14 de Julho de 2017 – Sexta-Feira, 14° Semana

Leitura: Gn 46,1-7.28-30

Na leitura de hoje, ouvimos da descida da família de Jacó-Israel a Egito. Pela novela de José, o autor prepara o grande relato do êxodo (lit. “saída”; no próximo livro de Ex) de um povo numeroso que será libertado da escravidão no Egito. A trajetória de José lembra o profeta Jeremias que foi jogado numa cisterna e levado ao Egito contra sua vontade (Gn 37; cf. Jr 11,21; 38; 43). Sem dúvida, a novela inspirou a narrativa de Mateus sobre a infância de Jesus com os sonhos de José que o guiam para aceitar Maria e salvar a sagrada família fugindo ao Egito (Mt 1-2).

Na novela de José, a providência sabe transformar em bem o malquerer dos homens. No Egito, não somente José é salvo, mas o crime de seus irmãos torna-se instrumento do designo de Deus: a vinda dos filhos de Jacó ao Egito prepara o nascimento do povo eleito. Numerosos traços da novela testemunham certo conhecimento das coisas e dos costumes do antigo Egito tais como os documentos egípcios no-lo revelam; mas os paralelos que podem ser datados se referem à época em que essas tradições foram redigidas e não a da descida da família de Jacó ao Egito, que se pode situar aproximadamente por volta do século XVII a.C. na época dos hicsos que trouxeram cavalos e carroças ao Egito e governaram na época entre o Médio Império e o Novo Império.

Israel partiu com tudo o que tinha. Ao chegar a Bersabeia, ofereceu sacrifícios ao Deus de seu pai Isaac. Deus falou a Israel em visão noturna, dizendo-lhe: “Jacó! Jacó!”. Ele respondeu: “Aqui estou!” E Deus lhe falou: “Eu sou Deus, o Deus de teu pai: não tenhas medo de descer ao Egito, pois lá farei de ti uma grande nação. Eu mesmo descerei contigo ao Egito e te reconduzirei de lá quando voltares; e é José que te fechará os olhos” (vv. 1-4).

“Israel” é o segundo nome de Jacó (dado por Deus em 32,29; 35,10). Antes de abandonar o território de Canaã, Jacó tem uma “visão noturna”. Nestes versículos se mesclam e se fundem os dois nomes, Jacó e Israel, também duas tradições estão harmonizadas neste trecho: a tradição sulista que usa o nome Javé faz “Israel” partir com todos os seus bens de Hebron (onde o tinha deixado em 37,14) para Gessen (vv. 28-29) que fica perto de Bersabeia, de onde a tradição nortista faz “Jacó” sair, após uma visão noturna (v. 2; o hebraico traz o plural “visões”).

Em Bersabeia, o lugar onde o ancestral Isaac era venerado (21,33; 22,19; 26,23.33), acontece a última teofania da época patriarcal. É mais uma audição do que uma visão, porque Jacó só ouve Deus ordenando que desça ao Egito (já na perspectiva do Êxodo, v. 4) como ordenou a Abraão que partisse para Canaã (12,1). É clara a intenção do autor de ir marcando o itinerário do patriarca com manifestações e comunicações divinas (28,10-22; 31,11-13; 32,26-33; 35,9-15). A descida ao Egito é uma nova e decisiva peregrinação. Abandonar o país de Canaã só é possível com a anuência de Deus (a Isaac, ainda era proibido descer ao Egito, cf. 26,2-5; Abraão desceu por causa de uma seca, mas voltou; cf. 12,10-20).

“Eu sou o Deus, o Deus de teu pai” (v. 3), lit. “Eu sou El, o Deus (hebr. Elohim) de seu pai”; não se aplica a Isaac (cf. 26,23; 28,13; 31,5; 32,10 etc.), mas apresenta El, a divindade principal de Canaã, como o Deus do êxodo (cf. Nm 23,22; 24,8; cf. Nm 24,4.16; Ex 6,3; Gn 17,1).

O deus dos patriarcas é o deus dos pais, não revela seu nome ainda (cf. 32,30), só depois a Moisés (Ex 3,13-14). (v. 15; cf. 26,24). O Deus dos patriarcas não está limitado a um lugar ou certo santuário, mas está ligado às pessoas, acompanhando os nômades até para outros países. Jacó já experimentou que o Deus dos seus antepassados o acompanha.

