14 de Janeiro de 2021, Quinta-feira: Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”.

1ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Hb 3,7-14

O autor anônimo desta carta (sermão) declarou Jesus “sumo sacerdote” (2,17; 3,1) e superior ao servo fiel Moisés (vv. 2-6) “na qualidade de Filho”. Depois começa mostrar as consequências que a posição de Cristo glorificado traz para nós. Os cristãos desanimados (cf. vv. 12-14) devem acolher sua Palavra (voz) com fé porque nos introduz no “repouso” de Deus. Para isso se baseia no Sl 95 que permite continuar o paralelo entre Cristo e Moisés, à medida que evoca acontecimentos do êxodo (“saída” da escravidão do Egito e caminhada na deserto “durante quarenta anos”, rumo a terra prometida).

Escutai o que declara o Espírito Santo: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações, como aconteceu na provocação, no dia da tentação, no deserto, onde vossos pais me tentaram, colocando-me à prova, embora vissem as minhas obras, durante quarenta anos. Por isso me irritei com essa geração e afirmei: sempre se enganam no coração e desconhecem os meus caminhos. Assim jurei em minha ira: não entrarão no meu repouso” (vv. 7-11).

O autor da carta quer fortalecer a fé da comunidade cristã e de cada pessoa e cita Sl 95,7c-11. A Bíblia transmitida pelos judeus, o Antigo Testamento (AT) é do “Espírito Santo” (v. 7). A palavra (“sua voz”) de Deus vale naquela época e também “hoje” (vv. 7.13; 4,7; cf. o significado de “hoje” no Ev de Lc). O salmo 95 fala do perigo e da ameaça de perder a fé: Todas as ações de Deus ainda não são garantia que os homens fiquem fieis a Deus “… embora vissem as minhas obras”.

Depois de os israelitas se alimentarem do maná que Deus dava por 40 anos no deserto do Sinai (cf. Ex 16), perderam de novo a coragem. Tinham medo de morrer de sede até que Moises tocasse com a vara na rocha e a água saísse (Ex 17,1-7; Nm 20,1-13), mas o autor de Hb cita a tradução grega onde desapareceram os nomes Massa e Meriba neste episódio. Por isso, a alusão se refere ao que aconteceu com os israelitas antes de serem condenados a 40 anos de caminhada. Chegando perto à Terra prometida, enviaram uma missão de reconhecimento (Nm 13), mas com seu relato perderam a fé e a coragem pelas dificuldades da empresa: “É gente mais numerosa e mais alta do que nós; são cidades grandes e fortificadas que tocam ao céu”. Se tivessem continuado confiando na palavra (promessa) de Deus, teriam alcançado o “repouso” entrado na terra prometida. Mas sem confiança em Deus, foram condenados a errar no deserto até a morte para que, depois de 40 anos, outra geração entrasse (Nm 13,32-33; cf. Dt 1,21.28).

Agora os destinatários cristãos de Hb encontram-se na mesma alternativa: O reino de Deus está diante deles, ao alcance da mão, com sua paz, sua alegria, suas bem-aventuranças. Ouviram a voz de Cristo: “O reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15p; cf. Hb 4,2). Ou ter fé e entrar (cf. 4,3) ou recusar-se e ficar fora excluído. A sorte dos israelitas condenados a errar pelo deserto constitui uma advertência para os cristãos.

Cuidai, irmãos, que não se ache em algum de vós um coração transviado pela incredulidade, levando-o a afastar-se do Deus vivo. Antes, animai-vos uns aos outros, dia após dia, enquanto ainda se disser “hoje”, para que nenhum de vós se endureça pela sedução do pecado – pois tornamo-nos companheiros de Cristo, contanto que mantenhamos firme até ao fim a nossa confiança inicial (vv. 12-13).

O salmo diz também que Deus é juiz e que tem consequência a maneira como vivemos. Na comunidade, nos apoiamos e acompanhamos mutuamente na fé e nos protegemos de desvios: “Cuidai, irmãos, que não se acha em algum de vós um coração transviado pela incredulidade… animai-vos uns aos outros” (vv. 12-13). Fé quer dizer assegurar a confiança em Deus: “tornamo-nos companheiros de Cristo, contanto que mantenhamos firme até ao fim a nossa confiança inicial” (v. 14).

