13 de novembro de 2017 – Segunda-feira, 32ª semana

Leitura: Sb 1,1-7

Durante esta semana ouvimos leituras do livro de Sabedoria, sem dúvida o livro mais novo do AT. O título «Sabedoria de Salomão» é fictício, pois seu autor anônimo, um judeu de Alexandria, escreveu o livro cerca de 50-30 a.C. na língua grega (por isso não entrou na Bíblia hebraica dos judeus e nem na dos protestantes).

Alexandria no Egito (fundada por Alexandre Magno) era a capital do helenismo (cultura grega depois da época clássica), importante centro político e cultural que abrigava a maior biblioteca da antiguidade. Segundo o filósofo judeu Fílon de Alexandria (10 a.C. – 40 d.C.), dos 500.000 habitantes desta cidade, 200.000 eram migrantes judeus, na maioria pobres e escravos. Para estes foi necessário traduzir os livros do AT (Antigo Testamento): do hebraico, que eles não falavam mais, para o grego, sua língua corrente. Esta tradução, chamada “LXX”, “Tradução dos Setenta (sábios)”, começou por volta do ano 300 a.C., mas produziu também livros próprios em grego (como Sb, Tb, Jt, …).

No sínodo de Jâmnia (90 d.C.), os judeus da Palestina se reestruturaram depois da Guerra Judaica (que resultou na destruição do templo em Jerusalém em 70 d.C.) e definiram seu cânone (regra, norma) das Sagradas Escrituras reconhecendo apenas os livros em hebraico como Escritura Sagrada (Bíblia Hebraica). Mas os apóstolos e evangelistas já usavam a tradução grega do AT como também os sete livros em grego, portanto, o AT grego e os sete livros também fazem parte da Bíblia católica. Estes sete livros são chamados “deuterocanônicos” (pelos católicos) ou “apócrifos” (pelos protestantes que os deixaram fora): Tb, Jt, 1 e 2Mc, Sb, Eclo e Br.

A cultura grega com suas filosofias (filo-sofia quer dizer “amor pela sabedoria”), costumes e cultos pagãs de uma parte, e com a hostilidade e, às vezes, perseguição aberta de outra (cf. 1-2Mc), constituía uma ameaça constante à fé e à cultura do povo judeu que habitava no Egito.

O livro de Sb todo poderia ser resumido em 1,15: “A justiça é imortal”. De fato, o autor identifica a sabedoria com a justiça. Depois de mostrar que ela é o guia da vida (1,16-5,23) e apresentar a sua natureza (6,1-9,18), faz uma longa meditação sobre o êxodo (10,1-19,21). No êxodo, Israel descobriu a justiça de Deus, a qual comunica ao povo a verdadeira sabedoria. Doravante, toda sabedoria implica exercício da justiça, e este, se for verdadeiro, produz a libertação.

Uma inclusão enquadra o primeiro capitulo: “Amai a justiça, … a justiça é imortal” (vv. 1.15). Outra inclusão (vv. 2 e 13-14) tem Deus como sujeito: é acessível, é autor da vida, não da morte. O desenvolvimento é admoestação, denúncia e ameaça, a última de cunho judicial.

Amai a justiça, vós que governais a terra; tende bons sentimentos para com o Senhor e procurai-o com simplicidade de coração (v. 1).

O livro pretende dirigir-se a quantos em todo o mundo têm a função de mandar, julgar ou governar (reis ou juízes; cf. 6,1; cf. Sl 2,10). “Julgar” é o ato essencial do governo. Como Salomão (7,7-11; 9,7-8.12), dirige-se aparentemente a seus colegas de realeza (cf. 6,1-11). Na realidade ele quer atingir os judeus ameaçados pelo paganismo que os cerca. Poderia aludir também um império universal, ou seja, Roma. No gênero sapiencial, os sábios de Israel (José, Natã, Daniel, etc.) aconselham aos reis. Em Gn 1,26-28, porém, o ser humano em si é governador da terra por ser criado à semelhança e imagem de Deus.

É notável o verbo inicial “amai” (cf. Sl 45,8, o rei, Is 61,8; repetem-no no Sl 11,7; 33,5; 37,28; 1Cr 29,17).  Por “justiça” é preciso entender o pleno acordo do pensamento e da ação com a vontade divina, tal como ela se exprime nos preceitos da Lei e nas injunções da consciência (já antes da Lei em Gn 15,6 por causa da fé, coma salienta Paulo em Rm 4; Gl 3,6s). Justiça tem a ver com Deus, e Ele se revela a quém tem fé.

