14 de janeiro de 2018 – 2º Domingo, Ano B

1ª Leitura: 1Sm 3,3-10.19

A 1ª leitura foi escolhida pelo tema da vocação do primeiros discípulos no evangelho de hoje. A leitura nos apresenta o chamado do jovem Samuel.

Os livros 1-2Sm, juntos com 1-2Rs e Js e Jz, pertencem à história deuteronomista cuja redação que foi influenciada pela teologia de Dt. É um relato mais ou menos contínuo, apresentando a história do povo desde a conquista da terra até o exílio na Babilônia. Sob a liderança de Josué, os israelitas ocuparam a terra prometida que foi dividida numa reforma agrária entre as doze tribos de Israel. De 1200 a 1025 a.C. aproximadamente, estas tribos viviam numa liga e juízes resolviam disputas internas e defenderam o povo contra invasores. 1Sm começa com o nascimento do último juiz deste tipo, Samuel. Ele fará a transição da liga tribal para a monarquia ungindo os primeiros reis, Saul e Davi (cf. 1Sm 8-10; 16). Samuel nasceu de uma mulher estéril (Ana) e foi dado ao sacerdote Eli para ajudar no santuário. Não sendo de família sacerdotal, o menino ocupava-se de serviços secundários (cf. caps. 1-2).

Embora o capítulo 3 conte a vocação profética de Samuel, seu protagonista é a “palavra de Deus”. Aparece negativamente no v. 1, outra vez em relação com Samuel no v. 7 “ainda não”; no final do capítulo (4,1) penetra plenamente na história e Samuel será seu mediador: a mesma palavra cria para si este instrumento humano como chamado.

A tríplice voz noturna, além de ser um recurso narrativo popular, ilumina um contraste: até agora Samuel esteve às ordens de Eli, escutando a voz deste sacerdote; doravante escutará a voz do Senhor, para cumprir e transmitir suas ordens.

O jovem Samuel servia ao Senhor na presença de Eli. Naquele tempo a palavra do Senhor era rara e as visões não eram frequentes (v. 1).

Primeira revelação que consagra Samuel como profeta (v. 20). Não é um sonho: a voz desperta Samuel. É uma “visão” apenas em sentido amplo, pois Samuel não vê o Senhor (Javé), apenas o ouve. Visão e palavra podem ser duas formas ou dois componentes do saber profético (cf. Am 7; Jr 1 etc.). O profeta, homem da palavra, era chamado em outra época “vidente” (cf. 9,9.18s).

Aconteceu que, um dia, Eli estava dormindo no seu quarto. Seus olhos começavam a enfraquecer e já não conseguia enxergar. A lâmpada de Deus ainda não se tinha apagado e Samuel estava dormindo no templo do Senhor, onde se encontrava a arca de Deus (vv. 2-3).

Não podendo encarregar-se da vigilância, o velho Eli dorme em um dos anexos, o jovem Samuel dorme no recinto propriamente dito (tenda ou edifício). A “lâmpada de Deus” deve ser  o candelabro de que fala Ex 25,31-40; 27,21; Lv 24,2-4; era talvez evolução de uma instituição mais antiga. A “arca de Deus” é a arca da aliança onde Moisés depositou as tábuas da Lei (decálogo: os dez mandamentos). É acima da Arca da aliança que Javé se torna presente e comunica suas ordens (cf. Ex 25,22; Is 6). No tempo dos juízes, ou talvez já sob Josué (cf. Js 18,1; Jz 21), esta arca foi instalada no santuário de Siló.

Então o Senhor chamou: “Samuel, Samuel!” Ele respondeu: “Estou aqui” (v. 4).

Este primeiro chamado equivale a uma vocação, como no meio da sarça em Ex 3,4, ainda que não inclua todos os elementos de uma vocação profética (cf. Jr 1; Is 6).

E correu para junto de Eli e disse: “Tu me chamaste, aqui estou”. Eli respondeu: “Eu não te chamei. Volta a dormir!” E ele foi deitar-se. O Senhor chamou de novo: “Samuel, Samuel!” E Samuel levantou-se, foi ter com Eli e disse: “Tu me chamaste, aqui estou”. Ele respondeu: “Não te chamei, meu filho. Volta a dormir!” Samuel ainda não conhecia o Senhor, pois, até então, a palavra do Senhor não se lhe tinha manifestado (vv. 5-7).

