14 de dezembro de 2016 – Quarta-feira, Advento 3ª semana

Leitura: Is 45,6b-8.18.21b-25

A leitura de hoje, pela seleção dos versículos, junta uma afirmação do monoteísmo (fé no único Deus) com a esperança da justiça e salvação que este mesmo Deus realizará. Por volta de 550-540 a.C., o profeta anônimo no exílio, chamado Segundo Isaías (Deutero-Isaías), já anunciava uma libertação, que pouco depois aconteceu: em 539 a.C. o rei da Pérsia (atual Irã), Ciro II entrou na Babilônia e deixou os judeus exilados voltarem para sua pátria e reconstruirem o Templo (Edito de Ciro em 538, cf. Esr 1; 6,3-5).

Para o Segundo Isaías, Ciro é instrumento de Javé Deus e em 45,1 recebe o título de “ungido” (o significado literal é “Messias, Cristo”; em Israel, os reis eram ungidos com este rito de consagração, cf. 1Sm 10,1; Sl2,2.7-9; 18,51). É a única vez que um rei estrangeiro recebe este título. A função deste texto é transmitir esperança aos exilados, fazendo-os acreditar que as campanhas militares de Ciro estavam sob a proteção de Javé, Criador, único Deus e Senhor da história. Ele é o autor tanto da paz (bem-estar, salvação) como do mal (castigo do exílio).

“Eu sou o Senhor, não há outro, eu formei a luz e criei as trevas, crio o bem-estar e as condições de mal-estar: sou o Senhor que faço todas estas coisas (vv. 6-7).

No final da vocação de Ciro (vv. 1-5 omitidos pela na leitura de hoje; cf. 41,1-5), o profeta expressou a esperança de que Ciro reconhecesse o Deus de Israel que o chamou e daria a vitória e riquezas, “a fim de que saibas que eu sou o Senhor (Yhwh, Javé), aquele que te chama pelo nome, o Deus de Israel” (v. 3). Parece que esta conversão do rei estrangeiro ao Deus de Israel não aconteceu (num achado arqueológico, no “Cilindro de Ciro”, os sacerdotes babilônicos atribuem a vitória de Ciro ao deus da sua cidade, Bel-Marduk), mas Ciro era um rei tolerante que concedeu liberdade aos judeus exilados e promoveu a religião deste pequeno povo e patrocinou a reconstrução do Templo em Jerusalém.

A religião dos persas era monoteísta (o profeta persa Zaratustra atuava na mesma época), porém, com uma forte tendência dualista: ao deus único Ahura Mazda se opôs o poder do mal e da escuridão. O Segundo Isaías conhecia esta religião, ou talvez tenha identificado Ahura Mazda com Javé? Talvez nestes vv. 5-6 (como em 43,10-12; 44,6-8), queria deixar claro, que apesar da vitória estrangeira, Javé é o único Deus e os outros deuses são um nada.

Tudo que existe tem origem nele que não só criou a luz e a paz (shalom, nossa liturgia traduz por “bem-estar”), como também as trevas e até o mal (cf. Am 3,6). É uma frase provocativa também para os ouvidos dos judeus. Em Gn 1,2-5 (escrito também no exílio), as trevas não foram criadas por Deus, mas já existiam como força caótica que Deus dominou dando o nome, “noite”).

A criação é uma realidade polar e existe um só criador: as trevas na ordem natural, a desgraça (o mal) na ordem histórica. Bem Sirac desenvolve essa doutrina (Eclo 39,12-35).

Céus, deixai cair orvalho das alturas, e que as nuvens façam chover justiça; abra-se a terra e germine a salvação; brote igualmente a justiça: eu, o Senhor, a criei”(v. 8).

