14 de Abril de 2019, Domingos de Ramos: Quando chegou perto da descida do monte das Oliveiras, a multidão dos discípulos, aos gritos e cheia de alegria,começou a louvar a Deus por todos os milagres que tinha visto.Todos gritavam:“Bendito o Rei, que vem em nome do Senhor!Paz no céu e glória nas alturas!”(vv. 37-38).

Evangelho – Procissão: Lc 19,28-40

A entrada de Jesus em Jerusalém marca o início da Semana Santa. Como muitos outros judeus, Jesus e seus discípulos cumpriram a lei de Dt 12, que obriga os judeus adultos a celebrar a Páscoa em Jerusalém (cf. Lc 2,41s). A páscoa era a memória da libertação da escravidão no Egito (cf. Ex 12), portanto o clima era explosivo, porque os judeus almejavam uma libertação do jugo dos romanos promovida por um messias. “Messias” vem da palavra hebraica que significa “ungido” (em grego: “Cristo”), porque os reis no Antigo Oriente foram ungidos na hora da posse, simbolizando a força do Espírito divino para governar o povo (cf. 1Rs 10,1; 16,13; 1Rs 1,39). Por mil anos, os profetas e sábios alimentaram a promessa de um messias salvador, rei legitimo (Herodes não era nem judeu) por ser descendente de Davi (cf. 2Sm 7; Is 7,14; 9,5s; 11,1s; 61,1; Jr 23,5s; Ez 34,23s; Mq 5,1; Zc 9,9s).

Jesus caminhava à frente dos discípulos,subindo para Jerusalém (v. 28).

Com esta frase, Lc resume a parte central do seu evangelho, a viagem de Jesus a Jerusalém que abrange dez capítulos, de 9,51 até 19,28. Em Mc e Mt, a entrada em Jerusalém é narrada após a cura do cego Bartimeu em Jericó, mas Lc inseriu, após a cura do cego (18,35-43), a conversão do rico (o chefe dos cobradores, Zaqueu, cf. 19,1-10) e a parábola das minas (vv. 11-27, cf. Mt 25,14-30). Narrando a entrada em Jerusalém, Lc segue fielmente Mc 11,1-11, mas difere no final (vv. 37-40).

Quando se aproximou de Betfagé e Betânia, perto do monte chamado das Oliveiras, enviou dois de seus discípulos, dizendo: “Ide ao povoado ali na frente.Logo na entrada encontrareis um jumentinho amarrado,que nunca foi montado. Desamarrai-o e trazei-o aqui. Se alguém, por acaso, vos perguntar: ‘Por que desamarrais o jumentinho?’, respondereis assim: “O Senhor precisa dele’” (vv. 29-31).

Do monte das Oliveiras, já se tem vista panorâmica da cidade santa, cujo nome Yeru-Shalém significa “cidade da paz”. Depois de narrar a entrada em Jerusalém, Lc insere a lamentação de Jesus sobre esta cidade que não reconhece a “paz” e será sitiada e destruída por seus inimigos (alusão à destruição de Jerusalém em 70 d.C., cerca de dez anos antes da redação de Lc; cf. 21,6; 23,27-31).

Jesus vai entrar em Jerusalém para visitar o templo, purificá-lo (Lc resume Mc 15,15-19 em apenas dois versículos, vv. 45s) e nele ensinar diariamente, mas às noites passará no monte das Oliveiras (v. 47; 20,1; 21,37s; 22,39, onde fica também o jardim Getsêmani, Mc 14,32).

Já no AT, o“monte das Oliveiras” é um lugar de oração (Ez 11,23; 2Sm 15,32; cf. aoração de Jesus neste lugar em Lc 22,39p), onde Javé Deus se revelará no dia do julgamento rachando o monte (Zc 14,3s). O historiador contemporâneo, Josefo Flávio, menciona que, pouco anos depois da morte de Jesus, um pretendente de messias vindo do Egito queria se revelar no monte da Oliveiras e fazer cair os muros da cidade, mas foi expulso pelos soldados romanos. Este episódio ilustra a expectativa do povo que o messias poderia vir do deserto e se revelar neste monte.

Betfagé e Betânia são dois povoados perto do monte das Oliveiras, para onde Jesus envia dois dos discípulos (cf. Mc 6,6; Lc 10,1; em 22,8 são Pedro e João, cf. At 3,1 etc.). Em Betânia, Jo 11,1 e 12,1 localizam a casa de Maria, Marta e Lázaro (cf. Lc 10,38s) e acontecerá a unção antecipada para o funeral (Mc 14,3-9p, omitida por Lc).

Jesus pretende entrar na cidade montado num “jumentinho que nunca foi montado”. Um animal nunca usado é apto para uso religioso (só vacas novas, sobre os quais não tinha ainda posta canga, podiam puxar o carro da arca da aliança em 1Sm 6,7; cf. Dt 21,3; Nm 19,2; Lc 23,53).

O jumento pode-se comparar hoje a um carro popular ou uma moto. Jesus não vai entrar com um cavalo de guerra ou numa limusina de luxo. O fato de pedir emprestado este jumento mostra a carência do grupo dos discípulos que caminhava a pé. Mas Jesus sabe providenciar mesmo assim, tem simpatizantes além do grupo dos discípulos. Em contraste à pobreza, o título “o Senhor” revela a dignidade (divindade) de Jesus e já se encontrava aqui em Mc.