Samuel ainda não tem trato e familiar com o Senhor (Javé), como o têm os profetas (cf. Am 3); a palavra não se revelou ou manifestou a ele pessoalmente, porque é necessária uma atualização com a força do Espírito para que o homem capte essa palavra em seu caráter único de palavra de Deus.

O Senhor chamou pela terceira vez: “Samuel, Samuel!” Ele levantou-se, foi para junto de Eli e disse: “Tu me chamaste, aqui estou”. Eli compreendeu que era o Senhor que estava chamando o menino. Então disse a Samuel: “Volta a deitar-te e, se alguém te chamar, responderás: “Senhor, fala, que teu servo escuta!” E Samuel voltou ao seu lugar para dormir. O Senhor veio, pôs-se junto dele e chamou-o como das outras vezes: “Samuel! Samuel!” E ele respondeu: “Fala, que teu servo escuta” (vv. 8-10).

O fato de o Senhor apresentar-se seria uma visão (cf. Jó 4,16: visão de Elifaz). A nossa liturgia de hoje omite o conteúdo da mensagem que Samuel ouve em seguida (vv. 11-14), porque não é uma boa nova (para Eli, cf. v.11: “o ouvido vai ficar zunindo”). O Senhor fará cumprir o que um profeta anônimo já anunciou a Eli (2,27-36): o fim da família de Eli, a morte dos filhos do sacerdote Eli que se comportavam mal no santuário desviando as oferendas (2,12-17) e o fim de Eli que não os repreendeu o bastante (cf. 2,22-25). O pano de fundo na época do autor é a reforma do rei Josias (640-609 a.C.) que destituiu os levitas das aldeias do interior e concentrou o culto em Jerusalém (2Rs 23,8s).

Na manhã seguinte, Eli insiste em ouvir a mensagem e a reconhece como autêntica (3,15-18). Também hoje, o representante da instituição divina (templo, Igreja) ajuda ao jovem vocacionado (seminarista) a discernir o chamado sentido.

Samuel crescia, e o Senhor estava com ele. E não deixava cair por terra nenhuma de suas palavras (v. 19).

No final, o ofício profético de Samuel está afirmado: “o Senhor estava com ele” (cf. Jr 1), suas palavras são “do Senhor” (também em hebraico é ambíguo o possessivo “suas”): “não deixava cair nenhuma das suas palavras” quer dizer sem cumprimento, sem produzir frutos (mesma expressão em 2Rs 10,10; cf. Is 55,10s; Mc 4,4.15p).

O povo o reconhece como “profeta” (v. 20). Também Moisés e sua irmã Miriam (Maria) foram chamados de profeta e profetisa (cf. Ex 15,20; Nm 12). Samuel será o último dos Juízes (cf. 7,15-17) e ungirá os primeiros reis, Saul e Davi (1Sm 8-10; 16).

 

2ª Leitura: 1Cor 6,13c-15a.17-20

As 2ª leituras dos próximos domingos são da 1ª carta aos Coríntios que Paulo escreveu por volta de 56 d.C. em Éfeso. A Bíblia Pastoral comenta na introdução: Corinto era uma rica cidade comercial, com mais de 500.000 habitantes, na maioria escravos. Nesse porto marítimo se acotovelava gente de todas as raças e religiões à procura de vida fácil e luxuosa, criando ambiente de imoralidade e ganância. A riqueza escandalosa de uma minoria estava ao lado da miséria de muitos. Surgiu, inclusive, uma expressão: «Viver à moda de Corinto», que significava viver no luxo e na orgia. Paulo, entre os anos 50 e 52, permaneceu aí durante dezoito meses (At 18,1-18) e fundou uma comunidade cristã formada por pessoas da camada mais modesta da população (1Cor 1,26-28).

Nossa liturgia de domingo omite os primeiros caps. (cf. 21ª semana ano par, a partir de 5ª feira) sobre as divisões entre vários grupos dentro da comunidade e a sabedoria da cruz (caps. 1-4). Depois trata de escândalos (incesto) e tribunais pagãos (5,1-6,11). Em 6,12 lança uma frase que fundamenta a ética paulina: “Tudo é permitido para mim, mas nem tudo me convém”. A Nova Bíblia Pastoral (p. 1392) comenta: Os coríntios repetiam um refrão, ao que parece, para justificar a libertinagem: “tudo é permitido para mim”. Ao concordar com o princípio, o Apóstolo estabelece um sábio limite: “mas nem tudo me convém”. E prossegue com várias motivações sobre a beleza e importância do corpo humano.

