13 de Setembro 2019, Sexta-feira: Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre (vv. 39-40).

23ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Tm 1,1-2.12-14

A leitura nos apresenta o início da primeira carta a Timóteo que ouviremos nos próximos dias. Junto com a carta a Tito, as duas cartas a Timóteo formam um conjunto à parte na literatura. Não se dirigem a uma comunidade, mas a seus pastores, pessoas individuais que possuem uma responsabilidade no governo, no ensino e no comportamento destas comunidades cristãs. Porque apresentam diretrizes para estes pastores, desde o séc. 18 são chamadas “Cartas Pastorais”. São comumente atribuídas a São Paulo, mas muitos exegetas (peritos na interpretação da Bíblia) atribuem-nas à terceira geração cristã (quem não concorda tem que admitir pelo menos três fases diferentes das 14 cartas de Paulo):

  • Só sete cartas são realmente do próprio Paulo (Rm, 1 e 2Cor, Gl, Fl, 1Ts e Fm). As outras, provavelmente, foram escritos por discípulos dele, mas em nome de Paulo. Estes não queriam falsificar, mas havia um costume de época chamado “pseudepigrafia” que existia já no AT (ex. Deutero- e Trito-Isaías), ou seja, escrever em nome do mestre falecido para homenageá-lo e mostrar a continuidade no espírito dele.
  • Na segunda geração apostólica escreve-se Ef e Cl (cerca do ano 80) afirmando uma evolução da igreja e uma teologia mais avançada: o evangelho foi “anunciado a toda criatura” e “frutifica e cresce no mundo inteiro” (Cl 1,6.23).
  • Já da terceira geração (cf. 2Tm 1,5) são 2Ts e as “cartas pastorais”: 1 e 2Tm e Tt (anos 90 a 100), em que a expectativa da parusia imediata (a volta de Jesus em breve) cede lugar à uma inculturação no cotidiano do Império Romano: Já que Jesus não está voltando logo, devemo-nos arranjar de maneira positiva, equilibrada e sem exageros, e seguir a “sã doutrina” (1Tm 1,10) no mundo em que vivemos. Alguns itens radicais de Paulo são retirados (por ex. em 1Tm 2,9-15 diminui-se a igualdade da mulher de Gl 3,28), porque já não é tempo de inovação ou revolução, mas de tradição e preservação (“depósito da fé”: 1Tm 6,20; 2Tm 1,14), de organização (bispos-presbíteros, diáconos (cf. 1Tm 3,1-13; 5,17-24; Tt 1,5-9), de evangelização tranquila (não provocar perseguições por motivos secundários) e vida moral (burguês?) em face das heresias que surgiram, “fabulas, controvérsias, vãos problemas” (cf. 1Tm 1,4; 4,3; 6,4). O estilo é de uma regularidade harmoniosa, que contrasta com o ímpeto das antigas epístolas do apóstolo.

O valor destas cartas para os cristãos, porém, independe do autor ser o próprio Paulo ou um discípulo dele, mas do fato de serem inspiradas por Deus e importantes para a Igreja entender a si mesma.

Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, por ordem de Deus, nosso Salvador, e de Jesus Cristo, nossa esperança, a Timóteo, verdadeiro filho na fé: a graça, a misericórdia e a paz de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor (vv. 1-2).

A saudação contém vários elementos costumeiros e outros peculiares: Paulo, apóstolo “por ordem” em vez de “por vontade” de Deus. Em lugar de Deus Pai, diz Deus “Salvador”. O título Salvador, raro nas epístolas paulinas (Ef 5,23; Fl 3,20) é atribuído pelas cartas pastorais tanto ao Pai (1Tm 2,3; 4,10; Tt 1,3; 2,10; 3,4) quanto a Cristo (2Tm 1,10; Tt 1,4; 2,13; 3,6). Era título de reis e imperadores que ostentavam; mas também o AT atribui o equivalente a Yhwh (Javé) (Is 43,7; 45,15.21; 60,16; Sl 106,21). Qualifica Jesus como Cristo (messias), objeto de “nossa esperança”.

O destinatário Timóteo é um dos discípulos mais fieis (At 16,1-3; 17,14s; 18,5; 19,22; 20,4; 1Ts 3,2.6; 1Cor 4,17; 16,10; 2Cor 1,19; Rm 16,21). Ele podia ser uma fonte dos Atos dos Apóstolos quando o sujeito da narração das viagens de Paulo muda para a primeira pessoa do plural (“nós” a partir de At 16,10, etc.). Conforme os Atos, Timóteo nasceu em Listra, na Licaônia, filho de pai grego e mãe judia-cristã, Paulo permitiu que ele fosse circuncidado (At 16,1-3) para não escandalizar os judeus. Ao passar por Listra, na sua segunda viagem missionária, Paulo tomou Timóteo consigo como companheiro de viagem para a Europa (Grécia). Timóteo ficou em Bereia quando Paulo teve que fugir (At 17,14s) e depois se juntou a Paulo em Corinto. Foi mandado para a Macedônia antes da terceira viagem de Paulo (At 19,22) e estava no grupo de Paulo no fim da terceira viagem cerca de 64-65 d.C. (cf. At 20,4).

