13 de Janeiro de 2019, Domingo: Batismo do Senhor

Batismo do Senhor

Com a festa do Batismo do Senhor encerra-se o Tempo do Natal e abre-se o Tempo Comum no qual acompanharemos Jesus adulto nos evangelhos. Hoje também é o 1º domingo do Tempo Comum, mas a cor litúrgica ainda é branca.

Antigamente, a festa do Batismo do Senhor fazia parte da Epifania (manifestação do Divino). Igrejas orientais e algumas ortodoxas ainda celebram na Epifania o nascimento de Jesus, seu Batismo e o primeiro milagre em Caná. Na Igreja Católica, o nascimento de Jesus com a adoração dos pastores celebra-se em 25/12 (desde o séc. IV) e a Epifania (a adoração dos magos) em 06 de janeiro, da qual a festa do Batismo do Senhor foi desmembrada em 1959 e se celebra no domingo seguinte (ainda no ano C, celebra-se o casamento de Caná no 2º domingo do Tempo Comum, além de ser lido em 12/10 no Brasil).

 

1ª Leitura: Is 42,1-4.6-7

Na primeira leitura, um servo de Deus é apresentado com palavras que lembraram os evangelistas do batismo de Jesus.

No livro do Deutero-(Segundo)-Isaias (Is 40-55; escrito no exílio da Babilônia por volta de 550 a.C.) encontram-se quatro cânticos (poesias) de um “Servo” de Deus (42,1-4; 49,1-7; 50,1-9; 52,13-53,12; cf. leituras na Semana Santa).

Quem é este servo? Há duas interpretações principais pelos judeus: a coletiva vê nele o povo judeu (cf. 41,8), a individual vê nele uma pessoa concreta, talvez um conhecido do profeta que deu sua vida pelo povo (cf. 52,13-53,12). A interpretação cristã vê neste servo uma profecia que se cumpriu plenamente em Jesus Cristo.

Quem apresenta este servo, é o próprio Javé-Deus pela boca do profeta. O primeiro canto (ou poesia) encontra-se nos vv. 1-4; os vv. 6-9 formam uma segunda parte, separada por uma nova introdução (os vv. 5.8-9 são omitidos na leitura de hoje). A palavra chave que aparece três vezes é mispat, traduzida por “julgamento” (vv. 1.3b), “justiça“ (v. 4) ou “direito”.

(Assim fala o Senhor:) Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minh’ alma; pus meu espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações (v. 1).

O primeiro canto caracteriza o “eleito” do Senhor (Javé) de maneira aberta a várias interpretações: É uma pessoa ou uma figura coletiva? Deus elegeu Israel (cf. 41,8), mas elegeu também Davi, em quem pôs o seu espírito (v. 1; cf. 1Sm 16,13). Mas a figura deste “servo” é um contraste grande a um rei poderoso ou a um povo guerreiro.

Pelo gênero literário pode-se comparar a cena com a designação de Saul a Samuel para unção em 1Sm 9,15-17 (“Eis o homem de quem lhe disse ele governará sobre o meu povo”) ou a apresentação de um ministro (“servo”; cf. 1Rs 22,12) na corte celestial de Javé (cf. 40,1ss; 1Rs 22,19-22) que o profeta escutou em sua visão (cf. Is 6).

Javé o “recebe”, apoia o apresentado que não é um rei autônomo, mas um “servo” submisso a Javé e também seu “eleito”. Davi foi chamado simultaneamente “servo” de Javé (1Sm 7,8; 1Rs 11,13.32.34; 2Rs 19,34; 20,6; Jr 33,21s.26; Sl 78,70; 89,4) e seu “eleito” (1Rs 11,34; Sl 78,70; 89,4; Ag 2,23). Deus elegeu o servo (entre vários candidatos; 1Sm 10,24; 16,1-13), “nele se compraz” (2Sm 24,23) e pôs seu “espírito” nele (1Sm 16,13; cf. Nm 11,25,29). O espírito lhe confere certos dons e carismas (Is 11,2).