A Bíblia do Peregrino (p. 2746) comenta: Trata-se da liberdade, dedutível talvez do “tudo é vosso” (3,22). Pois bem, a liberdade tem limite: o que convém ao indivíduo e à sociedade. Do contrário, quem pretendia ser livre se submete a outro poder. O cristão todo está consagrado a Cristo, também na sua dimensão corporal, por meio da qual seu espírito se relaciona e que é destinada à ressurreição.

O corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor, e o Senhor é para o corpo; e Deus, que ressuscitou o Senhor, nos ressuscitará também a nós, pelo seu poder (vv. 13c-14).

Em vv. 13ab, Paulo se referiu aos “alimentos que são para o ventre, … mas o corpo não é para fornicação” (grego porneia, aqui traduzido por “imoralidade”). O corpo humano possui destino eterno. Diferente dos alimentos, que são perecíveis e visam à subsistência física (cf. 10,31), o corpo humano possui dimensão transcendente, porque participa da ressurreição de Jesus (Rm 8,11).

A Bíblia do Peregrino (p. 2746) comenta: Os coríntios podiam apelar para o ensinamento de Jesus presente em Mc 7,19 (ver o contexto) para estendê-lo a pari à sexualidade, Paulo rejeita a mera interpretação mecânica do primeiro e sua simples aplicação à esfera sexual.

O ensinamento de Paulo se opõe frontalmente a uma dicotomia do homem e a um espiritualismo que rebaixa ou desdenha o corpo. O homem inteiro, com seu corpo, pertence à esfera da salvação: por ele morreu corporalmente Jesus, “o Senhor é para o corpo”, e o corpo deve compartilhar da glória do Ressuscitado, “o corpo é para o Senhor”. A sexualidade é parte importante do corpo (insinuado na criação do “homem e mulher”, Gn 1) e acende também à esfera da salvação.

Porventura ignorais que vossos corpos são membros de Cristo? (v. 15a)

A vida sexual afeta a pertença a Cristo e deve ser compatível com a dignidade de membro de Cristo (vv. 15-17; cf. Ef 5,21-33).  A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2212) comenta: A vida sexual empenha o corpo, isto é, a pessoa inteira, presente a outrem por seu corpo (cf. Rm 12,1 …). Como tal, a pessoa compartilha a situação do Cristo ressuscitado e a sua vida sexual deve ser a quem convém (v. 12) a um membro de Cristo.

Quem adere ao Senhor torna-se com ele um só espírito (v. 17).

Seria de esperar: “um só corpo” (cf. 12,13.27). Todavia Paulo quer evitar que o realismo da união com Cristo (v. 15) seja entendido de modo grosseiro.

Nos vv. 15b-16 (omitidos pela nossa liturgia), Paulo opõe a união carnal com uma prostituta (citando Gn 2,24: “tornado-se uma só carne”) à união com Cristo no Espírito (v. 17). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2212) comenta: Com uma prostituta, a união é corporal: por isso Paulo diz “um só corpo (com)…” Com Cristo, a união espiritual, e é por isso que diz “um só espírito (com)…”. Quando cita o Gênesis, escreve “uma só carne” … Estas três expressões mostram claramente que a ênfase não está nos determinativos (corpo, carne, espírito), mas no fato de “ser um com”.

O argumento supõe, por oposição, que a união conjugal dos cristãos, o sacramento do matrimônio deve engaja-los na união com Cristo (1Ts 4,4; Ef 5,21-33).

Fugi da imoralidade. Em geral, qualquer pecado que uma pessoa venha a cometer fica fora do seu corpo. Mas o fornicador peca contra o seu próprio corpo (v. 18).

A imoralidade está em contradição com o destino do corpo do cristão, membro do Cristo. A Bíblia de Jerusalém (p. 2155) comenta: Trata-se de antítese comparativa familiar ao gênio literário semita (cf. Mt 12,31; Lc 14,26; Rm 9,13). O debochado sexual peca mais contra o seu corpo do que aquele que comete outro pecado, mais espiritual: ele desvia o corpo de sua vocação própria, que é a de entrar em relação com outra vida que não a sua.