O Segundo Isaíasnão fala de uma transformação antropológica (como Jr 31,33 e Ez 11,19s; 36,26s “coração novo…”). Como Os 10,12 e Is 1,21, ele imagina a justiça como uma esfera (sacramental, escatológica) que desce de cima, “das alturas” do céu, e infunde nos homens a prática da justiça. Se Javé se manifestar como rei (52,7; Jesus anunciará o “reino de Deus”, cf. Mc 1,15p), ele doará uma nova capacidade a seus súditos para conduta ética.

Esta prece (latim: Rorate coeli) visa, em primeiro lugar, à libertação e à “justiça” que Ciro vai trazer brevemente, mas que são uma criação de Javé (cf. 41,2; 42,9; 43,19): a fecundação celeste e a fecundação terrestre, ambas conjugadas, produzirão a salvação, como nova criação. Aqui, “salvação” significa libertação dos exilados frente à opressão dos conquistadores.Trata-se de um fragmento que reconhece as bênçãos divinas como fonte de vida para o povo (cf. Sl 72,1-4).

Na sua tradução em latim (Vulgata), São Jerônimo substitui os termos abstratos em hebraico, “justiça” e “salvação”, por “justo” e “salvador”, referindo-se a uma pessoa (o messias).

“Brote (germine) igualmente a justiça”; o Primeiro Isaías já comparava o príncipe messiânico a um “rebento” que brotou da cepa de Davi (4,2; 6,13; 11,1; cf. Jr 23,5= 33,15). Em Zc 3,8, a palavra “germe (rebento)” torna-se um título messiânico.

Isto diz o Senhor que criou os céus, o próprio Deus que fez a terra, a conformou e consolidou; não a criou para ficar vazia, formou-a para ser habitada: “Sou eu o Senhor, e não há outro (v. 18).

O eixo semântico (que não aparece pela omissão dos vv. 16-17.19-20a) é fracasso/salvação. Se os “fabricantes de ídolos” (v. 16) e “os que lhe resistem” (lit. se inflamavam contra ele) são os mesmos, representam a dupla dimensão de idolatria e agressão. “Vazia” é a palavra tôhu de Gn 1,2; ela retorna no v. 19; é traduzida alhures por “nulidade”(41,29 etc.).

A Bíblia do Peregrino (p. 1791) comenta os vv. 18-19: Os enunciados positivos contrastam com os negativos. Deus criou um mundo bom, uma terra “habitada”, povoado, não “vazia”; quando fala, não busca o vazio ou o oculto, porque pronuncia o que é reto e não precisa esconder-se; e agora quer publicidade. São os ídolos (deuses falsos) que atuam às escuras (Sl 82,5). Tampouco os israelitas devem esconder-se ou distanciar-se para encontrar o Senhor, pois o acharão numa terra povoada e no curso da história. “Tohu” significa vazio e pode designar o ídolo (41,29). Se Deus não quer que a terra fique deserta, a terra de Israel terá de ser repovoada e o deserto transformado.

Quem vos fez ouvir os fatos passados e soube predizê-los desde então? Acaso não sou eu o Senhor? E não há deus além de mim. Não há um Deus justo, e que salve, a não ser eu. Povos de todos os confins da terra, voltai-vos para mim e sereis salvos, eu sou Deus e não há outro (vv. 21b-22).

A polêmica contra os deuses pagãos, já encontrada diversas vezes no Segundo Isaías (cf. 40,12-31), atinge aqui um universalismo que ainda não fora tão claramente afirmado (cf. desde já v. 14). “Chegai-vos todos juntos, sobreviventes das nações: não sabem nada, os que carregam alto seu ídolo de madeira …” (v. 20). Os que escaparão do fim do império babilônico e por enquanto ainda carregam seus ídolos, reconhecerão que Javé é o único Deus.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 939s) comenta: Apresentar outros povos que acreditam em Javé tem como objetivo convencer os exilados de que o Deus de Israel é único capaz de salvá-los. A pessoas que perderam a fé e assimilaram a religião do império, o texto enfatiza que Javé é único… O anúncio de Javé se dá no meio do povo, e sua fala expressa justiça e retidão (vv. 19.21.23.24.25).