Sua missão é “promover o julgamento das nações”, ou seja, “levar o direito dos povos (pagãos)”. Os manuscritos diferem: “o” direito, o “meu” direito (de Javé) ou “seu” direito (do servo). Nos dois primeiros casos, seria o ideal da realeza em Israel: governar com justiça (2Sm 8,15; Is 32,1; Sl 72,1-4), proteger os pobres e oprimidos (Sl 72; Pr 29,4), julgar em certos casos (1Rs 3,28; 2Sm 15,2.6; Pr 16,10; já Jz 4,5). Diante da injustiça praticada na história dos reis esperava-se ansiosamente por um rei (“ungido” = messias) que exercesse a justiça (cf. Is 9,6; Jr 23,5; Ez 21,30-32; 34,16). Mas se a versão do “seu direito” prevalece, pode designar o direito constitucional que Samuel descreveu no início da monarquia: o rei tem direito de explorar seus súditos por confiscações e pela corveia e obrigar os filhos de Israel para servirem na guerra, nos cavalos (1Sm 8,11-17; cf. Mc 10,42).

Ele não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas. Não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega (vv. 2-3b).

O v. 2 apresenta a estratégia do servo eleito. Promoverá o (seu) direito não de maneira grossa e violenta (cf. Ecl 9,17: “Palavras calmas de sábios são mais ouvidas do que gritos de quem comanda insensatos”).

Pode-se ver neste servo eleito um antítipo dos juízes como Gideon que também estavam com o espírito do Senhor (Jz 3,10; 6,34) para promover o direito (Jz 4,5). Gideon “gritava conclamando” o povo para fora, para guerra santa (Jz 6,34s; cf. Jz 4,10.13; 7,19s.23s; 12,2). Caçava os inimigos já derrotados e os eliminou (Jz 7,23-25; 8,4-12.18-21; cf. Is 43,17 que aplica a imagem do pavio apagado aos inimigos derrotados da guerra)

O servo, ao contrário, evita barulho e violência. “Ele nem clama nem levanta a voz, … não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega” (vv. 2-3). Ele se nega a conclamar qualquer guerra santa, ainda que seja em defesa; ele representa a utopia da paz santa que convencerá os povos mais que qualquer agressão bélica (cf. Is 2,2-5).

Seria um impulso natural quebrar uma cana já rachada (cf. 2Rs 18,21; Ez 29,6s) ou apagar um pavio quando não há mais óleo para abastecer. Mas o servo eleito não faz isso, ele tem um cuidado sobrenatural, não promove o direito do mais forte, não comete eutanásia para com os candidatos à morte, não descarta os mais fracos, mas oferece seu direito de viver a eles (cf. Mt 5,3ss).

Mas promoverá o julgamento para obter a verdade. Não esmorecerá nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça na terra; os países distantes esperam seus ensinamentos (vv. 3c-4).

Podem variar as traduções: o servo “promoverá o julgamento para obter a verdade” (ou: promoverá “de verdade” ou “com fidelidade”; v. 3c).

O servo tem discrição e firmeza, sua atitude de cuidado coincide com sua perseverança. Não esmorecerá nem se deixa abater (ou: “ele não apagará e não quebrará”; alusão óbvia ao versículo anterior). Ele mantém sua meta e a alcança: “estabelecer a justiça na terra” (ou seja, “no país”), mas até “os países distantes” (lit. “as ilhas”, v. 4) esperam por seus ensinamentos (ou: “por sua lei”).

O par mispat (“julgamento”, “justiça”) e torá (orientação, lei, aqui traduzida por “ensinamento”) se encontra no contexto deuteronomista (Dt 33,10; Js 24,25s; 1Rs 2,3 etc.) e designa o conjunto das leis morais, cultuais e casuais (cf. Dt 12-26) que fazem de Israel um estado de direito solidário. Assim, Josué selou a aliança com o povo em Siquém (Js 24,25s).

Com ousadia conclui este primeiro canto: Os homens “nas ilhas” (países) mais distantes esperam pela torá (ensinamento, lei) do servo, esperam pela lei como se fossem israelitas piedosos (cf. Sl 119,43s). Um ensaio da missão aos pagãos já aconteceu em 2Rs 17,26-28.34.37 entre os samaritanos. Já na visão da paz universal em Is 2,2-5, todas as nações acorrerão a Jerusalém para ouvir a instrução, a lei, a palavra de Javé (cf. 51,4). A benção de Abraão se estenderá a todos os povos da terra (Gn 12,3).