Os enviados partiram e encontraram tudo exatamente como Jesus lhes havia dito. Quando desamarravam o jumentinho, os donos perguntaram: “Por que estais desamarrando o jumentinho?” Eles responderam: “O Senhor precisa dele.” E levaram o jumentinho a Jesus.Então puseram seus mantos sobre o animale ajudaram Jesus a montar.E enquanto Jesus passava,o povo ia estendendo suas roupas no caminho (vv. 32-36).

A ordem misteriosa de Jesus (cf. o paralelo 22,7-13) entende-se aqui a partir de dois trechos do AT: Na benção a Judá (tribo de Davi), de quem “o cetro não se afastará”, falou-se de um “jumentinho amarrado” (Gn 49,10-11). O profeta Zacarias anunciou a Jerusalém a chegada do messias: “Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumentinho, ele eliminará os carros … e cavalos … e arcos de guerra. Ele anunciará a paz ás nações” (Zc 9,9s, citado por Mt 21,5 e Jo 12,15).

Sobre o animal trazido a Jesus, os (dois?) discípulos “colocaram…seus mantos” como enfeite; esta cena e a próxima lembram a entronização do rei no antigo Israel (1Rs 1,38-40; 2Rs 9,13).Lc omitiu os “ramos” que o povo cortava e espalhava pelo caminho (Mc 11,8; Mt 21,8; Jo 12,13; cf. Sl 118,27).

Quando chegou perto da descida do monte das Oliveiras, a multidão dos discípulos, aos gritos e cheia de alegria,começou a louvar a Deus por todos os milagres que tinha visto.Todos gritavam: “Bendito o Rei, que vem em nome do Senhor!Paz no céu e glória nas alturas!”(vv. 37-38).

A partir daqui, Lc modificou mais o texto de Mc:ele define a multidão dos peregrinos sendo “dos discípulos” e adicionaa “alegria” e o “louvor” e o motivo de tudo isso, “por todos os milagres que tinha visto” (v. 37; cf. At 10,38). Como Lc escreve para leitores greco-romanos, ele omite a aclamação hebraica “Hosana” (Mc 11,9-10p, cf. Sl 118,25-27). Em Mc, Jesus é aclamado rei apenas indiretamente: “Bendito o reino que vem, do nosso pai Davi! Enquanto em Mt 21,9, Jesus já é aclamado “filho de Davi” (já pelo cego de Jericó; cf. Mc 10,47-48p), ou seja, messias (cf. Mc 12,35p), em Lc se usa a palavra “Rei” (cf. Jo 12,13).

Na segunda parte da aclamação de Mc 10,10, “Hosana no mais alto do céus” ,Lc lembra o canto dos anjos no nascimento de Jesus em Belém: “Glória a Deus na mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama” (2,14). Só, agora a paz é apenas no céu, não mais na terra (cf. 22,35-38); a paz era a visita de Jesus na terra cujo tempo termina (cf. 19,41-44). Jerusalém vai se mostrar hostil dentro da cidade, em Lc não o povo, mas seus dirigentes; ao final o título da cruz será: “o Rei dos judeus” (23,38p).

Do meio da multidão, alguns dos fariseus disseram a Jesus: “Mestre, repreende teus discípulos!” Jesus, porém, respondeu: “Eu vos declaro: se eles se calarem, as pedras gritarão” (vv. 39-40).

Em Mc, Jesus entra na cidade e no templo e depois volta a Betânia (Mc 11,11). Mte Lc, porém, modificam, narrando certa reação do povo da cidade (Mt 21,10-16; cf. 2,3) ou dos adversários (Lc; cf. Jo 12,19).

Os fariseus alertam Jesus, ou por inveja e ciúme ou sendo “do meio da multidão” talvez com sincera preocupação com a possível reação dos romanos. Para estes, alguém se declarando rei dos judeus poderia ser motim contra a soberania de Roma (cf. 23,2.5). Jesus se nega a repreender os discípulos e com o provérbio de Hab 2,11 declara que a hora de professá-lo messias tem chegado. Apesar da falta da compreensão dos discípulos que persiste ainda (cf. 9,21; 24,26), a hora da decisão é agora. Sobre aqueles que rejeitam Jesus, será pronunciado o julgamento. Assim, a citação de Hab 2,11 pode ser entendida também como profecia: Se os discípulos não podem falar e gritar agora, as pedras da cidade destruída de Jerusalém falarão (cf. 13,4.34s; 19,11-27.41-44; 21,6).

A entrada de Jesus lembra a unção/posse de Salomão que entrou em Jerusalém montado numa mula com júbilo do povo apesar dos seus adversários (1Rs 1,38-40). Além da simplicidade (jumento) sinaliza a paz (cf. o nome da cidade e de Salomão e a profecia de Zc 9,9s) que Jesus quer trazer, mas Jerusalém não reconhece (vv. a lamentação em seguida, vv. 41-44).

1ª Leitura: Is 50,4-9a

O texto da leitura de hoje é tirado do Segundo Isaías (“Deutero-Isaías”, cap. 40-55), é o 3º de quatro cantos (poemas) do “Servo” de Javé (Deus). Enquanto o 1º canto apresentou a missão pacífica do servo (42,1-4; leitura do Batismo do Senhor) e o 2º a reafirmou diante do insucesso (49,1-6), o 3º fala da experiência do sofrimento injusto. Todos os quatro cantos serão lidos nesta semana (2ª, 3ª, 4ª e 6ª feira Santa).