Ou ignorais que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que mora em vós e que vos é dado por Deus? E, portanto, ignorais também que vós não pertenceis a vós mesmos? De fato, fostes comprados, e por preço muito alto. Então, glorificai a Deus com o vosso corpo (vv. 19-20).

“Ou ignorais” (vv. 15.16.19). A Nova Bíblia Pastoral (p. 1393) comenta: Repetindo essa interrogação, Paulo argumenta que nossos corpos são membros de Cristo (v. 15), que formam um só espirito com o Senhor (v. 17) e que são templo do Espirito Santo e propriedade de Deus (v. 19; 3,16-17). A partir destes princípios teológicos de visão positiva sobre a beleza do corpo, ele tira conclusões sobre as várias formas de respeito ao corpo humano.

Em 3,16s, Paulo disse sobre a comunidade: “Ou ignorais que o templo de Deus sois vós e o Espírito de Deus habita em vós?” Agora também o corpo do indivíduo cristão é templo de Deus: “santuário do Espírito Santo”. No cap. 12, Paulo entende a comunidade da Igreja como corpo (de Cristo) com muitos membros, e o mesmo Espírito Santo anima cada um (nos diferentes carismas).

O templo da Nova Aliança é o “Corpo de Cristo” (cf. Mc 14,58p; Jo 2,21) que brilha como glória na Jerusalém celeste (Ap 21,22s); na terra alimenta os fiéis (1Cor 11,23-26; Mc 14,22p; Jo 6) tornando-os membros do mesmo corpo, fazendo da comunidade o novo templo, lugar da presença de Deus (Mt 18,20).

A Bíblia do Peregrino (p. 2746) comenta: O corpo de cristão (não só a comunidade) é templo visível do Espírito que Deus comunica. Por isso, o uso do corpo é submetido a regras superiores. No templo se celebra a liturgia proclamando a glória de Deus, o corpo do cristão, como templo do Espírito, dará glória a Deus.

“Vós não pertenceis a vós mesmos… fostes comprados, e por preço muito alto”. Na comunidade cristã de Corinto, como em todo Império Romano havia muitos escravos (cf. 1,26). Um escravo precisa ser resgatado por um preço que é aqui o “Sangue de Cristo”. Ele nos libertou, pagando o preço do seu próprio sangue (7,23; Rm 3,24; 6,17…). A adesão (pertença) a Cristo no batismo nos faz filhos de Deus através do Espírito (Rm 8,15). Agora pertencemos a Ele, como antigamente Deus libertou o povo de Israel da escravidão e o tornou sua propriedade particular (Ex 19,4-6; Dt 7,6; cf. Is 43,24). Antes o sangue do cordeiro pascal resgatava os israelitas (Ex 12), agora é o sangue de Cristo, “Cordeiro de Deus” (cf. evangelho de hoje) que nos salva.

 

Evangelho: Jo 1,35-42

No Ano B, se lê o evangelho de Mc. Este evangelho mais antigo, porém, é o mais curto (apenas 16 caps.). Portanto, as vezes completa-se com o evangelho mais novo, o de Jo, que não tem um ano próprio na Liturgia, mas é lido mais nos Tempos especiais da Quaresma e da Páscoa.

O início do evangelho de hoje, ”no dia seguinte” foi mudado para “naquele tempo”. Este costume litúrgico desfez o esquema de uma semana, que o evangelista construiu com anotações cronológicas de uma semana que se conclui no casamento de Canã (cf. vv. 29.35.42; 2,1). Começa outro dia na atividade do Batista.

(Naquele tempo) João estava de novo com dois de seus discípulos e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!” Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus (vv. 35-37).

Generosamente João cede a Jesus dois de seus discípulos. Com uma só frase os incita a segui-lo (cf. Mc 1,16-20p). Embora o pareça, a “passagem” de Jesus não é casual (cf. 6,48; Ex 33,19; 34,9). O seu momento tem uma força de atração, quer ir à frente e ser seguido, mas aqui não é o próprio Jesus que chama. Outras pessoas conduzem para ele. O movimento iniciado pelo Batista continua até hoje: conduzir outras pessoas a Jesus.