Mas quem, afinal, é este servo? Deutero-Isaías apresenta uma figura que trará a salvação (paz como fruto da justiça e do seu ensinamento, cf. Is 32,17). A monarquia antiga decepcionou e faliu no exílio, mas não se pode voltar ao tempo antes da monarquia com Gideon e seus excessos de violência. O servo completará a ideia de um rei ideal da dinastia de Davi (messias, ungido com o espírito), levando o direito solidário (sem exploração nem violência) para além de Israel aos povos.

Mas quem será este servo real? Três possibilidades: 1. Uma pessoa desconhecida na comunidade do exílio em que se concentram estas esperanças 2. O próprio profeta, Deutero-Isaías, que escutou sua apresentação na esfera celeste (cf. Is 6). Os profetas eram os oponentes tradicionais dos reis, agora ele mesmo representa um tipo contrário aos reis corruptos. 3. Numa interpretação coletiva, o servo representa o povo eleito de Israel e seu papel no meio dos povos pagãos (45,14; 49,7; 55,3-5; cf. a eleição, o dom do espírito e apoio de Javé em 41,8-10; 43,10.20; 44,1-3; 45,4; 49,7).

O judaísmo helenista com sua tradução grega (LXX) interpretou o servo como imagem do povo de Israel, enquanto os judeus na Palestina o relacionaram ao messias que devia vir (cf. as traduções em aramaico, Targum). Em grego, a palavra pãis significa servo, mas também menino (filho).

No NT, os evangelhos aplicam a Jesus a figura do servo, especialmente Mateus: “Este é meu é o filho (servo) amado (eleito)” diz a voz do céu no batismo (cf. Sl 2,7), e o Espírito do messias em forma de pomba simboliza paz e amor, não violência (Mt 3,17 e paralelos; 12,17-21; 17,5). Também o papa Francisco apresenta traços deste servo na sua exortação de não descartar os fracos na vida e na fé, nem oprimir nem condená-los, mas cuidar e abraçá-los.

Eu, o Senhor, te chamei para a justiça e te tomei pela mão; eu te formei e te constituí como o centro de aliança do povo, luz das nações, para abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas (vv. 6-7).

Deus “chama” o servo para justiça e salvação (cf. 41,4.9; 43,1; 46,11; 48,15; 49,1; 51,2; 54,6). Como um pai ao seu filho medroso e inseguro, ele o “toma pela mão”, (cf. Gn 19,16; Jz 16,26), e o constitui o centro (mediador) de “aliança do povo, luz das nações”. Isto não se refere só à vocação de Deutero-Isaías (40,6-8), mas ao chamado de Abraão com quem Deus já fez uma “aliança” que não só incluiu terra e descendência, mas também a benção para “todas as nações” (Gn 12,1-3; 17,4-8).

Depois de mencionar a criação de Deus (v. 5, omitido em nossa liturgia) e o chamado do servo igual a Abraão, agora se alude a Moisés. Chamando este príncipe do Egito em Ex 6,2-8, Javé Deus agiu em função da aliança: “Eu ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizaram e me lembrei da minha aliança” (Ex 6,5).

Deutero-Isaías entende o exílio como cativeiro na escuridão (cf. 42,16.22; 49,24-26; 50,10; 51,14). O servo eleito, pessoa humilde como Moisés (Nm 12,3), deve levar o povo a um novo êxodo (saída), desta vez não do Egito, mas da Babilônia, “tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (v. 7). Este milagre de um novo êxodo irá “abrir os olhos” dos povos pagãos para reconhecerem o verdadeiro Deus, seu santo “nome” (v. 8; cf. Ex 3,14) e sua luz (cf. Ex 13,21s). A lei (tora) e o direito (mispat, cf. vv. 1-4) também são “luz” (cf. os 6,5; Mq 7,9; Sf 3,5; Sl 37,6) e são o conteúdo da “aliança pelo povo” (Js 24,25).

No texto hebraico de v. 7 não fica claro quem é o sujeito: Deus abrirá os olhos dos cegos ou o servo abrirá (tradição da nossa liturgia)? Chamado por Deus, o servo eleito não submeterá os mais fracos ao seu domínio, mas seu agir acabará produzindo uma transformação radical. Os cegos enxergarão e os presos serão libertados (v. 7; cf. 61,1). O servo será estabelecido como “luz das nações” no segundo cântico (49,6; cf. Paulo em At 26,17s).