Esta afirmação torna-se se comum em histórias de vocação ou envios de missão (cf. 28,15; Ex 3,12; Jz 6,12; Is 7,14; 41,10; Jr 1, 8; Mt 28,19-20; Rm 8,31). “Não tenhas medo … Eu mesmo descerei contigo ao Egito e te reconduzirei de lá…” (vv. 3-4; cf. 28,15). O termo reconduzir (lit. fazer subir) será empregado para o enterro de Jacó em terra de Canaã (50,5-7), mas aqui se pensa já na conquista de Canaã depois do êxodo, a subida do Egito (Ex 3,8). Não só para os ancestrais nômades, mas também para os desterrados no exílio é importante que Deus os acompanhe no exterior e reconduza a sua pátria.

“Lá farei de ti uma grande nação” (v. 3). Uma promessa semelhante e mais ampla foi dada a Abraão (12,2) e a Ismael (21,18), será proposta a Moisés que a recusa (Ex 32,10; Nm 14,12). A promessa de crescer até converter-se em povo numeroso se cumprirá no Egito (Ex 1,5.7)

Jacó levantou-se e deixou Bersabeia, e seus filhos o puseram, com as crianças e as mulheres, sobre os carros que o Faraó enviara para os transportar. Levaram, também, tudo o que possuíam na terra de Canaã; e foram para o Egito, Jacó com toda a sua família, com seus filhos e netos, suas filhas e toda a sua descendência (vv. 5-7).

Um resumo da tradição sacerdotal reúne as duas tradições anteriores: a do transporte familiar com carroça e a da migração com todo o rebanho; insiste na unidade da família e apresenta em seguida uma lista extensa de todos os setenta integrantes (vv. 8-27 omitida pela nossa liturgia).

Jacó enviou Judá na frente para avisar José e fazê-lo vir ao seu encontro em Gessen. E chegaram à terra de Gessen. José mandou atrelar seu carro e subiu a Gessen ao encontrou do pai. Logo que o viu, lançou-se ao seu pescoço e, abraçado a ele, chorou longamente. Israel disse a José: “Agora, morrerei contente, porque vi a tua face e te deixo com vida” (vv. 28-30).

O encontro do pai com o filho em Gessen, depois de tudo o que precede, era para o narrador uma cena difícil de contar. A solução adotada é a economia: um movimento, um gesto, uma frase. Judá vai à frente para avisar a chegada do pai idoso (v. 28; Judá tem um papel protetor na tradição sulista, cf. 37,26-27; 43,9; 44,18-34). José sai ao encontro do pai cortesmente, filialmente; o carro serve para ganhar tempo e mostrar sua categoria política. O gesto, um abraço com choro (cf. 42,24; 43,30; 45,2) anula um detalhe dos sonhos de José (o pai não se prostra diante dele como foi sonhado em 37, 10). A frase dá lugar ao protagonismo pleno do filho, a vida do filho dá serenidade à retirada do pai (cf. Ecl 1,4): “Agora morrerei contente, porque vi a tua face e te deixo com vida” (v. 30: cf. Simeão em Lc 2,29-32). Mas não morrerá logo, porque lhe resta ainda a tarefa de abençoar (Gn 48).

Na sequência toda se mostra que a redação final combinou duas tradições patriarcais, ligando as ao livro do êxodo: em 47,1-6 os migrantes israelitas se estabelecem na região de Gessen; mas em 47,7-12, vão morar em Ramsés (cf. Ex 1,11).

 

Evangelho: Mt 10,16-23

Continuamos ouvindo o segundo grande discurso de Jesus em Mt, pronunciando orientações para a missão dos discípulos. Num estilo de vida simples e despojado, eles devem atuar como o mestre, curando as pessoas e anunciando a mensagem do reino nas casas e cidades de Israel (vv. 5-13); nem sempre serão bem acolhidos (vv. 14-15), mas enfrentarão perseguições (vv. 16-39).

Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas (v. 16).