Quem está a falar no 3ª canto parece o próprio servo, embora não seja aqui nomeado, mas é o que se deduz do contexto (cf. v. 10). Não se chama profeta, mas narra sua vocação como de um profeta (cf. 49,1s). Ele inicia quatro vezes com “o Senhor Deus”, lit. “o Senhor Javé” (vv. 4.5.7.9; cf. 40,10; 48,16; 49,14.22; 51,22; 52,4): ao ouvir a palavra (v. 4, cf. Jr 1,2.7.9; 15,16.19; 17,15; 20,8s), ao sofrer na missão (vv. 5-6; cf. Jr 1,8.17; 10,17s; 17,17s; 18,18; 20,7-10) e para confiar no Senhor (vv. 7-9; cf. Jr 15,20s; 20,11-13).

Pelo gênero literário, é um salmo de confiança com confissão, e a mesmo tempo, uma alegação de defesa pelo próprio réu num tribunal. Suas palavras se dirigem aos homens, não a Deus.

O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo (v. 4).

O autor descreve sua vocação profética. Só pode falar o que ele ouve de Javé (cf. Jo 7,16; 14,24). Ele é um “discípulo” (v. 4; cf. 54,13), talvez saído de uma escola que remonta ao primeiro Isaias (cf. 8,16)? Nas escolas do Oriente, o método didático no primário era e, às vezes, ainda é: o mestre fala, e os discípulos repetem suas palavras.

O profeta está com uma “língua adestrada”, porque Deus “desperta cada manhã e me excita o ouvido” (v. 4). A primeira impressão do dia é a palavra de Deus que o orienta e envia (cf. a oração pela manhã em Sl 5,4; 57,9; 88,14; 90,14; Mc 1,35). Sua missão tem um alcance mais restrito do que 42,1.4.6; 49,6, mas uma nova qualidade: responder às angustias dos fracos e abatidos (cf. o início do Segundo Isaias em 40,1: “Consolai, consolai meu povo”). O povo no exílio está cansado, abatido, deprimido, fatigado, mas o profeta quer dar novo ânimo com sua palavra (cf. 40,27-31; Mt 9,36; 11,28-30).

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (v. 5).

O v. 5a repete que Deus lhe “abriu os ouvidos” (uma metáfora na Babilônia para uma divina revelação verbal a um ser humano). Para isso, o profeta não resiste o que o Senhor Javé pede também a outro profeta no exílio: “Não seja rebelde como esta casa de rebeldes” (Ez 2,8; cf. 3,24-27; 24,27; 33,22). Ele não resiste nem volta atrás, nem faz objeções como Moisés e Jeremias (cf. Ex 3,11; 4,10; Jr 1,6). Nas confissões de Jr (Jr 15,14s; 20,8b-10), o profeta parece deprimido entre o recado de Deus e as hostilidades dos homens, mas a palavra de Javé alimenta seu coração todo dia. Deutero-Isaías já aceita este destino de profeta como intrínseca. Como depois Jesus, ele se identifica com a vontade de Deus (cf. Jo 4,34; Mc 14,36p).

Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (v. 6).

O profeta não recua diante das dificuldades e ataques de adversários. Além de agressões físicas, sofre ações para envergonhar: cusperadas (Jó 30,10), bofetões, tapas no rosto, eram considerados uma vergonha (cf. Jó 16,10; Mt 5,39), principalmente quando bate numa autoridade, ex. num profeta (1Rs 22,24), num juiz (Mq 4,14; Lc 18,5) ou num rei (cf. Jo 18,22) “Ofereci minhas costas para me baterem,… não desviei o rosto de bofetões e cusparadas” (v. 7). A barba era símbolo da força e honra masculina. Só escravos estavam sem barba. Existem fotos em que soldados nazistas arrancaram a barba de judeus idosos. Os evangelistas veem o cumprimento destas palavras proféticas na paixão de Cristo (cf. Mc 10,34; 15,19; Mt 26,67; 27,26-30; 27,30; Lc 22,63-64).

Não se sabe o porquê destas agressões. O profeta apanhou dos seus conterrâneos, porque não escondeu que a culpa do exílio era do povo de Israel (42,18-25; 43,22-28; 50,1; etc.)? Ou ficaram cansados e enfurecidos por causa das suas promessas de um novo êxodo maravilhoso enquanto, na vida real, nada mudou (ainda). Maltrataram este “falso profeta” (cf. Jr 29,8ss) ou o denunciaram diante das autoridades babilônicas?

Mas o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções? Vejamos. Quem é meu adversário? Aproxime-se. Sim, o Senhor Deus é meu Auxiliador; quem é que me vai condenar? (vv. 7-9a).

O profeta-servo torna se firma na sua confiança, faz seu rosto como pedra (cf. Jr 1,18s; Ez 3,8s; Jó 28,9; cf. Lc 9,51). É para esconder a dor ou esconder sua ira? É a sua resistência aos adversários, porque ele não recorre à violência (42,2-3) nem foge dos agressores. Ele pode ter medo dos inimigos, mas aplica a si mesmo o que falou aos exilados desanimados: “Não temas” (cf. 41,10-13), e confia na sua defesa pelo Senhor. Como ele é inocente e cumpre o que Deus ordenou, o próprio Deus fará sua defesa. O profeta se declara e desafia como num tribunal (cf. cf. 41,1-7 e o processo em Dt 25,1-3) em que os adversários acham que já ganharam. A não-resistência pode ser tomada como confissão de culpa, dando razão ao adversário.