No NT, Jesus responde a pergunta do Batista que a cura de cegos está entre as obras pelos quais se reconhece o messias (Mt 11,5; Lc 7,22; cf. Is 29,18; 35,5; 42,7.18; Lc 4,18). Em Jo 8,12, ele se apresenta: “Eu sou a luz do mundo”. Simeão louva o menino Jesus como “luz para iluminar as nações e glória do teu povo, Israel” (Lc 2,31s).

  1. Voigt resumiu: O servo de Javé é um conceito de Deus, plenamente realizado em Jesus Cristo e no qual outros podem participar cada um de sua maneira, antes de Cristo, também depois dele (GPM N.F. 1983, 6; p. 91).

2ª Leitura: At 10,34-38

A segunda leitura é tirada da visita de Pedro ao centurião romano Cornélio. Sua pregação resultará no dom do Espírito “sobre todos os que ouviam a palavra” e no batismo deles. O fato de um judeu (Pedro) entrar na casa de um pagão (cf. v. 28; Mt 8,8p) e administrar o primeiro batismo aos pagãos (sem circuncisão) provoca escândalo entre os tradicionalistas (11,1-3); será debatido e resolvido no primeiro Concílio em Jerusalém (cf. At 15).

Pedro tomou a palavra e disse: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença (vv. 34-35).

Depois da saudação dos dois homens comunicando cada um o motivo deste encontro (duas revelações paralelas, cf. vv. 1-33), Pedro começa seu discurso catequético (ou melhor: kerygma, primeiro anúncio) que apresenta a lição primária de todo o fato: “Deus não faz distinções entre as pessoas” (cf. Dt 10,17; 2Cr 19,7; At 15,9; Gl 2,6; Mc 12,14p), aceita qualquer homem religioso e honrado, não leva em conta “a nação à que pertença”, a raça, a situação social, o gênero, a idade.

Quando diz “a quem respeita/venera a Deus”, o autor pensa logicamente no Deus verdadeiro. Como se chama a esse Deus? Mais de um texto bíblico sugere uma resposta tolerante (as parteiras do Egito: Ex 1,17; Melquisedec: Gn 14,18-20; cf. Sb 13,5s; as mulheres na genealogia de Mt 1,1-17). Em Lc 10, 25-37, o samaritano, um homem de uma religião rival, torna-se um bom exemplo.

Qualquer um, de qualquer raça ou nação, recebe de Deus a graça e a misericórdia. O evangelho de Jesus é “católico” no sentido original da palavra grega, ou seja, “universal”, e deve vencer todas as barreiras erguidas pelos limites ou preconceitos humanos. Pelo batismo, os cristãos tornam-se filhos adotivos de Deus, membros da mesma família (Igreja), irmãos do mesmo povo (cf. Mt 28,19s; Gl 3,27-29). Esta consciência deve vencer barreiras e preconceitos (cf. Ef 2,11-22).

“Ele aceita” (lit.: lhe é agradável), terminologia cultual (cf. v. 4). É agradável a Deus um sacrifício irrepreensível ou aquele que o oferece (Lv 1,3; 19,5; 22,19-27). Is 56,7 anunciara que, no fim dos tempos, os sacrifícios dos gentios seriam agradáveis a Javé (cf. Ml 1,10s; cf. Rm 15,16; Fl 4,18; 1Pd 2,5).

Aqui, Pedro afirma que não são a pureza ou impureza rituais que tornam o homem agradável a Deus como um sacrifício, mas “ele aceita quem o teme e pratica a justiça”. No AT, o “temor de Deus” é o princípio da sabedoria (Pr 1,8; 9,10; 15,33; Jó 28,28; Eclo 1,14), um dom do Espírito, (Is 11,2); os que simpatizavam com a religião judaica, mas ainda não eram circuncidados eram chamados “tementes de Deus”, como o próprio Cornélio (vv. 2.22; cf. 13,16.26). A “justiça” é a qualidade de sua religiosidade e moral (cf. Sl 15,2) e, mais profundamente ainda, a fé em Jesus, que “purifica os corações” dos judeus e dos pagãos (15,9) – cf. Rm 14,18 e seu contexto, onde se trata de alimentos puros e impuros. O sentido da visão de Pedro (vv. 11-16) está agora plenamente revelado.