Em 9,37-38, Jesus já falava sobre Israel como “ovelhas que não tem pastor”; em 10,6 enviou os apóstolos às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (somente ressuscitado os envia a todos os povos em 28,19). Na época, Israel tinha pastores, sacerdotes e mestres da lei, mas estes não cuidavam do povo, ao contrário, o exploravam e dispersavam (cf. Ex 34). Por compaixão (9,36), Jesus toma conta do rebanho (cf. Ex 34) e prepara futuros pastores: os apóstolos e discípulos missionários que enfrentarão a fúria de velhos pastores ou profetas falsos (cf. 7,15: lobos em pele de ovelha).

“Eu vos envio como cordeiros no meio de lobos” (v. 16a; cf. Lc 10,3). Estranha conduta do bom pastor (cf. Sl 23; Jo 10), mas ele precisa prepará-los para a realidade inevitável de hostilidades futuras (e presentes na época do evangelista; cf. Paulo em 1Cor 15,31; 2Cor 4,10s). Como cordeiro no meio de lobos, assim os judeus descreviam a diáspora, sua situação de dispersão no meio das nações. Agora os discípulos enfrentam uma situação semelhante no meio de Israel. Atuando como cordeiros, não devem usar de violência (cf. 5,38-48; 10,10-12).

Uma equação de quatro animais simboliza seu destino: cordeiros e lobos, não pacificados (Is 11,6; 65,25; Jr 5,6); a serpente cauta e sinuosa (Gn 3,1) e a pomba que voa em linha reta (Is 60,8), símbolo de sinceridade, indefesa e pura. Pela maldade humana, o contexto de vida dos discípulos exige reflexão prolongada (a prudência como a serpente) e confiança no amor de Deus (a simplicidade das pombas). “Eu vos envio” indica a presença eficaz do Senhor.

Mt pegou a frase dos cordeiros no meio dos lobos da fonte comum com Lc, Q (cf. Lc 10,2-3) e o conteúdo seguinte antecipa parte do discurso de Mc 13,9-13 (cf. Lc 21,12-19; Mt o repete depois em 24,9-14). Os ensinamentos dos vv. 17-39 ultrapassam evidentemente o horizonte dessa primeira missão dos doze e devem ter sido pronunciados mais tarde (cf. o lugar que ocupam em Mc e Lc). Mt os reuniu aqui a fim de compor um breviário completo do missionário.

Cuidado com os homens, porque eles vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas. Vós sereis levados diante de governadores e reis, por minha causa, para dar testemunho diante deles e das nações. Quando vos entregarem, não fiqueis preocupados como falar ou o que dizer. Então naquele momento vos será indicado o que deveis dizer. Com efeito, não sereis vós que havereis de falar, mas sim o Espírito do vosso Pai é que falará através de vós (vv. 17-20).

As perseguições serão internas (“sinagogas”) e externas (“reis”). Os “tribunais” são os pequenos sinédrios de província e o grande sinédrio de Jerusalém (cf. 5,21-22). Os açoites são 39 golpes, executados pelo servo da sinagoga como pena por grave violação da lei (cf. 23,34; 2Cor 11,24). A palavra “entregarão” lembra os leitores da paixão de Cristo que foi entregue ao sinédrio, acoitado e levado ao governador Pilatos. “Vós sereis levados diante de governadores e reis por minha causa, para dar testemunho diante deles e das nações” (v. 18; a frase será repetida, quando Mt fala da perseguição pelos pagãos em 24,9-14).

Em Israel (vv. 5-6), como depois diante dos pagãos, os discípulos comparecerão como acusados (v. 18), mas atuarão como testemunhas (cf. Jeremias em Jr 26; Pedro em At 4,1-22; 5,17-42; Paulo em At 23,11; 25,13-26,32). Por isso seu testemunho se compara à palavra profética (cf. 5,11s) inspirada pelo Espírito; daí a veneração primitiva aos mártires e a conservação devota das atas de martírio. A palavra grega traduzida por “testemunho” toma nas gerações seguintes o sentido de “martírio”. O Apocalipse chama Jesus de “testemunha fiel” e a sua mensagem de “testemunho” (Ap 1,2-5).