“Mas o Senhor Javé é meu auxiliador” (vv. 7.9). Mas quem acusará, se seu advogado é o próprio Deus? (cf. a função do Espírito-paráclito em Jo 16,8-11; Mt 10,20, e a grande confiança de Paulo em Rm 8,31-34). Deus demonstrará a inocência do acusado, conseguirá sua absolvição, enquanto os adversários serão apanhados na mesma armadilha que lhe tinham preparado (cf. v. 11). “Certamente todos eles se gastarão como uma veste, a traça os devorará” (v. 9b, omitido pela liturgia de hoje; cf. 51,8).

Neste terceiro canto, o Servo de Javé se revela como indivíduo. É um profeta que expressa como recebe a palavra de Deus, quais sofrimentos lhe surgem no seu ofício e como os suporta. Está perto das confissões de Jeremias e da vocação de Ez 2, mas tem seu perfil próprio. Suas palavras aqui se relacionam a outros trechos de Deutero-Isaías (cf. 40,27-31; 41,8-13; 51,8) e não deixam dúvidas: o Servo é o próprio profeta: Deutero-Isaías. Sua solicitude pastoral para com os fracos, cansados e abatidos prefigura Jesus, que os convida como bom pastor, manso e humilde (cf. Mt 11,28; Lc 13,34; 19,9s; cf. Is também Is 40,27-31; 46,1-4; 55,1ss;); sua recusa de violência reencontra-se na ética de Jesus (Mt 5,39b). Mas o servo-profeta espera ser reconhecido, justificado no tribunal. No tempo do AT, moralidade e legalidade ainda eram uma coisa só. Ainda não havia a crença numa possível justificação após a morte. Mas os cantos do servo, na sequência de 50,4-9; 53 representam um salto na fé. O servo renuncia a vingar-se e espera que sua honra seja recuperada, que injustiça e violência não tenham a última palavra. Como, onde e quando o servo será justificado não se fala ainda. A comunidade falará depois na liturgia funeral em 52,13-55,12 (leitura de Sexta-feira Santa).

 

2ª Leitura: Fl 2,6-11

A carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo na prisão de Éfeso entre os anos de 54 e 57. Apesar dos sofrimentos, a carta demonstra que o evangelho é boa notícia. A comunidade de Filipos era a primeira igreja que Paulo fundou na Europa (At 16,11-40) e a única da qual aceitou donativos para suprir suas privações (4,10-20).

Paulo convida a comunidade dos filipenses a evitar as divisões causadas pelo espírito de “competição” (v. 3), pelo desejo de receber elogios e pela busca dos próprios interesses. A comunidade deve zelar pela harmonia interna e, para isso, é necessário que haja humildade, “cada um considerando os outros superiores a si” (v. 3), e que o empenho tenha sempre em vista o bem comum (v. 4).

Paulo sabe por experiência quão facilmente nascem rixas e conflitos nas comunidades (cf. 1 Cor). Ele percebeu sinais disso em Filipos (1,27; 2,14; 4,2) e por isso exorta os seus correspondentes à unidade e à concórdia. A unidade só se realizará por uma vida de humildade, abnegação e serviço de que o próprio Cristo deu o exemplo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (v. 5).

Citando um hino conhecido, Paulo apresenta em Cristo o modelo da humildade. Embora tivesse a “mesma condição de Deus”, Jesus se apresentou entre os homens como simples homem. E mais: abriu mão de qualquer privilégio, tornando-se apenas homem que obedece a Deus e serve aos homens. Não bastasse isso, Jesus serviu até o fim, perdendo a honra ao morrer na cruz, como se fosse criminoso. Por isso Deus o ressuscitou e o colocou no posto mais elevado que possa existir, como Senhor do universo e da história. Os cristãos são convidados a fazer o mesmo: abrir mão de todo e qualquer privilégio, até mesmo da boa fama, para pôr-se a serviço dos outros, até o fim (cf. o lema da CF 2105, inspirada em Mc 10,45).

O esquema “humilhação” / “exaltação” pode-se detectar já em Pr15,33; 18,12; Sl 113,7-8; cf. 1Sm 2; Sl 22; 118; Is 53. As diversas etapas do ministério de Cristo estão assim marcadas, cada uma numa estrofe: 1. a descida (vv. 6-8): a partir da preexistência divina, o aniquilamento da encarnação, o aniquilamento ulterior da morte, 2. a subida (vv. 9-11): a glorificação celestial, a adoração do universo, o título novo de “Senhor”.

Trata-se do Cristo histórico, Deus e homem, na unidade da sua personalidade concreta, que Paulo jamais divide, se bem que distinga seus diversos estados de existência (cf. Cl 1,13s).

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz (vv. 6-8).

“Existindo em condição (lit. forma) divina” (v. 6a). Aqui e no v. 7, “forma” exprime mais do que uma aparência; é figura visível manifestando o ser profundo, ou, então, por alusão a Gn 1,27; 5,1: a imagem de Deus, i.é, o próprio ser de Deus em Cristo. A tradução “condição/forma” permite repetir a palavra em v.7 (“com aspecto humano”). Cristo, sendo Deus, tinha por direito todas as prerrogativas divinas.