Deus enviou sua palavra aos israelitas e lhes anunciou a Boa-Nova da paz, por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos (v. 36).

Entrando no assunto, Pedro afirma a continuidade (AT e NT): “Deus enviou sua palavra aos israelitas” por meio dos profetas e agora “por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos”, envia a “Boa Nova da paz”, ou seja, a mensagem de salvação pela qual Deus anuncia a paz entre si e os homens (Is 52,7; Sl 107,20; 147,18). Se a mensagem foi dirigida a Israel primeiro (cf. 13,46), ela o é agora a “todos” os seres humanos sem exceção, porque Jesus é o Cristo (Messias de Israel) e Senhor de todos. Na boca de Pedro, o segundo título “Senhor” soará com a plenitude que os cristãos lhe reconhecem (cf. 2,36; Rm 10,9; 14,8s; Fl 2,9-11 etc.).    

Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia, depois do batismo pregado por João: como Jesus de Nazaré foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio; porque Deus estava com ele (vv. 37-38).

Diferente das pregações diante de pagãos que falam do Deus Criador e chama à conversão (14,15ss; 17,24ss), a pregação diante de Cornélio se refere ao que os ouvintes já sabem. Como tementes a Deus, já participam da sinagoga (sem serem circuncidados) e devem ter ouvido “o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (cf. v. 39; Lc 4,14.37.44; 23,5).

Segue o roteiro resumido do Evangelho (de Mc que Lc usou como modelo): iniciando com o batismo por João em que “Jesus de Nazaré” se tornou “Cristo” (=”ungido”);  Jesus não foi “ungido” rei-messias com óleo de crisma pelo sumo sacerdote (cf. 1Sm 16,13; 1Rs 1,38s; Sl 2,2.7), mas “por Deus com o Espírito” (cf. Is 42,1; Lc 4,4.18.; At 4,27), os ouvintes ouviram falar também dos seus milagres (“com poder”, “fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio”; cf. 4,9; Lc 13,16; Lc 4,18s = Is 61,1s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2123) comenta: A afirmação capital dos vv. 34-35 introduz um novo exemplo de pregação apostólica (cf. 2,14…). Após uma declaração sobre o sentido da vinda de Jesus (v. 36), as etapas do seu ministério são brevemente evocadas segundo o plano dos evangelhos sinóticos (vv. 37-39a) até a sua consumação: a morte, a ressurreição e as aparições, a missão confiada aos apóstolos (vv. 39b-42); no fim, um apelo implícito a fé, confirmado pelo testemunho dos profetas (v. 43). A linguagem dos vv. 36-39, particularmente difícil e complicada, reflete-se na tradução.

 

Evangelho: Lc 3,15-16.21-22

Nossa liturgia apresenta o breve relato sobre o batismo de Jesus (em grego uma frase só, cf. vv. 21-22), precedido pelas palavras de João Batista que ouvimos já no 3º Domingo do Advento (vv. 15-16).

O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias. Por isso, João declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo (vv. 15-16).

Estes versículos são parecidos com Mt 3,11-12 e Mc 1,7-8 (mesclando as duas fontes, Mc e Q).

“Se João não seria o Messias”. Grupos de discípulos de João continuam por muito tempo se perguntado se o Mestre deles não é o Messias (cf. At 13,25; 18,25s; 19,1-7; Jo 1,19-20; 3,28). Ele é “grande diante do Senhor” (1,15). Apesar de João não ter realizado milagres, Jesus o admira: “Dentre os nascidos de uma mulher não há um maior do que João” (7,28p).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta:

Os v. 15-17 apresentam, como resposta à reação do povo ao seu anúncio, a pregação de João sobre a identidade do Messias. Desde o tempo do exílio babilônico, quando cessou a monarquia em Jerusalém, desenvolveu-se, à luz da promessa de Natan a Davi (cf. 2Sm 7,14-17), a esperança de que Deus restauraria a dinastia davídica. No livro de Daniel (meados do século II a.C.), fala-se explicitamente de um “príncipe ungido” que virá (Dn 9,25). Nos últimos séculos antes de Cristo, desenvolveram-se muito as expectativas messiânicas em Israel. Isso permite compreender a interpretação que a multidão faz da pregação de João. Este, no entanto, deixa entrever em suas palavras não ser ele o Messias… Definindo Jesus, João apresenta-se como o profeta que anuncia imediatamente a vinda do Messias escatológico.