A carta 1Tm apresenta Timóteo como responsável pela igreja de Éfeso (1,3; cf. At 19). É chamado carinhosamente “filho verdadeiro na fé” (ou: legitimo pela fé), título comum na relação mestre-discípulo (cf. Fl 2,22; cf. Fm 10; 1Cor 4,15; Gl 4,19). O motivo da carta são certas confusões em Éfeso: Falsos mestres transformam a Lei em especulações, fábulas, discussões e vãos discursos, em vez de ensinar a “sã doutrina” do evangelho (cf. vv. 3-11, omitidos pela leitura de hoje).

À saudação paulina “graça” (grega) e “paz” (traduz o hebraico: shalom) acrescenta-se aqui a “misericórdia” (cf. v. 13; 2Tm 1,2).

Agradeço àquele que me deu força, Cristo Jesus, nosso Senhor, pela confiança que teve em mim ao designar-me para o seu serviço, a mim, que antes blasfemava, perseguia e insultava. Mas encontrei misericórdia, porque agia com a ignorância de quem não tem fé. Transbordou a graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus (vv. 12-14).

Depois de saudar os destinatários, o costume nas cartas de Paulo era agradecer pela fé, esperança e caridade da comunidade (1Ts 1,2-3; 2Ts 1,3-5; Cl 1,3-5). Aqui o autor da carta dá graças a Deus por sua conversão e vocação (At 9), “àquele que me deu força” (cf. Fl 4,13; At 9,22), me considerou “digno de confiança” (1,12; cf. 1,15), apesar de ter sido perseguidor violento da Igreja que antes “blasfemava, perseguia e insultava” (cf. At 9 1-2; Gl 1,13; Fl 3,6), apesar da sua “ignorância” (cf. At 3,17; 13,27; 17,30) encontrou “misericórdia… graça”, “a fé e o amor” em Cristo.

 

Evangelho: Lc 6,39-42

No Evangelho de hoje continuamos ouvindo o sermão da planície de Lc (cf. sermão da montanha de Mt 5-7). A frase central foi: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (v. 36; cf. Mt 5,48: “perfeitos” / “perfeito”) que resumiu as duas primeiras partes: as bem-aventuranças e o amor aos inimigos (vv. 20-35). Por isso os discípulos devem ser generosos e não julgar (vv. 37s). Só Deus pode julgar. Lc salienta que as relações numa sociedade nova não devem ser de julgamento e condenação, mas de perdão e dom (gratuidade). A terceira parte do sermão não apresenta mais imperativos proféticos, mas parábolas (vv. 39-49).

Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre (vv. 39-40).

Em breves parábolas, Lc segue sua fonte comum com Mt, uma coleção de palavras de Jesus, chamada Q, que criticava os fariseus como guias cegos do povo e hipócritas (cf. Mt 6,2; 15,14; 23,16; Mc 12,15; cf. Is 3,12), mas Lc aplica-as aos líderes da comunidade cristã (!), convidando os responsáveis à lucidez e autocrítica (o mesmo procedimento em vv. 43-45). Dirigida novamente “aos discípulos” (cf. vv. 20.27), mostra que o farisaísmo é atitude típica que também pode ocorrer na comunidade (a comunidade de Lc é formada de pagãos convertidos, a de Mt de judeu-cristãos).

São cegos os que não veem com os olhos de Jesus: “Um discípulo não é maior do que o mestre. Todo discípulo bem formado será como o mestre”. O lugar deste aforismo era a instrução aos discípulos sobre os sofrimentos da missão (Mt 10,24s; Jo 13,16). Aqui o mestre é Cristo: o outro lado deve procurar transmitir o que dele recebeu. Se o mestre (Cristo) é misericordioso (cf. Lc 7,36-50; 15,1-32; 23,34.43), porque o discípulo (a Igreja) vai julgar com mais dureza?

Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão (vv. 41-42).

Continua a comparação com a vista cega e distorcida. Uma frase feliz, hiperbólica, nos legou as expressões “o cisco e a trave”, referindo-se aqui aos hipócritas (em Mt, são os fariseus, em Lc, os líderes da comunidade) que querem julgar (e excluir) os outros sem misericórdia (cf. vv. 36s). Atenção aos censores que se creem exemplares! Quem corrige a outros que se corrija! A trave é como uma cegueira para os próprios defeitos. O rigor do nosso julgamento sobre o nosso próximo (cisco) mostra que desconhecemos a nossa própria fragilidade e a nossa condição de pecadores diante de Deus (trave).

O site da CNBB comenta: A nossa vida espiritual deve ser marcada por um constante aprendizado, de modo que sejamos, ao mesmo tempo, evangelizadores e evangelizados, e o crescimento na fé realize-se principalmente na experiência da vida comunitária, na troca de experiência e na valorização de tudo o que os outros podem nos oferecer, sem ficar vendo apenas as dificuldades, os problemas e os erros das pessoas que estão ao nosso lado. Mas tudo isso deve ser iluminado por uma mística: devemos ser dóceis ao Espírito Santo, nos deixar ser conduzidos por ele, já que não somos os donos da verdade e ele é o Espírito da Verdade, que nos conduzirá à plena verdade. Somente agindo assim é que não seremos os cegos que guiam outros cegos, mas sim todos guiados pelo próprio Deus.

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