcia é hierarquia (pirâmide) e opressão, a “comunidade dos filhos de Israel” é comunitária (fogueira), “convidará também o vizinho” (v. 4) evitando também o desperdício. A festa deve ter caráter familiar. A ceia pascal prepara os israelitas para décima e última praga que resultará na libertação da escravidão.

No calendário de Dt 16,1s, ovelhas e bois são sacrificados no templo de Jerusalém, conforme a concentração do culto na capital, que o rei Josias promoveu (622 a.C.).

O cordeiro será sem defeito, macho, de um ano. Podereis escolher tanto um cordeiro, como um cabrito: e devereis guardá-lo preso até ao dia catorze deste mês. Então toda a comunidade de Israel reunida o imolará ao cair da tarde (vv. 5-6).

O cordeiro será sem defeito, porque para uma festa religiosa se deve oferecer o melhor. “Até ao dia catorze… ao cair da tarde”, ou seja, antes que comece o dia 15 ao pôr-do-sol (em Israel, um novo dia não começa a meia noite, mas na véspera).

Enquanto o Egito desenvolveu o calendário solar de 365 dias (Júlio César introduziu-o no Império Romano), Israel tinha um calendário lunar: um mês corresponde exatamente às quatro fases da lua. No dia primeiro de cada mês é lua nova, e na metade do mês é lua cheia: na noite do dia catorze para quinze. Portanto, a festa pascal coincide com a primeira lua cheia na primavera ou seja, depois de 21 de março (equinócio que inicia a primavera no hemisfério norte e o outono no sul).

A páscoa foi celebrada na casa dos pastores e camponeses (vv. 3-4.21-22), mas a relação com o êxodo e a minuciosa regulamentação indicam uma redação da época do rei Josias (640-609) ou do pós-exílio, quando o cordeiro pascal só poderá ser imolado no Templo de Jerusalém (cf. v. 14; Dt 16,1-7; 2Rs 23,21-23).

Tomareis um pouco do seu sanguee untareis os marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerdes (v. 7).

O antigo rito de marcar os batentes da porta com sangue de animal pode ter origem mágico para afastar influxos nefastos. O v. 13 o liga com a história: “O sangue servirá de sinal” de marcação, de separação das casas dos egípcios que serão atingidos: “Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora”. Segundo 11,7, o Senhor se encarrega de distinguir entre egípcios e hebreus, sem recurso ao sinal do sangue. Israelitas separados como povo eleito no meio do mundo pagão é expressão da teologia pós-exílica.

Comereis a carne nessa mesma noite, assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas (v. 8).

A festa dos agricultores, a dos “pães ázimos” que dura sete dias (Ex 23,14s; 34,18), foi juntada à dos pastores e também se comemora a Páscoa, a saída do Egito (cf. Nm 28,16-25; Dt 16,1-8).

Os rabinos reagiram à destruição do templo em 70 d.C. e criaram a seder (ordem) para o povo celebrar a páscoa sem o templo (até hoje), como antes os judeus já o faziam em parte na diáspora. A seder é bastante simbólica e didática, por ex. mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a bênção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) do sofrimento do povo de Israel. Depois divide-se a matzá (“pão ázimo”, sem fermento) do meio em duas partes desiguais.São comidas as “ervas amargas” (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento dos hebreus no Egito.Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma.”

Nos vv. 9-10 (omitidos pela nossa liturgia) quer-se evitar a profanação, não se deve comer cru (cf. Gn 9,4), mas “inteiro… sem sobrar nada para o dia seguinte”.  texto grego acrescenta: “Não se quebrará nenhum osso” (cf. v. 46; citado por Jo 19,36).

Assim devereis comê-lo: com os rins cingidos, sandálias nos pése cajado na mão.E comereis às pressas, pois é a Páscoa,isto é, a Passagem do Senhor! (v. 11).

Deve-se comer com a roupa da viagem, “com os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão” quer dizer, pronto para marcha para sair em liberdade. Na ceia da época de Jesus, as pessoas ficavam deitadas no chão, encostadas em travesseiros.

A etimologia do termo hebraico pesah (grego: páscoa) é desconhecida. A Vulgata (tradição latina de S. Jerônimo) explica: “isto é passagem”, mas não encontra apoio no hebraico. Ex 12,13.23.27 explica que Javé “saltou”, ou “omitiu”, ou “protegeu” as casas dos israelitas, mas trata-se de uma explicação secundária.