A Tradução Ecumênica a Bíblia (p. 1976) comenta: O grego khristós, literalmente: “aquele que recebeu a unção” (de Deus), corresponde ao hebraico mashiah. Aqui se traduz por “o Messias”, porque este título é pronunciado por judeus que lhe dão um sentido nacional e político (do mesmo modo em 22,67; 23,2.35.39 e 20,41). Traduz-se a mesma palavra por “Cristo” nos textos em que aparece a sua novidade cristã (2,11. 26; 4,41; 9,20; 24,26.46).

O Batista se identifica por oposição e indica as características do messias: “Virá aquele” Lc não diz que vem “depois” (cf. Mc 1,7), para que Jesus não seja confundido com um discípulo do Batista. O Messias vem depois com maior autoridade e direito e é “mais forte” (Lc voltará ao título messiânico do “Forte” em 11,22; cf. Is 9,5; 11,2; Dn 10,17; 2Sm 22,32s; 2Mc 1,24).

João nem é digno de lhe prestar o serviço humilde de um escravo: “desamarrar a correia de suas sandálias” é gesto de escravo que um judeu de então não podia exigir de um servo judeu, pertencente também ele ao povo eleito (cf. Jo 8,33). Ou talvez seja uma alusão ao levirato (Dt 25,9, tiro da sandália), o messias é o esposo (Jo 3,29) que não cede seu direito.

“Ele vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo”, enquanto o batismo de João é com água, o batismo do messias será de fogo purificador (Is 4,4: “Quando o Senhor tiver lavado a imundície … pelo sopro do seu julgamento, sopro abrasador”; cf. Ml 3,2s) e de Espírito vivificador (Jo 2,22). Será vento de aventar (v. 17; cf. Jr 4,11). O hebraico e o grego usam a mesma palavra para designar vento e espírito. João anuncia o julgamento (simbolizado pelo fogo, cf. v. 9) pelo messias que virá.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A água no batismo de João é sinal da conversão em vista da purificação (a remissão dos pecados). O batismo de Jesus é caracterizado pelo fogo, que também purifica, mas o faz porque comunica o Espírito Santo. Fogo e Espírito estão associados na cena do dia de Pentecostes (cf. At 2,3-4). O fogo destrói aquilo que, diante de Deus, não tem valor (a palha: v. 17).

A Tradução Ecumênica a Bíblia (p. 1976) comenta: Aqui, como em At 1,5 e 11,16, Lc opõe o batismo de “água” (ou “com água”), conferido por João Batista, ao batismo no “Espirito”, que será inaugurado em Pentecostes. Isto leva a pensar que, em Lucas, este “em” (no Espírito) não se deve traduzir por “com”: o Espírito não é um instrumento, mas uma presença ativa (cf. 4,1).

Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo (v. 21ab)

Comparando com os outros evangelho sinóticos (Mc, Mt), podemos constatar as modificações que Lc realizou. O batismo de Jesus, em si questionável (Jesus se deixou batizar porque teve pecados? João era superior? Cf. Mt 3,13-15), torna se mais uma ocasião para os fenômenos que o acompanham.

Nossa liturgia saltou os vv. 17-20 nos quais Lc concluiu a pregação de João Batista e já informou antecipadamente da sua prisão. A Bíblia do Peregrino (p. 2461s) comenta: Mas antes da prisão aconteceu este grande episódio: novo encontro de João com Jesus, já adultos. O batismo de Jesus, sumariamente registrado por Lucas, apresenta-se quase como ação simbólica: humilhação que provoca exaltação (cf. Fl 2,8-10). Misturado com os pecadores sem o ser, Jesus recebe o duplo testemunho do Espírito e do Pai. Testemunho, por autoridade e conteúdo, muito superior ao do Batista.