Considerando que a Carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo entre 56 e 64, temos aqui é o testemunho mais antigo da preexistência de Jesus, 20 a 40 anos antes de Cl 1; Hb 1; Jo 10. A descida e a ascensão de Cristo neste hino antecipam a cristologia joanina (cf. Jo 1,14; 3,13-14; 12,32; 13,1…)

“Não fez do ser igual a Deus uma usurpação” (v. 6b; lit. “não considerou o estado de igualdade com Deus como uma presa”, que não se largar, ou, antes, que se deve agarrar). Não se trata da igualdade de natureza, suposta pela “condição divina” e da qual Cristo não poderia despojar-se, mas de uma igualdade de tratamento, de dignidade manifesta e reconhecida, que Jesus poderia ter reivindicado mesmo na sua existência humana. Pode-se pensar na atitude oposta de Adão (Gn3,5.22).

Duas explicações se confrontam. Para uns, a condição divina é o estado do Cristo antes de sua encarnação, e esta é a primeira forma do rebaixamento de Cristo. Neste curso, a “presa” (a igualdade com Deus) deve ser conservada e defendida, não conquistada. A palavra grega parece sugerir antes uma presa da qual alguém quer se apropriar. Neste caso, o reflexo do ser de Deus (imagem de Deus) se manifesta no comportamento terrestre de Cristo. Haveria aí uma alusão a Adão que procurou fazer-se igual a Deus (Gn 3,5,22): Cristo escolheu na terra a humildade e a obediência em vez do orgulho e da revolta. Este paralelo antitético entre Adão e Cristo, iniciado aqui, será novamente tratado por Paulo em perspectivas mais amplas (Rm 5,14; 1Cor 15,45-47). Como ilustração por contraste podem-se ver as pretensões divinas do rei do Tiro (Ez28,6.9), do rei da Babilônia (Is 14,13-14) e o convite irônico a Jó (Jó 40,7-14).

“Mas esvaziou-se a si mesmo” (v.7a). Do verbo grego que significa “esvaziar” veio o termo Kênosis (oposto do pleroma, plenitude divina, cf. Cl 1,19; 2,9; Ef 1,23; 4,10; Jo 1,16). Trata-se menos da encarnação do que do seu modo. Aquilo de que Cristo feito homem se despojou livremente não é a natureza divina, mas a glória que por direito ela lhe conferia, glória que ele possuía na sua preexistência (cf. Jo 17,5) e que deveria normalmente resplandecer sobre a sua humanidade (cf. a transfiguração, Mt 17,1-8p). Ele preferiu privar-se dela para recebê-la apenas do Pai (cf. Jo8,50.54), como preço do seu sacrifício (vv. 9-11).

“Assumindo a condição de escravo” (v. 7b). A condição de escravo/servo é simplesmente a condição humana submetida a Deus. O termo “servo” opõe-se ao título de “senhor” (v. 11; cf. Gl 4,1; Cl 3,22s). Cristo feito homem adotou um caminho de submissão e de humilde obediência (v. 8). É provável que Paulo esteja pensando aí no “servo de Javé” de Is 52,13-53,12 (cf. Is 42,1).

“Tornando-se igual aos homens” (v. 7c), portanto, não apenas um verdadeiro homem, mas um homem como os outros, partilhando de todas as fraquezas da condição humana, exceto o pecado (cf. Hb 2,17).

“Humilhou-se a si mesmo” (v. 8). Se a encarnação é um primeiro aspecto da kênosis, eis o segundo.  Como o Servo de Is 53, Cristo escolheu o rebaixamento por obediência até a morrer (cf. Is53,8.12), “e morte na cruz”, reservada aos malfeitores (Hb 12,2). É o escândalo da cruz, um dos pontos fundamentais da pregação de Paulo (1Cor 1,18-25; 2,1-2; Gl 6,14).

Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai (vv. 9-11).

“Por isso, Deus o exaltou” (v. 9a; lit.: superexaltou). Foi exaltado (cf. Is 52,13; 53,10-12) pela ressurreição e ascensão, obra por excelência do poder de Deus (cf. 1Ts 1,10; Rm 1,4)

“Lhe deu o Nome” (v. 9b). Conferir um nome é não somente atribuir um título, mas uma dignidade autêntica (cf. Ef 1,21; Hb1,4). Aqui Paulo pensa no nome de “Senhor” (cf. v. 11; At 2,21.36; Hb 1,4) que no AT grego é a palavra empregada para exprimir o nome impronunciável de Deus (Yhwh, portuguesado: “Javé”; Ex 3,14s). Assim o senhorio de Deus se revela em Jesus na sua extrema humilhação.

O Servo é exaltado acima do universo inteiro a fim de que o gesto de adoração e homenagem devida a Deus somente doravante dirija-se também a Jesus “Senhor” em que Deus se revela e age (cf. Is 45,23; Fl 3,21; Ef 1,20-23; 3,14; 4,10; Cl 1,18-20; Rm 14,11; 1Cor 24-28; Mt28,9.17; Lc 24,51-52). “Nos céus, na terra e abaixo da terra” é a tríplice divisão do mundo criado (cf. Ap5,3.13). Debaixo da terra visa aos habitantes da morada dos mortos, de preferência aos demônios (no AT era opinião comum que os mortos não louvem a Deus, cf. Is 38,18-19; Sl 30,10; 88,11-13, aqui está mais em sintonia Sl 22,30).