No quarto evangelho, os discípulos não são chamados durante trabalhos cotidianos (cf. Mc 1,16-20p; 2,14s; Lc 5,1-11), mas como discípulos previamente instruídos e preparados tanto que basta uma frase para entender. “Eis o cordeiro de Deus”. Quando João tinha visto Jesus se aproximar, já falou a frase mais completa: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (v. 29; cf. 1Jo 3,5).

O quarto evangelho não narrou o batismo de Jesus diretamente como os sinóticos (Mc, Mt, Lc), mas através do testemunho de um terceiro: Só João Batista viu o Espírito e ouviu a voz (vv. 33-34; dif. Mc 1,10: só Jesus o viu) e já antecipou a interpretação da missão do messias. Enquanto no evangelho mais velho, em Mc, a identidade messiânica e a morte de Jesus na cruz estão cercadas de segredos, no evangelho mais novo, em Jo, a primeira palavra sobre Jesus (fora do hino: vv. 1-18 não falam da morte, só da carne em v. 14) é sobre sua missão redentora: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (v. 29).

A frase evoca a morte expiatória de Jesus misturando várias imagens tradicionais: por um lado, a do “servo sofredor” de Javé que assume os pecados da multidão (do mundo) e que, inocente, se oferece “como cordeiro” para carregar os pecados do povo (Is 53,7.11), e por outro lado, a do “cordeiro pascal”, símbolo de libertação do povo hebreu (Ex 12,1-28). Será título emblemático de Jesus (cf. 1Cor 5,7; 1Pd 1,18s; Ap 5,6-12). No evangelho de João, Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, sacrificado na cruz na exata hora quando os sacerdotes imolavam milhares de cordeiros no templo para refeição pascal (cf. 19,14.34.36). Aliás, na língua aramaica, “servo” e “cordeiro” parecem ser a mesma palavra. Pode-se pensar ainda no bode que tira os pecados do povo no dia da expiação (Yom kippur; Lv 16,20-22).

Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo, Jesus perguntou: “O que estais procurando?” (v. 38a)

São as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho (que o apresentou como da Palavra de Deus feita carne em 1,14), e nos convidam (como Sócrates) a examinar nossos motivos e pensamentos, a nossa vida. Os dois discípulos seguem, mas Jesus faz uma pergunta exigindo que se examinem a sério, que tomem consciência e o declarem sem dissimulação. Devemo-nos perguntar também se temos clareza sobre o que estamos procurando na vida e na Igreja, o que queremos ao final, qual o rumo e sentido da nossa vida?

Johan Konings (na Vida Pastoral 2018) comenta: Nos outros evangelhos, Jesus se apresenta anunciando a irrupção do reino de Deus. Em João, ele é a reposta de Deus à busca do ser humano, assim como o Antigo Testamento diz que a Sabedoria se deixa encontrar pelos que a buscam (cf. Sb 6,14). Devemos buscar o encontro com Deus no momento oportuno, enquanto se deixa encontrar (Is 55,6).

Eles disseram: “Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras?” (v. 38b).

Eles chamam Jesus logo de mestre: “Rabi”. Sem dúvida, João escreve a leitores da língua grega, mas usa uns termos hebraicos ou aramaicos (cf. 19,17; 20,16), traduzindo-os (cf. 1,38.41.42). Provavelmente quer demonstrar com isso que a palavra de Deus se encarnou (1,14) num determinado momento da história em determinado lugar, cultura e língua.

A pergunta, “onde moras”, significa superficialmente “onde te alojas”, mas no nível mais profundo investiga o mistério da morada transcendente de Jesus. Na verdade, sua morada, está no céu ao lado do Pai, a origem de onde ele saiu e para onde ele voltará (cf. 1,1-18; 3,13; 13,1.33; 14,2-3; 17,8.24).

Jesus respondeu: “Vinde ver”. Foram, pois, ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde (v. 39).

Jesus convida para “ver” (vv. 39.46). Desde o início quer torná-los testemunhas oculares (cf. 1,14; 12,21; 20,27; 1Jo 1,1-3; 3,2; 4,14). Em Jo, “ver o Filho” é discernir que ele é realmente o Filho enviado do Pai (cf. 6,40; 12,12,21.45; 14,9; 17,6).