Nos processos da época não havia advogados, mas peritos jurídicos que aconselhavam o réu. Jesus promete sua assistência (cf. Jo 14,18-21; 15,26). O Espírito “do vosso Pai” sublinha o amor divino. Mt fala pouco do Espírito (geralmente relacionado a Jesus, cf .1,18.20; 3,16; 4,1; 12,18.28). Só aqui, nesta situação o específica e na fórmula batismal fala do dom do Espírito aos fiéis(28,19; cf. 3,11). Mt prefere mais destacar a presença de Jesus no meio da comunidade (18,20; 28,20).

Mesmo “diante dos tribunais”, os discípulos triunfarão através do testemunho (martírio). Nas situações mais complicadas, contamos sempre com a ajuda do Senhor. O Espírito Santo é mais importante do que os nossos recursos e motivações.

O irmão entregará à morte o próprio irmão; o pai entregará o filho; os filhos se levantarão contra seus pais, e os matarão (v. 21).

A incompreensão por parte dos próprios familiares fazia parte dos profetas e do próprio Jesus (13,57p), então também dos discípulos.  Até os próprios parentes podem tornar-se adversários (cf. Mq 7,6), o que é mais doloroso, cf. Jr 12,6: “Também teus irmãos e tua família são desleais para contigo”; ou Sl 55,13-15: “Mas eras tu, meu camarada, meu amigo e confidente, a quem me unia doce intimidade” (cf. Sl 69,9; Jó 19).

Vós sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas quem perseverar até o fim, esse será salvo (v. 22; cf. 24,9.13).

O ódio do mundo (cf. Jo 15,18s) é herança da origem judaica (os judeus eram odiados por sua negação de outros deuses). Os motivos, “por causa do meu nome” (v. 22), a vinda futura (v. 23) e o exemplo do mestre (vv. 24s), os fortalecerão, até a parusia (volta de Jesus no fim do mundo). Neste horizonte eclesial e escatológico, a “perseverança” é virtude fundamental. Este termo designa a resistência aos perigos que ameaçam a palavra (cf. nas cartas de Paulo: 1Ts 1,3; 2Cor 1,6; 6,4; 12,12; Rm 2,7; 5,3-4; 8,25; 15,4-5; Cl 1,11).

Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra. Em verdade vos digo, vós não acabareis de percorrer as cidades de Israel, antes que venha o Filho do Homem (v. 23).

A fuga nem sempre é resultado de covardia; pelo contrário, pode ser exigida pela prudência (cf. v. 16); o apóstolo deve poupar-se para sua missão. Em alguns casos pode servir a expansão missionária, como documentam os Atos dos Apóstolos (cf. At 8 e 12). A comunidade cristã aguarda com expectativa a vinda sempre inerente do Senhor glorificado. Então, este anúncio pode referir-se à parusia, como em textos semelhantes (cf. 24,30p), ou pode referir-se, não ao mundo em geral, mas a Israel em particular: quando Deus veio “visitar” o seu povo, que se tornou infiel, e põe fim ao regime da antiga aliança pela ruína de Jerusalém e do templo em 70 d.C. (cf. 24,1). Para escapar disso, os judeu-cristãos de Jerusalém fugiram para Pela na Transjordânia (Eusébio, cf. Lc 21,20s). Mt não cita aqui a missão às nações que deve anteceder ao fim do mundo (24,14; Mc 13,10; cf. 28,19s), porque a missão a Israel vem primeiro, já antes da ressurreição (vv. 5-6).

O site da CNBB comenta: Todo aquele que quer ser discípulo de Jesus deve estar pronto para enfrentar os problemas decorrentes do discipulado. Ser discípulo de Jesus significa não aceitar os contravalores que estão presentes no mundo e que não permitem que haja vida e vida em abundância, mas denunciar esses contravalores como causa de sofrimento e, ao mesmo tempo, anunciar os valores do Evangelho. Ser discípulos de Jesus significa ser profeta da Nova Aliança e arcar com todas as consequências do agir profético, ou seja, a perseguição, o sofrimento e até mesmo a morte. A história da Igreja está repleta de mártires, profetas da Nova Aliança que, por acreditarem nos valores do Evangelho, foram perseguidos e derramaram seu sangue como o Cristo.

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