 

Evangelho: Lc 22,14-23,56; aqui a versão breve: 23,1-49

A paixão de Cristo narrada por Lc segue a de Mc, mas tem suas peculiaridades: na versão mais longa que começa na última ceia, esta é mais assimilada à ceia pascal judaica usando outro cálice (22,17) antes das palavras sobre o pão e o vinho que são da versão helenista (22,29s; cf. 1Cor 11,23-25; Mc e Mt têm a versão palestinense); depois, na oração no monte da oliveiras, Jesus sua sangue e é confortado por um anjo (22,43s). No cap. 23, Jesus é acusado de subversão e negação de impostos, e interrogado também por Herodes; no caminho ao Calvário, faz um profecia às mulheres de Jerusalém; na cruz, pede perdão por seus inimigos e promete o paraíso ao ladrão arrependido que foi crucificado com ele. Ao morrer Jesus reza outro salmo. Estas mudanças se explicam pela situação de Lc (já escreve depois da destruição de Jerusalém e do templo em 70. d.C.) e sua intenção de destacar Jesus misericordioso com os pecadores e confiante (rezando) ao Pai.

Em seguida, toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos. Começaram então a acusá-lo, dizendo: “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei.” Pilatos o interrogou: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu, declarando: “Tu o dizes!” Então Pilatos disse aos sumos sacerdotes e à multidão: “Não encontro neste homem nenhum crime.” Eles, porém, insistiam: “Ele agita o povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galileia, onde começou, até aqui.” (vv. 1-5).

A versão mais breve omite a prisão e o processo diante do sinédrio (supremo tribunal dos judeus) que condena Jesus como falso profeta e pretendente de messias (22,63-71p; cf. Dt 13), mas não pode aplicar a pena de morte. Os romanos ocupavam o país e reservavam para si o direito da sentença à morte (Jo 18,31). Por isso Jesus é levado o governador Pilatos, mas com outra acusação, já que a acusação religiosa não vingaria diante do tribunal romano.

Em Lc, é “toda a multidão” que leva Jesus a Pilatos (pode se lembrar da cena em Nazaré, cf. 4,29). Lc especifica a acusação política de se fazer rei dos judeus, “fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei” (cf. At 5,37). A acusação é falsa, porque Jesus já se pronunciou a favor dos impostos: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (20,25p).

“Tu és o rei dos judeus?” A interrogação de Pilatos concentra-se na terceira acusação que é decisiva (cf. o título na cruz em v. 38) e verdadeira, mas depende da interpretação: Jesus é messias/rei no sentido religioso, não político (cf. Jo 18,33-38) como os adversários insinuam. A resposta, “Tu o dizes”, está aberta a interpretação. Pilatos deve ter percebido que Jesus não era um dos pretendentes violentos de messias que havia na época (cf. v. 19.25; At 5,36s) e não encontra “nenhum crime”. A intenção de Lc (como os outros evangelistas) é isentar o governador romano e preparar o diálogo importante dos cristãos com as autoridades romanas (os cristãos não são do lado do crime, mas querem liberdade de culto no Império Romano). Não quer dizer que os judeus da época são os únicos culpados na morte de Jesus.

Os acusadores insistem e salientam o suposto perigo saindo da região da Galileia onde já começaram as revoltas dos zelotas (cf. At 5,37); “desde Galileia até aqui” repete o motivo lucano do caminho de Jesus (cf. 9,51; 19,28 etc.).

Quando ouviu isto, Pilatos perguntou: “Este homem é galileu?” Ao saber que Jesus estava sob a autoridade de Herodes, Pilatos enviou-o a este,pois também Herodes estava em Jerusalém naqueles dias. Herodes ficou muito contente ao ver Jesus, pois havia muito tempo desejava vê-lo. Já ouvira falar a seu respeito e esperava vê-lo fazer algum milagre. Ele interrogou-o com muitas perguntas. Jesus, porém, nada lhe respondeu. Os sumos sacerdotes e os mestres da Lei estavam presentes e o acusavam com insistência. Herodes, com seus soldados, tratou Jesus com desprezo, zombou dele, vestiu-o com uma roupa vistosa e mandou-o de volta a Pilatos. Naquele dia Herodes e Pilatos ficaram amigos um do outro, pois antes eram inimigos (vv. 6-12).

O próprio Lc inseriu este encontro com Herodes Antipas, porque pela legislação o tetrarca da Galileia seria o responsável da primeira instância. Ou Pilatos se quer esquivar da responsabilidade ou espera ter mais provasatravés desta transferência. Por ocasião da festa da páscoa, Herodes encontrava-se em Jerusalém. Lc já preparou este encontro em 9,7-9: Herodes mandou decapitar João Batista e queria mesmo ver Jesus (9,7-9). Jesus foi alertado da má intenção dele e o chamou de “raposa” (13,31-33). Herodes era um homem com formação grega, ouviu falar dos milagres de Jesus e quer saber, fazendo “muitas perguntas” (cf. At 17,21; 25,22). “Jesus, porém, nada lhe respondeu”, é o motivo do servo de Javé (Deus) que é humilhado, “permanece mudo na presença dos seus tosquiadores, ele não abriu a boca” (Is 53,7). Em Mc e Mt, Jesus fica calado diante Pilatos e dos sumos sacerdotes e os mestres da Lei (cf. Mc 15,1p).