E naquela noite passarei pela terra do Egitoe ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde os homens até os animais; e infligirei castigos contra todos os deuses do Egito, eu, o Senhor.O sangue servirá de sinalnas casas onde estiverdes.Ao ver o sangue, passarei adiante,e não vos atingirá a praga exterminadora,quando eu ferir a terra do Egito (vv. 12-13).

Os vv. 12-13 funcionam como explicação histórica do rito no relato, funcionam como anúncio do fato iminente.

“Atravessar” ou “passar”: com o verbo da mesma ou da homófona raiz que “páscoa”. Supõe que os hebreus moravam misturados com a população egípcia, não a parte, na região de Gessen (Gn 46,28-47,6). A confrontação com o rei se eleva ao nível das divindades: Javé julga e condena os deuses do Egito, demonstrando que “não há como ele” (Sl 82); é o conceito universalista de Javé na redação pós-exílica (cf. 9,14).

Oflagelo destruidor ou a praga “exterminadora”: desta expressão do v. 23 saiu a fórmula do “anjo exterminador” (pode se ler: “não haverá contra vós um golpe do exterminador” (cf. v. 23).

Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua (v. 14).

O dia será o dia 15 que começa na véspera, na tarde precedente.

Atribui-se ao Senhor a instituição da “festa memorável”, que a fundamenta no fato passado e lhe garante validade perpétua. Para os judeus, “memória” não significa pensar no passado, mas torna-lo presente, atualizar. Assim Jesus pede na última ceia: “Fazei isto em minha memória” (cf. 2ª leitura).

Pela tradição, “Páscoa” significa passagem (vv. 11.27), é a “passagem” do ano que começava na primavera (”será o primeiro mês do ano” v.1) e torna-se a “passagem do Senhor” (v. 11). O Senhor, ou seja, o anjo exterminador, “passará” por Egito “matando todos os primogênitos“ (v. 12), só poupando as casas dos israelitas, onde o sangue dos cordeiros pascais nos marcos e travessas das portas dos israelitas“servirá de sinal… Passarei adiante e não vos atingirá a praga exterminadora” (v. 13).

Depois desta praga, o faraó deixará sair os escravos em liberdade, mas logo se arrependerá e os perseguirá com seu exército poderoso. Haverá outra “passagem” do povo de Deus: pelo mar Vermelho que salva os israelitas e extermina os egípcios (13,17-15,21; cf. 3ª leitura da vigília pascal).

Os cristãos dão mais outro sentido à Páscoa: A “passagem” de Jesus pela morte a vida (cf. Jo 13,1; evangelho da quinta-feira santa). Ele é verdadeiro Cordeiro pascal imolado (cf. 1Cor 5,7; Jo1,29.36; Ap 5,6 etc.), cujo sangue na madeira da cruz salva a vida do povo de Deus. Em Jo, Jesus morre na exata hora da imolação dos cordeiros no templo (cf. v. 6 “ao cair da tarde”; Jo19,31.34.36).

A data da Páscoa judaica continua sendo a primeira lua cheia (noite de dia 14 a 15 no seu calendário lunar) de primavera (no hemisfério norte cai em março ou abril). Para os cristãos, porém, a Páscoa é celebrada no domingo seguinte (por causa da ressurreição “no primeiro dia da semana”). Portanto, na Semana Santa sempre tem lua cheia.

 

2ª leitura: 1Cor 11,23-26

Na 2ª leitura ouvimos o relato da Eucaristia mais antigo que temos por escrito.

O que eu recebi do Senhor foi isso que eu vos transmiti (v. 23a).

O apóstolo Paulo só conheceu Jesus ressuscitado, não andava e comia com ele como os outros apóstolos. “O que recebi do Senhor” se refere então à tradição dos apóstolos que introduziram Paulo no mistério eucarístico após sua conversão. Mas o mistério pascal, ou seja, que Jesus está vivo no céu e se faz presente de maneira misteriosa e sacramental, Paulo experimentou diretamente na sua conversão espetacular (At 9,5; 22,8; 26,15; Gl 1,11-24).

No entanto, escreveu um relato sobre a instituição da Eucaristia já antes dos evangelistas (Mc foi o primeiro deles por volta de 70 d.C.). Paulo passou em Corinto nos anos 50 a 52 d.C. e, provavelmente em 56, escreveu esta carta em Éfeso, dirigida “à Igreja de Deus que está em Corinto” (cf. 1,2).