Pode-se compreender ou: “enquanto todo o povo estava sendo batizado”, ou antes: “depois que todo povo foi batizado”. Lc parece querer salientar que o batismo de Jesus completa o de todo o povo de Deus. Mais nitidamente que Mt e Mc, o evangelista Lc ele nota, que esse batismo de água não é mais que a ocasião da revelação que o segue.

O batismo de Jesus acontece junto com o das pessoas que procuram João. A partir daí Jesus começará sua missão, e o Pai deixa claro que assume o Filho no caminho que este irá trilhar.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1976) comenta: Recebendo o batismo de João, Jesus entra no movimento de conversão do seu povo. Por ocasião deste fato público, ele recebe uma revelação misteriosa que se situa no ponto de partida da sua pregação, como o era para os profetas a sua vocação: ele é o profeta sobre quem repousa o Espirito (cf. 4,18), o “Filho” de Deus, o Messias anunciado pelo AT.

Enquanto rezava, o céu se abriu (v. 21c)

Lc menciona com frequência a oração de Jesus (5,16; 6,12; 9,18.28s; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34.46; cf. Mc 6,46p), mas aqui, como em outras ocasiões, não informa sobre o conteúdo. Pode-se imaginar que Jesus peça o que se cumprirá imediatamente. A oração é o lugar do seu encontro com o Pai que se manifestará logo em seguida.

O céu se abre para revelar um mistério (Is 63,19; Ez 1,1). Lc modificou os termos apocalípticos de Mc e Mt: “os céus se romperam (rasgaram)”, cf. Mc 15,38. Mt 27,51). Aqui “o céu se abriu” apenas como depois nas visões de Estêvão e Pedro, f. At 7,55s; 10,11).

E o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba (v. 22a).

Em Mc e Mt, a pomba do Espirito quer lembrar a nova vida depois do castigo do dilúvio (Gn 8,12) e a salvação pelo batismo (1Pd 3,20). Lc destaca mais o caráter da epifania (manifestação do divino) acrescentando a expressão “em forma visível (em figura corpórea)”. Assim esclarece que a pomba não passa de uma aparência sob o qual o Espirito se tornou visível para todos os que assistem a cena (em 24,39s, na aparição do ressuscitado, “um espirito não tem carne”). Em Mc 1,10s, apenas Jesus “viu” o Espírito e ouviu a voz do céu que o declara filho; é como uma visão inicial de um profeta (cf. Is 6; Jr 1) e em Mc permanece o segredo do messias até a ressurreição (cf. Mc 9,7-9). Para Mt e Lc, a revelação do batismo já é uma declaração pública (cf. Mt 3,17: “Este é meu filho…”). O que foi anunciado na casa particular de Maria (1,26-38), agora se vê e ouve em público. Lc salienta a posse/unção do Espírito logo nas atividades de Jesus em seguida (4,1.14.18, cf. At 10,38s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2462) comenta: O Espírito se manifesta em imagens (a pomba da arca, Gn 8,12, ou do amor, Ct 2,10), o Pai na voz (Jo 12,28.30). O testemunho do Pai sobre o Filho há de orientar e iluminar toda a narração seguinte. A descida do Espírito é como a consagração ou unção do Messias para seu ministério (Is 42,1; 61,1).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: O Espírito que pairava sobre as águas da primeira criação (Gn 1,2) aparece aqui no prelúdio da nova criação. Por um lado, ele unge Jesus para a sua missão messiânica (At 10,38), que de ora em diante há de dirigir (Lc 4,14.18; 10,21; Mt 12,18.28); por outro lado, como o entenderam os Padres da Igreja, santifica a água e prepara o batismo cristão (cf. At 1,5…).

“Espírito” é uma palavra feminina em hebraico (ruah) e neutra em grego (pneuma), significando também “vento, ar” (cf. Gn 1,2; At 2,2). Como o Espirito é invisível como o ar, um animal que vive nos ares, um pássaro, é símbolo propício. Mas porque uma pomba e não uma águia (cf. Dt 32,11) que simbolizava o império Romano, ou um falcão (o símbolo do deus Horus no Egito que protegeu o faraó), etc.? A pomba é símbolo da paz e do amor (cf. Ct 1,15; 2,14; 4,1; 5,2; 6,9; já na mitologia do Antigo Oriente acompanhava a deusa do amor, Ishtar), também de simplicidade (Os 7,16; Mt 10,16; Lc 2,24). Ela traz um ramo de oliveira depois do dilúvio em Gn 8,8, símbolo da nova vida e criação reconciliada. Corresponde a atitude do servo de Deus em Is 42,1-4 (1ª leitura de hoje) que não usa de violência, mas o povo esperava um messias guerreiro como Davi para libertar da opressão estrangeira.