O silêncio de Jesus ofende sua vaidade de Herodes que faz de Jesus uma caricatura de rei/messias:“tratou Jesus com desprezo, vestiu-o uma roupa vistosa e mandou-o de volta a Pilatos” (cf. a zombaria dos guardas do sinédrio em 22,63 e a zombaria dos soldados romanos com coroa de espinhos em Mc 15,16-20, omitida por Lc).O cinismo de Herodes sem tomar decisão combina com o caráter desse homem.

“Naquele dia Herodes e Pilatos ficaram amigos um do outro, pois antes eram inimigos”; Jesus reconcilia até os inimigos, A comunidade cristã viu nessa cumplicidade de Herodes e Pilatos o cumprimento de Sl 2,2 (cf. At 4,25-28), “se unem contra o Senhor e seu Ungido (=Messias/Cristo)”.

Então Pilatos convocou os sumos sacerdotes, os chefes e o povo, e lhes disse: “Vós me trouxestes este homem como se fosse um agitador do povo. Pois bem! Já o interroguei diante de vós e não encontrei nele nenhum dos crimes de que o acusais; nem Herodes, pois o mandou de volta para nós. Como podeis ver, ele nada fez para merecer a morte. Portanto, vou castigá-lo e o soltarei.”

Toda a multidão começou a gritar: “Fora com ele! Solta-nos Barrabás!” Barrabás tinha sido preso por causa de uma revolta na cidade e por homicídio. Pilatos falou outra vez à multidão, pois queria libertar Jesus. Mas eles gritavam: “Crucifica-o! Crucifica-o!” E Pilatos falou pela terceira vez: “Que mal fez este homem? Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte. Portanto, vou castigá-lo e o soltarei.” Eles, porém, continuaram a gritar com toda a força, pedindo que fosse crucificado. E a gritaria deles aumentava sempre mais. Então Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam – aquele que fora preso por revolta e homicídio – e entregou Jesus à vontade deles (vv. 13-25).

Pilatos tenta pela segunda e terceira vez de inocentar Jesus, falando com as autoridades (v. 13) e com a multidão fora (v. 20),“pois queria libertar Jesus” e conclui duas vezes: “Portanto, vou castigá-lo e o soltarei” (vv. 16. 22). Com este castigo queria dar razão a ambos os lados e evitar o mal maior, a morte do réu.

Mas ele se deixa pressionar pela gritaria, solta Barrabbás, “aquele que fora preso por revolta e homicídio” (vv. 18.25; cf. Mc 15,7p) e, sem sentença formal de culpa,“entregou Jesus à vontade deles” (cf. At 3,13-15; diferente a autoridade romana no caso de Paulo, cf. At 18,12-16; 21,27ss). Entregar não é só termo jurídico (At 21,11; 28,17), mas também teológico (cf. Is 53,12; Lc 24,26s; At 2,23; 3,18; 13,27; 26,23) expressando a realização da vontade divina.

Lc omite a ação cruel dos soldados, a zombaria e a flagelação (cf. Mc 15,15-20p).

Enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão, de Cirene, que voltava do campo,e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Jesus. Seguia-o uma grande multidão do povo e de mulheres que batiam no peito e choravam por ele. Jesus, porém, voltou-se e disse: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! Porque dias virão em que se dirá: ‘Felizes as mulheres que nunca tiveram filhos, os ventres que nunca deram à luz e os seios que nunca amamentaram’. Então começarão a pedir às montanhas: ‘Caí sobre nós!’ e às colinas: ‘Escondei-nos!’ Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?”(vv. 26-31).

No caminho da cruz, Jesus é assistido pelo cireneu que carrega a cruz “atrás de Jesus”, este detalhe que Lc acrescenta faz do cireneu o primeiro “a tomar a cruz e seguir” Jesus (9,23). Lc acrescenta também uma profecia de Jesus sobre os habitantes de Jerusalém que pode ser antiga (por sua linguagem semítica) e aludir a Zc 12,10-14: “Quanto aquele que que transpassaram, eles o lamentarão como se fosse a lamentação de um filho único… com suas mulheres a parte”.

Jesus convida as “filhas de Jerusalém” (cf. Ct 1,5; Is 3,16s) a não choraram por ele, mas por seus próprios filhos, por causa da desgraça que chegará e fará as pessoas pedirem uma catástrofe natural (terremoto como fim do mundoou esconderijo na montanhas; é uma citação de Os 10,8; cf. Ap 6,16; 9,6). Jesus já anunciou outras vezes a destruição de Jerusalém (11,50; 13,35; 19,41-44; 21,20-24) que aconteceu no ano 70 d.C., cerca dez anos antes da redação deste evangelho. A comparação da árvore verde com a seca (cf. o fogo do julgamento em 3,9.17; Is 66,15s; Sl 50,3) quer dizer: Se um sofrimento desse acontece comigo, o inocente, quanto mais desgraça sofrerá toda esta geração culpada.

Levavam também outros dois malfeitores para serem mortos junto com Jesus. Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, ali crucificaram Jesus e os malfeitores: um à sua direita e outro à sua esquerda. Jesus dizia: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (vv. 32-34a).

Dois “malfeitores” são crucificados com Jesus; Lc destaca o lado moral, Mc e Mt provavelmente o político chamando os “ladrões”. Cumpre-se agora a profecia de Is 53,12; citada na última ceia (22,37): “Ele foi contado entre os malfeitores”.