Na noite em que foi entregue o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei isto em minha memória” (vv. 23b-25).

Paulo não narra toda história da paixão como os evangelistas, por isso resume no início: “Na noite em que foi entregue” (v. 23). Nos evangelhos, o verbo “entregar” é comumente empregado em sentido pejorativo (Mt 4,12; 5,25; 10,17.19), principalmente nos anúncios da paixão (Mc 9,31p; 10,33p; Mt 26,2; cf. Mc 14,10s.18.21p).

Como anfitrião ou pai para sua família, Jesus como mestre dos seus discípulos, “tomou o pão” e fez a oração de benção (beraká) como os judeus costumam fazer antes de partir e distribuir o pão. A oração do padre sobre as ofertas (pronunciada geralmente em silêncio) e as Orações Eucarísticas são inspiradas neste “dar graças” (a palavra grega “eucaristia” significa “ação de graças). O nome mais antigo da Eucaristia era “partir o pão” (At 2,42; 20,7; 27,35s; cf. Lc 24,30s.35).

Jesus associa o pão com seu corpo e o vinho com seu sangue. Se foi uma ceia pascal (nos evangelhos sinóticos sim, em Jo não), podemos relacioná-la ao costume judaico de celebrar e atualizar o êxodo (cf. Ex12; primeira leitura) com gestos simbólicos e didáticos.

Depois da destruição do templo em 70. d.C., os rabinos criaram a seder (ordem) da ceia pascal com diversos gestos simbólicos: por ex.mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a bênção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) dos antepassados israelitas. Depois divide-se a matzá(pão ázimo) do meio em duas partes desiguais.São comidas as ervas amargas (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento amargo dos hebreus no Egito. Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma…”

Jesus anuncia mais uma vez, mas desta vez com um gesto profético (simbólico, misterioso, sacramental), a sua morte que beneficiará os discípulos (“por vós”; Mc e Mt: “por muitos”, cf. Is 53,12; as palavras da missa “para todos” se inspiram p. ex. em Jo 6,51: “para vida do mundo”). Sua morte não é um acidente, mas tem sentido: dará vida aos homens, como um alimento que se desfaz ao ser consumido; como o cordeiro pascal cujo sangue colocado nas portas salvou os israelitas no Egito (cf. Ex 12).

Se a última ceia foi uma ceia pascal, porque não se fala do cordeiro? Antes já, na mesma carta, Paulo já escreveu: “Pois nossa páscoa, Cristo, foi imolada” (5,7). Na eucaristia cristã, o pão e o vinho substituem como elementos a carne do cordeiro da páscoa judaica.

O vinho tinto alude ao sangue. Assim Jesus anuncia indiretamente que sua morte será violenta (na cruz). Na ceia pascal, os judeus costumam passar quatro vezes o cálice. O cálice ao qual Jesus se refere é o cálice da paz (cf. Cl 1,20; Ef 2,13s). Aliança se faz para firmar a paz, e muitas vezes, a aliança é selada com uma refeição ou um sacrifício (cf. Gn 15; Ex 24,1-11).

Comparando os quatro relatos da instituição da Eucaristia (1Cor 11,23-25; Mc 14,22-26; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20) consta-se o seguinte: Nas palavras de Jesus sobre as espécies de pão e vinho, há semelhanças e diferenças: Mt e Mc tem uma versão, Lc e Paulo outra. Daí se fala de duas versões: a tradição da Palestina (Mt e Mc) e a tradição helenista (da cultura grega: 1Cor 11,23-25 e Lc 22,19-20).

Paulo escreveu em 56 d.C. O primeiro evangelista Mc só escreveu em 70 d.C., Mt o segue cerca de 80 d.C.; Lc escreve também em 80 d.C., mas independentemente de Mt. Mas Mt e Lc já usam Mc como fonte e acrescentam mais conteúdos. Lc escreve os Atos dos Apóstolos em 85 d.C. conhecendo a vida e as viagens de Paulo.