Percebe-se a situação dos destinatários deste sermão (“exortação” 13,22): Já têm uma caminhada de fé, são “companheiros” (partilham o pão) de Cristo, mas as dificuldades, o desânimo, a incredulidade os “afastam do Deus vivo”. É preciso reforçar a fé comunitária, a responsabilidade mútua (“uns aos outros”), correção e amor fraternos (cf. Cl 3; Mt 18).

A aliança no deserto sempre foi uma referência para os judeus: aí se concentra a lei e a autoridade (Moisés), o sacrifício e o culto (Aarão como primeiro sumo sacerdote). Porque, em Hb 3, o autor preferiu comparar Cristo como Moisés e não com o sumo sacerdote Aarão? O autor não desmembra a palavra de Deus do culto sacerdotal. Neste trecho, Moisés aparece mais representativo do que seu irmão. O filósofo judeu Filon atribuiu a Moisés também o sumo sacerdócio. O AT não conhece nenhum mediador da palavra que seja superior a Moisés (cf. Nm 12,1-8 citado por Hb 3,1-6). Desta maneira, os sacerdotes dependem de Moisés, segundo Dt 31,9 foi ele quem lhes confiou os preceitos divinos, com a tarefa de transmiti-los ao povo (cf. a benção aarônica em Nm 6,22-27 com Moisés de intermediário).

Evangelho: Mc 1,40-45

Ontem ouvimos como Jesus curou muitos doentes em Cafarnaum, mas se afastou da cidade para pregar também em outras aldeias da região da Galileia. O papa Francisco chama isso de “Igreja em saída”, indo para as “periferias geográficas e essenciais” (cf. EG). No caminho, Jesus encontrou um leproso.

Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica curado!” (vv. 40-41).

Um leproso veio perto e “de joelhos, pediu” a Jesus (cf. 10,17). O pedido é como uma prece: apela à vontade de Jesus (“se queres”) revelando fé (“tens o poder”).

Alguns manuscritos de Mc têm uma versão diferente da maioria das Bíblias que traduz como aqui no texto litúrgico “Jesus, cheio de compaixão” (v. 41). A versão diferente (traduzida na Bíblia Pastoral) é: “Jesus, cheio de ira”. Muitos peritos da Bíblia dizem que esta versão da “ira” pode ser a mais original, porque é menos comum. É portanto mais original apresentar Jesus com “raiva”, em vez da “compaixão” dele que os leitores cristãos já conhecem e esperam. A compaixão de Jesus se refere à miséria humana (6,34; 8,2; 9,22), sua ira ao mal (3,5). Ambos os sentimentos mexem com nossas entranhas e deixam um desconforto querendo mudar a situação para o melhor. A palavra hebraica “compaixão, misericórdia” (rahamim) vem de “útero”; a raiva se faz sentir também nas vísceras. Ira ou comoção expressam também o poder milagroso (7,34; Jo 11,33.38).

Mt e Lc copiaram Mc, mas não escreveram “compaixão”; omitiram aqui qualquer sentimento (Jesus apenas “estende a mão …”, cf. Mt 8,3; Lc 5,13), provavelmente porque liam em Mc “ira” e não a acharam oportuno.

Os rabinos consideravam a lepra como castigo de Deus; o leproso devia ficar à distância para não contagiar outros com esta desgraça. Jesus podia ter raiva, porque o “leproso chegou perto” dele. Mas Jesus ficou com ira não do leproso, sim dos poderes malignos e omissos que levaram o homem à esta situação de abandono e exclusão total (cf. 3,5; Lv 13-14). Conhecemos a mesma mistura de sentimentos quando se aproxima um mendigo ou outra pessoa doente e marginalizada, abandonada por familiares ou entidades governamentais.