“O Senhor” é a correspondência grega usual do nome hebraico Yhvh (Javé): quem escreve se confessa nesse nome israelita. “Tende bons sentimentos”, outros traduzem “pensamentos” (cf. Sl 94; Is 44,18; 1Cr 29,17 gr.).

“Procurar Deus” para “o encontrar”, convite constante da literatura profética (cf. Am 5,4) e sapiencial. A influência de 1Cr 28,9 parece, porém, mais direta. Sobre a “simplicidade de coração”, cf. 1Cr 29,17; Ef 6,5; Cl 3,22. “Buscar o Senhor” é uma das maneiras se expressar adesão ou entrega dinâmica (cf. Ex 33,7; Sl 27,4; 40,17; 70,5; 105,3; especialmente Is 55).  Amor à justiça e busca de Deus são duas atitudes correlatas.

Ele se deixa encontrar pelos que não exigem provas, e se manifesta aos que nele confiam. Pois os pensamentos perversos afastam de Deus; e seu poder, posto à prova, confunde os insensatos (vv. 2-3).

Deus deixa-se encontrar pelos que o procuram (cf. Is 65,1; Jr 29,13s; Pr 8,17). Exigir provas de Deus é tentá-lo (cf. Sl 78; Is 5,19; Mt 4,1-11p). O “poder” divino age no mundo e que aos poucos será identificado com Espírito ou sua sabedoria. Ele é continuamente desafiado pela incredulidade e pela conduta dos insensatos.

O v. 3 explica o v. 2: O homem racionaliza sua atitude diante de Deus, deformando a figura de Deus para justificar a si mesmo. O pior é que essa racionalização tem aparência de arrazoado, parece razoável.

A Sabedoria não entra numa alma que trama o mal nem mora num corpo sujeito ao pecado (v. 4).

A alternância dos sujeitos (Deus, Poder, Sabedoria e depois o Espírito) evoca aspectos diversos da atividade divina. A alma “maligna”, perversa, enganadora que trama más ações é aplicada aos idólatras em 15,4.  A divisão “corpo-alma” é de cunho grego, embora sem intenção doutrinal. O pecado se apresenta personificado na figura de um usuário que cobra do pecador como agiota, até torná-lo seu escravo.

Para a filosofia grega, influenciada por Platão, a matéria e o corpo são maus – porque bom é só o mundo espiritual das idéias (a matéria é só uma sombra imperfeita da idéia; cf. Hb 8,5; 10,1). Para os textos antigos da Bíblia o corpo não é mau por si mesmo. Mas ele pode se fazer instrumento de pecado, tornando-se assim o tirano da alma. São Paulo (Rm 6,6; 7,14-24) e São João (8,34) darão a esse pensamento sua expressão definitiva (distinguindo corpo e carne).

O espírito santo, que a ensina, foge da astúcia, afasta-se dos pensamentos insensatos e retrai-se quando sobrevém a injustiça (v. 5).

O espírito de Deus ensina (cf. Dt 8,5), é “o educador” (lit.: “da educação”; var.: “da sabedoria”). – A educação israelita, tradicionalmente realizada pelos sábios, é colocada sob a influência de um “espírito santo” (cf. Sl 51,13; Is 63,10-11); certos textos já haviam apresentado o Espírito divino como o guia de Israel no passado (1Sm 16,13; Ne 9,20.30; Is 63,10-11) ou como uma força interior (Sl 51,13; Ez 11,19; 36,26-27); por outro lado, às vezes a Sabedoria assumia a função dos mestres de sabedoria (Pr 1-9), ou tendia a se identificar com o Espírito (cf. vv. 6-7; 7,22; 9,17).