Qual das duas versões é mais original? É difícil dizer. Paulo diz que “que eu o recebi do Senhor”, isto é, não diretamente, mas através de uma tradição, que remonta ao Senhor. Talvez Mc (e Mt seguindo-o) transmita a palavra mais original sobre o pão, enquanto Paulo tenha a palavra mais autêntica sobre o cálice. As palavras de Paulo e Lc têm mais simetria: duas vezes “fazei isto em minha memória” (falta em Mc e Mt). É memória que atualiza o fato, é comemoração festiva (cf. Ex 12,14). O que Mc e Mt anotam sobre cálice “derramado por vós”, Paulo e Lc já expressam sobre o pão “dado por vós”; “por vós” significa o valor redentor da morte de Jesus (cf. Is 53; cf. Mt 26,28: “para remissão dos pecados”). Enquanto Mc e Mt lembram mais a antiga aliança do Sinai, “o sangue da aliança” (cf. Ex 24,8; Zc 9,11), Paulo e Lc lembram também a profecia de Jr 31,31, a “nova aliança”.

Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha (v. 26).

No final, Paulo sublinha a seriedade desta memória contra a banalização e profanação que os coríntios faziam através de divisões e falta de partilha (cf. v. 21: “enquanto um passa fome, outro fica embriagado”). Quem participa da eucaristia, deve ter consciência: “Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (v. 26). Quer dizer, Cristo morreu por nós, mas está vivo e voltará cf. a aclamação aramaica dos primeiros cristãos “Maranatá” – “Senhor nosso, vem” ou: “Vem, Senhor” (16,22; Ap 22,20; cf. Rm 13,12; Fl 4,5; Tg 5,8; 1Pd 4,7).

 

Evangelho: Jo 13,1-15

O quarto evangelista não escreveu sobre a instituição da Eucaristia na última ceia; já fez um discurso longo no capitulo 6 sobre o “pão da vida que desceu do céu”, mas apresenta agora o “lava-pés”, uma ação que fala mais do que muitas palavras e revela o sentido da eucaristia: amor que é doação e serviço.

Era antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai; tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus (vv. 1-2).

Na tradição judaica, Páscoa significa “passagem” (cf. Ex 12,11) com referência à passagem do anjo exterminador dos primogênitos no Egito e a fuga do povo de Israel passando pelo mar Vermelho (Ex 14). Para Jesus, finalmente chegou a “hora” (cf. 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1) para ele “passar” deste mundo, escravo do pecado, para o Pai, à terra prometida.

Era “antes” da festa da Páscoa. Diferente dos evangelhos sinóticos (Mc 14,12.17p; Mt 26,17-19; Lc 22,7.14s), no quarto evangelho, a última ceia de Jesus não uma ceia pascal, que seria no outro dia (cf. 18,28; 19,14.31,36). Em Jo, Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal (cf. 1,29.36) que morre na exata hora quando os cordeiros pascais estão sendo imolados no templo, “ao cair da tarde”(Ex 12,6) do “dia de preparação da páscoa” (Jo18,28; 19,14.31.42). A última ceia é uma ceia de despedida “antes da festa da Páscoa” (v. 1) em que Jesus pronuncia discursos de despedida (cap. 13-17).

“Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”, pode-se traduzir também “até o extremo”, aludindo à morte na cruz. Em 15,13, Jesus declarará: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos.”

Aqui, a menção do diabo e do futuro traidor dá uma cor sombria à cena. O que prevalecerá, o amor ou o ódio?

Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido (vv. 3-5).

O autor resume a origem e missão divina de Jesus, “de Deus tinha saído e para Deus voltava”, ele é todo-poderoso, “o Pai tinha colocado tudo em suas mãos” (cf. 5,19-27), mas agora se comporta como servo humilde (podemo-nos lembrar do Servo de Javé em Is 53, que servia de modelo para a paixão de Cristo: 1ª leitura de amanhã).

Oferecer ao hóspede água para lavar os pés da poeira do caminho era gesto de cortesia (Gn 18,4; Lc 7,44); quem fazia, um servo ou um discípulo dedicado ao mestre. Jesus inverte os papeis: sua ação e quase escandalosa como provoca o diálogo seguinte.

Chegou a vez de Simão Pedro. Pedro disse: “Senhor, tu me lavas os pés?” Respondeu Jesus: “Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”. Disse-lhe Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés!” Mas Jesus respondeu: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”. Simão Pedro disse: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça”. Jesus respondeu: “Quem já se banhou não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo. Também vós estais limpos, mas não todos”. Jesus sabia quem o ia entregar; por isso disse: “Nem todos estais limpos” (vv. 6-11).