Lc mostra Jesus fiel as suas palavras do sermão da planície: sem sentimento de ódio ou vingança, ele reza por seus inimigos (6,27.35). Jesus é o protótipo do martírio que aguenta toda humilhação e não perde a dignidade moral. O primeiro mártir cristão, o diácono Estêvão rezará com as mesma atitude de Jesus (At 7,59s). Enquanto os mártires judaicos amaldiçoam seus algozes (cf. 2Mc 7,19), Jesus deseja perdão (cf. 22,48-51). É uma chance de conversão e salvação ao povo judeu que não é condenado para sempre (cf. 21,22-24; 23,28-31; At 3,17; 13,27)

Depois fizeram um sorteio, repartindo entre si as roupas de Jesus. O povo permanecia lá, olhando. E até os chefes zombavam, dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!” Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!” Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus” (vv. 34b-38).

Narrando a distribuição das roupas (cf. Sl 22,19) e a zombaria dos chefes (cf. Sl 22,7s), Lc segue Mc, mas sem a menção da hora e da destruição e reconstrução do templo(Mc 15,23-32). “Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!” lembra a tentação do diabo no deserto (4,3) e a palavra em Nazaré, “Médico, cura-te a ti mesmo” (4,23); o “Escolhido” pode aludir ao Servo de Javé (Is 42,1). Além do significado da acusação jurídica, Lc entende o título da cruz também como zombaria. Em Jo 19,21 os sacerdotes entenderam o título como escárnio do povo judeu por parte de Pilatos.

Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal.” E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado.” Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”(vv. 39-43).

Outra vez, Lc insere um passagem que demonstra a misericórdia de Jesus para com os pecadores até na hora da morte. Em Mc e Mt, também os dois ladrões na cruz o insultaram. Em Lc, só um insulta, outro se converte na última hora, temendo o juízo de Deus. Reconhece a própria culpa e condenação justa e declara Jesus inocente“ele não fez nada de mal”. Ainda confia-se a Jesus como messias/rei: “Jesus (outros manuscritos tem: Senhor), lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (cf. Sl 106,4). Os conceitos do Reino de Deus, do reinado do messias e do paraíso se fundem neste diálogo. Jesus responde solenemente: “Em verdade (lit. Amém) eu te digo” (cf. 4,24; 21,37; 18,17.29; 21,32), e promete mais do foi pedido: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.

Para os judeus já é escandaloso um pecador (aqui um criminoso) estar em comunhão com o messias, mas até para os cristãos parece problemática a palavra “ainda hoje”. Jesus não vai descer primeiro à mansão dos mortos antes de ressuscitar “no terceiro dia”? Lc, porém, não quer oferecer uma doutrina escatológica, mas entende “hoje” de maneira enfática como palavra que comunica a salvação (cf. 2,11; 4,12; 19,5.9). O decisivo é “estar com Jesus”, sinônimo do paraíso para Paulo (Fl 1,23; 1Ts 4,17).

Obs.: os vv. 34b-43 comenta-se mais no Domingo de Cristo Rei (evangelho).

Já era mais ou menos meio-dia e uma escuridão cobriu toda a terra até às três horas da tarde,pois o sol parou de brilhar. A cortina do santuário rasgou-se pelo meio, e Jesus deu um forte grito: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.” Dizendo isso, expirou. O oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus dizendo: “De fato! Este homem era justo!” (vv. 44-47).

A escuridão simboliza o poder das trevas que domina mais uma vez, mas tem um fim determinado (de mio dia até três da tarde, cf. Mc). Só Lc menciona que “o sol parou de brilhar (desapareceu)”; de fato, havia uma eclipse total do sol em 24 de novembro de 29 a .C., um ano antes da morte de Jesus.

Lc inverte a sequência de Mc e menciona a cortina do santuário antes da morte de Jesus, como sinal de que sua morte é em sintonia com a vontade de Deus. Rasgando esta cortina significa que o acesso a Deus (o santíssimo) está aberto para todos a partir de agora (cf. Hb 6,19s; 9,3; 10,19s).

Em Lc, Jesus não morre no grito de desespero do Sl 22,2 (cf. Mc 15,34-37p), mas com outro salmo que o judeu piedoso costuma rezar a noite (Sl 31,6) ao qual Jesus acrescenta “Pai” (cf. 22,42; 23,34). Jesus é modelo de vida também na sua morte. O primeiro mártir cristão, Estêvaõ, morre com as mesmas palavras (At 7,59).

Enquanto os chefes dos judeus rejeitam Jesus, o oficial pagão que liderou a execução se converte (cf. 7,29s), “glorificou a Deus” e, como Pilatos, declara a inocência de Jesus dizendo: “Este homem era justo!” Em Mc (e Mt), ele declara que Jesus era filho de Deus, mas os leitores greco-romanos de Lc conhecem muitos filhos de deuses na sua mitologia (Hercules etc.).

E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para casa, batendo no peito. Todos os conhecidos de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, ficaram à distância, olhando essas coisas (vv. 48-49).

As multidões que vieram para assistir como num espetáculo (cf. os teatros greco-romanos), ficaram tocadas também e “voltaram para casa, batendo no peito”, sinal de penitência (cf. 18,13). Os conhecidos de Jesus (cf. Sl 38,12; 88,9.19?) devem ser os discípulos (depois de 22,45 Lc não usa mais esta palavra, só depois em At novamente) que “ficaram à distância”, e as mulheres da Galileia (cf. 8,2s) que encontrarão depois o túmulo vazio (23,55-24,11).

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