Jesus reage à profissão de fé do leproso e não tem medo de tocar nele. Jesus “estendeu a mão” (cf. Moisés em Ex 4,4; 7,19; 8,1; 9,22s; 14,16.26s) e “tocou nele” (cf. os doentes que tocam em Jesus em Mc 3,10; 5,27-31; 6,56; 8,22)

Hoje a lepra é chamada “hanseníase” segundo o médico Hansen que descobriu sua causa e cura em 1837. Ela se transmite via gotículas da respiração ou saliva, mas não pelo toque da pele. Naquela época, porém, era a doença mais temida e incurável. Os sacerdotes deviam examinar e excluir o doente de qualquer convívio social, se a lepra fosse confirmada (Lv 13-14). Os leprosos deviam nem chegar perto (em Lc 17,12 “pararam a distância”), mas alertar os passantes gritando “impuro, impuro” para evitar contaminação (Lv 13,45).

No mesmo instante a lepra desapareceu e ele ficou curado. Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: “Não contes nada disso a ninguém! Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles!” Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato. Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo (vv. 42-45).

Sem mais palavras ou outros gestos (cf. Moisés implorando Deus em Nm 12,14-16; Eliseu aconselhando um mergulho m Jordão), a cura acontece.

Depois de curar o homem da doença, Jesus restaura também a dignidade dele mandando-o para o sacerdote (Lv 13,49: “deve se mostra ao sacerdote”) que deve declarar a cura e revogar a exclusão do convívio (cf. Lv 13-14). Como era prescrito um sacrifício para purificação, o lugar deste só pode ser no templo em Jerusalém.

“O que Moisés ordenou”; os judeu-cristãos antes da destruição do templo (70 d.C.) se perguntaram, como se comportar diante da Lei; a resposta era cumprir, mas relativizar. Não foi Deus quem ordenou, mas Moisés que só é mencionado em Mc nos debates com mestres da Lei (cf. 7,10; 10,3s; 12,19.26).

“Como prova (lit. testemunho) para eles” (cf. Pr 29,14; Os 2,14; Mq 1,2; 7,18) pode ser entendido de modo positivo (os judeus podem ver que a comunidade cristã segue a lei) ou negativo (no contexto maior de Mc, cf. 6,11; 13,9)

A ordem de calar sobre o milagre pode fazer parte do gênero, mas é típico no Evangelho de Mc (cf. 1,25.34;  3,12; 5,43; 7,35; 8,26.30; 9,9). Jesus quer manter seu segredo de messias, mas não adianta. O homem não consegue ficar calado. Quanto mais Jesus proíbe de falar, mais as pessoas começam a “divulgar muito o fato” (cf. 7,36). O milagre é grande, um leproso era visto como um morto vivo (Nm 12,12), sua cura como ressuscitar um morto que mostra Jesus como “homem divino” (cf. 2Rs 5,7.15), portanto, aquele que era excluído dos homens torna-se arauto de Jesus.

Agora acontece uma permuta de lugares, sinal de que Jesus não apenas cura, mas assume o sofrimento humano (como na profecia em Is 53). O messias Jesus se coloca no lugar do marginalizado, ele “não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora”, enquanto o leproso marginalizado volta para o convívio social da cidade, onde é “prova” da cura e testemunho vivo contra um sistema que não cura, mas só declara quem pode e quem não pode participar da vida social.

Esta cura marca o primeiro ponto alto da atividade pública de Jesus em Mc. Sua fama se espalha, levada pelo homem libertado da lepra. Ainda mostra Jesus sem conflito com a Lei (que começa em seguida com as controvérsias dos caps. 2-3).

O site da CNBB resume: Uma das promessas que sempre estão presentes nas profecias do Antigo Testamento a respeito dos tempos messiânicos é a cura da lepra. Isso acontece porque a lepra era uma das doenças mais temidas entre as pessoas, principalmente porque uma das suas consequências era a exclusão social e religiosa. Ao curar uma pessoa da lepra, Jesus não apenas o livra da doença em si que a faz sofrer como também a reintegra na vida social e religiosa. Por isso entendemos a alegria do homem que foi curado, que fez com que ele não fosse capaz de guardar o fato só para si, mas passou a divulgá-lo de tal modo que Jesus não podia mais aparecer em público.

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