Os discípulos não entendem este gesto de Jesus, porque normalmente são os escravos da casa que lavavam os pés empoeirados dos hospedes. Pedro reclama, porque o gesto de Jesus não combina com seu preconceito de autoridade (vv. 6-7, cf. Mt 3,14), mas Jesus insiste na comunhão que ele tem com os seus: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo” (v. 8). Pedro muda de opinião e quer um banho inteiro, mas Jesus responde: “Quem já se banhou, não precisa lavar senão os pés, porque já está todo limpo” (v. 10). Esta frase pode se referir ao batismo de João Batista que Pedro já recebeu (1,40-42), e ao batismo em geral pelo qual o cristão é purificado na alma (no espírito, não numa parte do corpo apenas; cf. 1Pd 3,21) e tem parte com Jesus.

A Bíblia do Peregrino comenta: O diálogo tem um nível realista: a reação apaixonado de Pedro diante do ato de rebaixar-se do Mestre e não menos apaixonado desejo de não afastar-se dele. Tem um nível simbólico indicado por Jesus: ele deve realizar o gesto, é condição inevitável para ter parte na herança (celeste) com Jesus, seu sentido profundo não se entende agora… Costuma-se propor o seguinte simbolismo: a humilhação presente de Jesus, voluntária, incrível, representa a morte que ele vai realizar para obter-nos a vida eterna. Colateralmente, na menção de “tomar banho” pode ressoar uma referência batismal (Ef 5,26; Tt 3,5).

O sacrifício de Jesus é dar sua vida por amor (cf. v. 1; 15,12), é humildade daquele que é Deus, mas se faz homem (1,14) e servo (Is 53):“assumiu a condição de servo/escravo… humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,3-8; a morte na cruz era reservada somente aos escravos ou terroristas, inimigos do estado). O lava-pés resume a vida de Jesus em favor dos outros (“por nós”) e prefigura sua paixão.

Jesus já sabia da traição de Judas, ”quem o ia entregar”, por isso disse, “nem todos estais limpos” (v. 11; 6,70-71; 12,6; Mt 26,14-25 cf. leituras de ontem e anteontem).

Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-se de novo. E disse aos discípulos: “Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (vv. 12-15).

Depois Jesus explica que o “exemplo” de humildade, amor e serviço que ele deu como “mestre e Senhor” (cf. Mt 10,24; 23,8-12), também nós devemos fazer “uns aos outros”:“Dei-vos um exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (v. 15). Com este gesto surpreendente, Jesus mostrou que autoridade é servir (cf. Mc 10,42-45) e amar os outros. Devemos seguir o exemplo de Jesus: “Assim como eu vos amei, amai-vos uns aos outros”(13,34; 15,12.17) é o novo mandamento na mesma ceia.

Na Idade Média, havia um tempo em que o lava-pés também foi considerado um sacramento. Mas depois de restringir os sacramentos ao número de sete, ficou fora, porque se entendia que Jesus não queria uma imitação literal do lava-pés num rito semanal (como a Eucaristia, “fazei isto em minha memória”), mas dar um exemplo de amor mútuo e serviço.

O serviço de Jesus não era só sua mão de obra como carpinteiro, mas entregar seu corpo todo, seu sangue, “dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10,45p). “Eu vim para servir”, o lema da CF 2015 foi tirado de Mc 10,45p. A Igreja é o sacramento de Cristo, sinal de unidade (cf. LG 1), e deve servir a sociedade.

É interessante, como o lava-pés exerce uma função crítica à uma distorção da Eucaristia e à uma Igreja autorreferencial que não quer servir aos homens e mulheres de hoje (cf. GS 1). É mais fácil apenas crer na presença de Jesus na sagrada hóstia e consumi-la, sem querer envolver-se com os outros, sem assumir um compromisso social, sem partilhar. Paulo critica a divisão entre ricos e pobres na eucaristia em Corintos (1Cor 11; cf.  2ª leitura). Jesus fez um gesto concreto invertendo a hierarquia. A comunidade deve seguir seu exemplo e não reproduzir o esquema da sociedade dominada pelo poder econômico e militar, pela competição e pelo direito do mais forte: “Entre vós não deve ser assim” (cf. Mc 10,42-45p). Já Lc 22,24-27 trouxe estas palavras para a última ceia, e Jo 13 as transformou em gesto.

 

Voltar