Juro por mim mesmo: de minha boca sai o que é justo, a palavra que não volta atrás; todo joelho há de dobrar-se para mim, por mim há de jurar toda língua, dizendo: ‘Somente no Senhor residem justiça e força’” (vv. 23-24a).

Deus jura por si mesmo (cf, Gn 22,16) porque não há outro maior por quem poderia jurar (cf. Hb 6,13s). O v. 23 é citado em Rm 14,11; faz alusão a ele Fl 2,10. “Por mim há de jurar toda língua”; trata-se de um juramento de lealdade (cf. Is 19,18; 2Cr 15,14).

Comparecerão perante ele, envergonhados, todos os que lhe resistem; no Senhor será justificada e glorificada toda a descendência de Israel(vv. 24b-25).

A Bíblia do Peregrino comenta: Como o Senhor é o único salvador, assim é o único justo ou inocente. No esquema de julgamento bilateral, ele é inocente e os pagãos são réus convictos. Israel, que deveria aparecer como culpado, foi perdoado e restabelecido assim na justiça.

No fim deste desenvolvimento universalista, provavelmente a “descendência de Israel” seja a posteridade ampliada pelo afluxo de outras nações que virão adorar Javé (cf. 44,5; 54,3).

Obs.: Na história, o primeiro monoteísmo surgiu no Egito com o Faraó Amenófis IV (1374-1347 a.C.) que introduziu o culto exclusivo ao disco solar (Aton) como único deus. Ele mudou seu nome para Akhen-Aton, mudou a capital, mas depois da sua morte, os sacerdotes de Amon recuperaram o politeísmo (adorar muitos deuses), como se vê no nome do sucessor Tut-Anc-Amon. Para Abraão, Javé Deus é um como um Santo de casa que protege sua família. Moisés e os profetas antes do exílio proíbem a adoração de outros deuses fora de Javé (monolatria: Israel só deve adorar Javé), sem negar a existência de outros deuses para outros povos. Mas depois do desastre nacional (destruição do Templo e de Jerusalém), no exílio, Deutero-Isaías proclama um monoteísmo exclusivo de um único Deus que não é só o Deus de Israel, mas o único de todo universo, a quem todos os povos se converterão (vv. 22-24; cf. 2,2-4).

Evangelho: Lc 7,18b-23

Nos evangelhos de hoje e amanhã, aprofunda-se o diálogo entre João Batista e Jesus. Lc e Mt usaram a fonte Q (coleção de palavras que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir destes dois evangelistas, cf. o paralelo Mt 11,2-15).

João convocou dois de seus discípulos, e mandou-os perguntar ao Senhor: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” Eles foram ter com Jesus, e disseram: “João Batista nos mandou a ti para perguntar: És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?“ (vv. 18b-20).

Profetas e escritos apocalípticos haviam alimentado entre os judeus a esperança num futuro libertador (Messias), particularmente como rei da dinastia davídica (Am9,11; Jr 23,5; 33,17; Ez 34,54): “aquele que devia vir”, o “vindouro” (Zc 9,9; Ml 3,1). Esta fórmula é nos evangelhos uma designação do Messias (Mc 1,7p; 11,9p; Mt 23,29;Lc 13,35; Jo 6,14; 11,27; cf. Sl 118,26).

João Batista já estava preso por Herodes (3,20) e se dá conta de que Jesus é diferente do Messias juiz e purificador de Israel que tanto ele como seus contemporâneos esperavam. As informações correspondem à expectativa messiânica do Antigo Testamento (AT)? O Batista descrevera o messias empunhando o machado para cortar, a pá para peneirar, manejando o fogo para queimar (3,16-17; cf. Mt 3,10-12). Jesus apresenta-se assim? É preciso esperar outro Messias?

A pergunta de João é exata e transcendental: trata-se de identificar a missão de Jesus. A pergunta beneficia seus discípulos e também a si próprio, para dissipar suas dúvidas e perplexidades. Precisa que sua missão seja confirmada e que se define o destino de seus discípulos. A sua mensagem a Jesus pode ser menos uma pergunta do que um convite a passar à ação.