Com efeito, a Sabedoria é o espírito que ama os homens, mas não deixa sem castigo quem blasfema com seus próprios lábios, pois Deus é testemunha dos seus pensamentos, investiga seu coração segundo a verdade e mantém-se à escuta da sua língua (v. 6);

“Que ama os homens”, lit. filanthropon (amor aos homens) é fórmula tipicamente grega, e aparece de novo em 7,23 e 12,19. O esquema psicológico é hebraico. O espírito penetra tudo no homem, é “testemunha dos seus pensamentos”, lit. “de seus rins”. Os rins são a sede das paixões e dos impulsos inconscientes (Jó 19,27; Sl 16,7; 73,21; Pr 23,16); o “coração” é a sede da atividade consciente, tanto intelectual quanto afetiva (Gn 8,21). “Coração” e “rins” são frequentemente associados (Sl 7,10; 26,2 Jr 11,20; 17,10; 20,12; Ap 2,23) para designar o conjunto das potências do homem.

Porque o espírito do Senhor enche toda a terra, mantém unidas todas as coisas e tem conhecimento de tudo o que se diz  (v. 7).

Deus enche o todo o universo; a ideia da sua onipresença tem ascendentes bíblicos: Jr 23,24 (cf. Eclo 16,17-23; Am 9,2-3; 1Rs 8,27), é encarada em função de seu espírito segundo Sl 139,7 e os textos que lhe atribuem uma atividade vivificante universal (Jdt 16,14; Jó 34,14-15; Sl 104,30).

O Espírito mantém as coisas unidas (lit. “mantendo coeso” em 1,7 é expressão da filosofia estóica, cf. Xenofonte, Fílon, também Cícero). Com força, ele marca o papel do espírito do Senhor; o único paralelo bíblico (longínquo) seria Gn 1,2. Mas o termo, transposto, designa o poder eficaz de um Deus transcendente. Ele une tão intimamente os seres, que ele percebe imediatamente cada palavra proferida: “tem conhecimento de tudo o que se diz”. Em virtude de uma acomodação, a liturgia de Pentecostes aplica 1,7 ao dom das línguas (At 2,2-4).

Evangelho: Lc 17,1-6

Depois da parábola do pobre Lázaro e do rico esbanjador (16,19-31; lida na Quaresma, 2ª semana, 5ª-feira), que foi dirigida aos fariseus, amigos do dinheiro (16,14s), Jesus volta a instruir seus discípulos (cf. 12,1.22; 16,1) com diversas sentenças.

Jesus disse a seus discípulos: “É inevitável que aconteçam escândalos. Mas ai daquele que produz escândalos! Seria melhor para ele que lhe amarrassem uma pedra de moinho no pescoço e o jogassem no mar, do que escandalizar um desses pequeninos (vv. 1-2).

Escândalo é o que faz tropeçar e cair (Sl 73,2); geralmente se refere à fé (Mc 9,42). Sabendo da fragilidade da natureza humana e da maldade inerente à realidade social. Jesus afirma que “é inevitável” que aconteçam escândalos.

No fim dos tempos, escândalos são inevitáveis (cf. Mt 13,41; 24,10s; Jo 16,1; Rm 14,20 e as alusões indiretas em Lc 13,24; 17,23), mas não dispensam da responsabilidade individual. São inevitáveis, porque brotam como reação a exigências do evangelho, e também de estilos de vida socialmente aceitos e amplamente divulgados. Aqui temos o contrário da bem-aventurança daquele que não se escandaliza por causa de Jesus (7,23; cf. o contraste dos “ais” em Lc 6,20-26).

É um agravante que as vítimas de escândalos sejam os “pequeninos” (cf. Lv 19,14: “Não amaldiçoarás o surdo nem porás tropeços ao cego”). Os pequenos, os fracos e necessitados, os que passam por crises, estão mais expostos.

Para Lc, os “pequenos” são o povo simples (10,21) e pobre (6,20), indefeso e exposto à retórica dos “sábios e entendidos” que não creem (10,21; cf. 1Cor 1,17-2,8). Paulo quer que os fortes na fé respeitem a consciência fraca daqueles cristãos que tinham escrúpulos a comer as carnes que foram sacrificadas aos ídolos e depois vendidas no mercado: “Comendo, não destruas alguém pelo qual o Cristo morreu! … Por um alimento, não destruas a obra de Deus!” (Rm 14,15.20).