Na sua primeira encíclica, Papa Francisco (continuando o esboço de Bento XVI), escreveu sobre “a fé como ouvir e ver” (Lumen Fidei 29-31): A fé vem da palavra ouvida (cf. Rm 10,17). Os discípulos “ouviram as palavras” do Batista (Jo 1,37) e “seguiram Jesus”. Mas a fé na palavra de Deus fomenta o desejo de “ver” seu rosto (cf. Hb 11,1; Ex 33,18-23; Jo 14,8s; 1Jo 3,2; Mt 5,8; 1Cor 13,12). Em Jo, a fé é uma síntese de ver e ouvir (cf. 11,40.45; 12,44s; 20,8.14;18). “O discípulo amado viu e acreditou” (20,8). É a encarnação que possibilita esta fé (1,14), não só ouvindo a Palavra, mas também vendo e até tocando o encarnado e ressuscitado (cf. Lc 8,45s; Jo 20,24-29; 1Jo 1).

Eles ”permaneceram”; no quarto evangelho esta palavra é frequente e indica a preocupação do evangelista diante da crise na comunidade e atual ainda hoje. Muitos foram batizados e crismados, mas “não permaneceram” na comunidade (cf. Jo 8,31; 15,4-7.9-10.16; 1Jo 2,19; 2Jo 9). Em vv. 32-33, o testemunho de João salienta, que  “Filho de Deus” é aquele sobre quem o Espírito “descer e permanecer” (vv. 32-33).

“Era por volta dos quatro da tarde” (lit. “da décima hora” no horário romano); esse pormenor confere um testemunho pessoal: o primeiro encontro com uma pessoa importante e amada é sempre inesquecível.  Pode ser também uma alusão à páscoa (“passagem”) de Jesus, sua passagem da morte na cruz (às três da tarde, na nona hora em que o “Cordeiro” morre) voltando para o Pai (cf. Ex 12,11c.12a; Jo 13,1; 19,14.31.42; Mc 15,33p).

Em Lc 24,29, dois discípulos pediram Jesus: “Permanecei conosco, pois cai a tarde e o dia já declina”. Como aqui em Jo 1,39 fala “nesse dia, permaneceram com ele”, pode-se ser que o evangelista tenha pensado ainda na ceia no início da noite, mas ele não introduz o próximo v. 40 com “no dia seguinte” (só em vv. 29.35.43; cf. o “terceiro dia” em 2,1).

André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus (v. 40).

Só agora o autor identifica os seguidores: André (cf. 6,8s; 12,22) e outro discípulo sem nome, que pode ser o próprio João, ou seja, o “discípulo amado” (cf. 13,23-25; 18,15; 19,25s; 20,2-8; 21,7.20-24) que permanece anônimo. A ele se atribui a autoria do evangelho e das cartas de João (cf. o comentário do dia 27 de dezembro).

Ele foi encontrar primeiro seu irmão Simão e lhe disse: “Encontramos o Messias (que quer dizer: Cristo)”. Então André conduziu Simão a Jesus. Jesus olhou bem para ele e disse: ”Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas (que quer dizer: pedra)” (vv. 41-42).

Terminado o primeiro encontro, André já sente necessidade de anunciar sua descoberta, chama seu irmão Simão e professa sua fé: “Encontramos o messias que quer dizer Cristo” (v. 41; cf. Mc 8,29p).

Jesus tem conhecimento sobrenatural das pessoas (cf. v. 48; 2,24s etc.), no primeiro encontro já reconhece Simão e lhe impõe o novo nome da nova função: ser a rocha da Igreja (v. 42; Mt 16,18). Em aramaico (cefas) e em grego (petros): Pedro e pedra é a mesma palavra.

Vale ressaltar que no quarto evangelho, Simão Pedro não é o primeiro a chegar (cf. 20,3-8) nem o primeiro a ser chamado nem o primeiro a professar a fé (fará só em 6,68s; cf. também Marta em 11,25). Ele só chega na última hora deste dia, mas “os últimos serão os primeiros” (cf. Mt 20,6.16; Jo 21).

Começou um processo vocacional em cadeia: encontrar, experimentar, partilhar, testemunhar, conduzir até Jesus. João Batista falou sobre Jesus aos dois discípulos e estes chamam depois outros, e outros, e outros (depois Filipe e Natanael, cf. vv. 43-51). Geralmente fomos conduzidos ao encontro com Jesus pelas palavras e exemplos de outras pessoas. Agora nós devemos falar e chamar mais outras pessoas para conhecer o messias.

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