João os envia “ao Senhor”, como se exprime o narrador. Muitos manuscritos têm aqui “Jesus”. Mas a expressão “o Senhor” é bem atestada e é característica de Lc. O terceiro evangelista dá a Jesus este título cerco de vinte vezes nas seções narrativas de seu relato, sem falar dos vocativos “Senhor”, cujo sentido é mais fraco. Dessa maneira, ele assinala a realeza misteriosa de Jesus. Mt e Mc só chamam a Jesus de “o Senhor” apenas uma vez cada um (Mt 21,3; Mc 11,3).

Nessa mesma hora, Jesus curou de doenças, enfermidades e espíritos malignos a muitas pessoas, e fez muitos cegos recuperarem a vista (v. 21).

Este versículo está ausente no paralelo de Mt 11,3 (Mt já narrou milagres desse gênero antes), aqui é introduzido por Lc para fundar a afirmação do versículo seguinte.

Então, Jesus lhes respondeu: “Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Nova é anunciada aos pobres (v. 22).

Os dois discípulos serão as duas testemunhas de tudo que Jesus realizou na presença da multidão (pela lei, são necessárias pelo menos duas testemunhas: Dt 19,15). As ações de Jesus, com alusões bíblicas, respondem à pergunta de João e de quantos a repetirem sinceramente. Assim, Jesus mostra a João que as suas obras inauguram certamente a era messiânica, mas sob a forma de ações benéfica e de salvação, não de violência e de castigo. Especialmente Lc mostra Jesus misericordioso.

As palavras aludem a trechos com que Isaías (Is 35,5-6; 61,1; cf. 26,19; 29,18) anunciava a era da salvação. Jesus os aplica a si, como na sinagoga de Nazaré (Lc 4,17-20), identificando-se com o Messias vindouro em ação e ao mesmo tempo descreve o Messias autêntico. Não veio para dar a Israel uma independência nacional e domínio sobre outros povos, segundo esperanças nacionalistas, mas veio para curar enfermos, libertar possessos e proclamar a boa notícia aos pobres (cf. 6,20). São esses os sinais da sua missão de Salvador.

“A Boa Nova (lit. evangelho) é anunciada aos pobres” (cf. Mt 4,23; Lc 1,19).Lc 4,18 já mostrou na pregação aos pobres o essencial da missão de Jesus, que cumpre o oráculo de Is 61,1.

E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim!”(v. 23).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1262) comenta: É recordando os resultados de sua atividade que Jesus responde a João. Os relatos anteriores não mostraram outra coisa que a compaixão do Messias diante das dores dos pobres e abandonados, e sua intervenção pela libertação deles. O v. 23 alerta para que isso não seja motivo de escândalo, supondo que havia compreensões a respeito do Messias que iam em outra direção, quem sabe triunfalista, quem sabe militar.

Jesus sabe que é difícil para os seus contemporâneos, e mesmo para João reconhecê-lo como Messias. A presente bem-aventurança é um convite à fé, a partir dos sinais que ele oferece. Quem não alimentar ilusões nacionalistas e triunfalistas não se frustrará (escandaliza, v. 23) com ele. Não ficar frustrado (escandalizado) é expressão corrente na espiritualidade bíblica (cf.Sl 25,2.20; 31,18; 71,1 etc.).

O site da CNBB comenta: O Antigo Testamento está no seu término e o Novo Testamento está no seu início. O Antigo Testamento está representado em João Batista, o seu último profeta, o maior entre os nascidos de mulher, e o Novo Testamento está representado em Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem e veio a este mundo. O sinal da mudança são os milagres que estão acontecendo como cumprimento de todas as profecias feitas no Antigo Testamento, deixando de serem promessas para tornarem-se realidade. Estamos nos tempos messiânicos, Deus está cumprindo todas as suas promessas em relação à sua realização.

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