O pecado grave produz um dano terrível na pessoa que o praticou, nas pessoas que foram vítimas e na sociedade em geral. Não se consegue esconder o mal que vira escândalo. A seriedade do assunto demonstra o castigo da morte violenta. A imagem dura de lançar o pecador ao mar é uma maneira de acentuar a gravidade do pecado e defender a sociedade humana de suas consequências. Para saná-la, deve desaparecer do cenário humano, ser jogado no fundo do mar e nunca mais ser visto e refeito. Não é uma recomendação de pena de morte, mas os escândalos de padres pedófilos por ex. demonstram o prejuízo grande quando o assunto não é tratado com seriedade e o pedófilo não é afastado do ministério. Lc não transmitiu a recomendação radical que segue nos paralelos Mc 8,42; Mt 18,6s (cortar ou arrancar os membros do corpo que levaram a pecar e escandalizar).

Prestai atenção: se o teu irmão pecar, repreende-o. Se ele se converter, perdoa-lhe. Se ele pecar contra ti sete vezes num só dia, e sete vezes vier a ti, dizendo: ‘Estou arrependido’, tu deves perdoá-lo” (vv. 3-4).

Para evitar escândalos, precisa de correção fraterna (cf. Mt 18,15-22). Lc parece visar uma ofensa entre dois irmãos (“contra ti”), enquanto Mt trata de uma falta mais geral e envolve um recurso à comunidade. Aqui fala primeiro de pecado em geral e recomenda a repreensão ou admoestação, para que o pecador se dê conta e se corrija. É uma espécie de denuncia profética em formato menor. Ora, perdoar o irmão supõe que ele nos ofendeu (Gn 50,15-21; Eclo 28,1-6).

Mesmo em questões mais ordinárias, pecados mais leves, o pecado deve ser repreendido. Corrigir o pecado menos vistoso é uma proteção contra maiores manifestações do mal. O arrependimento é uma revisão interior, e o pedido de perdão deve ser acolhido. Como é difícil se desfazer do mal, deve-se demonstrar paciência com quem está lutando interiormente para se libertar do pecado e viver mais autenticamente.

“Sete vezes” (cf. Sl 119,164) é um número simbólico (cf. a vingança em Gn 4,15.24) e não quer dizer, “na oitava vez mais não”. Segundo Lv 19,17s, o culpado seja rápido em arrepender-se, humilde em pedir perdão, e o ofendido esteja sempre disposto a perdoar, para que, pelo perdão, triunfe a paz. “Irmão” é israelita no AT, é o cristão no NT. Quem espera por misericórdia no julgamento de Deus, não deve negar perdão ao irmão arrependido (cf. 11,4).

Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!” O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (vv. 5-6).

A última parte do evangelho dá uma esperança: com a fé em Deus podemos remover o pecado de nossas vidas. Esta sentença sobre a fé encontra-se também nos outros evangelhos sinóticos, mas em outros contextos: em Mc 11,23, depois da maldição da figueira (omitida por Lc); em Mt 17,20, no final da cura de um epiléptico; ambos falam do transporte de uma montanha em vez de uma árvore.

Lc escreveu a introdução, usando os títulos preferidos “apóstolos” e “Senhor”. Eles pedem para aumentar a fé (cf. Mc 9,24). Pedir que Jesus a faça crescer já é expressão de fé, estima do seu valor, consciência da própria impotência. Eles reconhecem que sua fé atual não é suficiente nem eles podem melhorar isso por conta própria.  A fé é um dom pelo qual só podemos pedir (cf. 1Cor 12,9; Mt 16,17).

Como o efeito de uma alavanca, a força da fé não depende da grandeza (do mais ou menos), mas do seu ponto de apoio que é a promessa de Jesus. A pitoresca imagem hiperbólica (cf. outra imagem em Mc 10,25p) é empregada para encarecer o poder sobre-humano da fé. Se a fé é autêntica, sempre opera milagres. A pequenez do “grão de mostarda” já serviu de imagem para o crescimento do reino, ou seja, da Igreja (cf. 13,18-19p).

O site da CNBB comenta: A misericórdia é um dos valores evangélicos mais importantes e ser misericordioso significa, antes de tudo, ser capaz de colaborar com a salvação das pessoas, ser capaz de perdoá-la. Mas perdoar não significa esquecer, deixar de lado, pois o perdão não pode negar a verdade nem a responsabilidade da pessoa diante dos fatos. Perdoar significa não querer a punição para quem é culpado, mas sim criar condições para que ele possa se reerguer e reparar o mal que realizou. E somente aquela pessoa que tem fé é capaz de perdoar verdadeiramente, porque somente quem acredita no Deus misericordioso é capaz de agir verdadeiramente com misericórdia.

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