E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (vv. 22b).

Como em Mc 1,11, a voz do Pai se dirige (lit. “aconteceu”) em segunda pessoa (“Tu”) a Jesus, cf. Sl 2,7 “Tu és o meu filho, eu hoje te gerei”. No segundo predicado “amado” soa um eco do canto dos anjos na noite de Natal (2,14; cf. 20,13p, talvez recorde Gn 22.2.12.16),

Não há consenso entre os peritos a respeito da segunda parte da frase: Ou “em ti ponho o meu bem-querer” (cf. Is 42,1) ou “eu hoje te gerei” (cf. Sl 2,7)?

Nossa liturgia segue aos numerosos manuscritos que têm aqui a mesma fórmula que está em Mc e Mt: “em ti ponho o meu bem-querer”. Essa expressão designa, antes de tudo, Jesus como o verdadeiro Servo anunciado por Isaías (cf. 1ª leitura: “Eis o meu servo…”). Entretanto, o termo “Filho”, que acaba por substituir o termo “Servo” (graças ao duplo sentido da palavra grega pãis, já em Is 42,1 grego), salienta o caráter messiânico e propriamente filial da sua relação com o Pai. É o Filho querido e bem-amado objeto de sua predileção. Como servo sofredor “levou sobre si os pecados de muitos” (Is 53,12), seu batismo é sinal de que assume os pecados do povo e pagará com sua vida na cruz: “Aquele que não cometeu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nos tronemos justiça de Deus” (2Cor 5,21).

Mas esta versão é suspeita de harmonização com Mt e Mc. Antigos documentos (D, it, Ju, Cl, Or, Hil, Aug, Methodius) atestam outra versão, “eu hoje te gerei”, que corresponde particularmente no pensamento de Lc 1,35. Ela reproduz o Sl 2,7 e significa a entronização messiânica de Jesus, o começo da sua missão junto ao povo de Deus. O fato de esta palavra ser pronunciada pelo Pai faz dela a revelação por excelência do mistério da encarnação do Filho. Assim Lc, ao invés de reconhecer em Jesus o “Servo” (Is 42,1), prefere apresenta-lo como Rei-Messias do Salmo, entronizado no batismo para estabelecer o Reino de Deus no mundo.

Apenas a palavra “hoje” deixa aqui dúvida nesta versão, porque em Lc 1,34s, Jesus já foi gerado pelo Espírito Santo na casa de Maria (1,34s). Outros acharam que Jesus se tornou Filho de Deus só no batismo e por adoção (por ex. a seita dos basilidianos. Paulo também não se refere ao filho da virgem, cf. Rm 1,3s; Gl 4,4). Em Lc, “hoje“ é termo significante para salvação (cf. 2,11; 4,21; 5,26; 19,5.9; 23,43; cf. 19,47; Mc 1,15). Este “hoje” faz o tempo parar para a transcendência (mundo eterno de Deus) entrar em nosso mundo e nossa história.

No Antigo Israel, o rei foi ungido na hora da sua posse (quando subiu ao trono) pelo sumo sacerdote (Salomão por Sadoc em 1Rs 1,39; Saul e Davi por Samuel em 1Sm 10,1; 16,13) e declarado filho (adotivo) de Deus: “Tu és meu filho, hoje te gerei” (Sl 2,7; cf. 2Sm 7,14), como no Egito o rei (faraó) foi proclamado Filho do Deus solar (Horus-Re). Aqui é uma posse alternativa na qual Jesus é declarado messias (“ungido pelo Espírito Santo”, cf. 4,18; At 10,37s) na presença do profeta no deserto (em vez do sumo sacerdote no templo) e “filho” (natural, não adotivo, cf. 1,34s) pela voz do próprio Pai. Realmente ele é Filho de Deus, pois gerado por Deus. Aquele que está repleto do Espírito pode batizar com o Espírito, com João anunciava (v. 16).

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