14 de maio de 2017 – Tempo Pascal 5º Domingo Ano A

1ª Leitura: At 6,1-7

Ouvimos hoje a leitura da instituição dos diáconos como segundo grupo de líderes além dos doze apóstolos.

Naqueles dias, o número dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de origem grega começaram a queixar-se dos fiéis de origem hebraica. Os de origem grega diziam que suas viúvas eram deixadas de lado no atendimento diário (v. 1).

Também na comunidade primitiva dos “discípulos” (v. 1) nem tudo era ideal (cf. 2,24-27; 4,32-37), houve também conflitos (cf. 5,1-11), desta vez entre dois grupos, os “helenistas” e os “hebreus”. Os hebreus são judeus nativos na Palestina (província romana que engloba Judeia e Galileia), falam aramaico, mas no culto leem a Bíblia em hebraico (assim os apóstolos da Galileia e os nativos de Jerusalém). Os “helenistas” são judeus da diáspora, ou seja, dispersos em vários países do Império Romano, cuja língua mais falada nesta parte oriental era o grego. Muitos ficavam no seu país de origem, uns poucos se mudaram para Jerusalém para aí passar seus últimos anos e serem sepultados na cidade santa (p. ex. Simão de Cirene, Mc 15,21p) ou passaram um tempo como peregrinos. Havia sinagogas especiais para eles lá (6,9; 24,12), onde se lia a tradução grega da Bíblia (LXX, iniciada no século III a.C.); muitos eram fieis às tradições dos antigos, outros se converteram ao cristianismo.

Talvez nesse capítulo comece uma segunda parte do livro, com o aparecimento deste novo grupo na comunidade de Jerusalém. Os helenistas provocam tensões novas, “começaram a queixar-se” (v. 1a; lit. “murmurar” que recorda as repetidas queixas ou protestos dos israelitas no deserto, cf. Ex 15,24; 16,2; 17,3; Nm 11,4s; 14,2s; 20,2s).

A ocasião trivial, embora sentida, da partilha, talvez esconda tensões mais profundas: “Os helenistas diziam que suas viúvas eram deixadas de lado no atendimento diário” (v. 1b). As viúvas, grupo social desvalido e objeto de atenção especial na tradição bíblica, vivem da caridade na comunidade cristã. A diferença de língua (e de mentalidade e compreensão da fé) é origem desta discriminação, e esta corrói a unidade.

Então os Doze Apóstolos reuniram a multidão dos discípulos e disseram: “Não está certo que nós deixemos a pregação da Palavra de Deus para servir às mesas. Irmãos, é melhor que escolhais entre vós sete homens de boa fama, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos dessa tarefa. Desse modo nós poderemos dedicar-nos inteiramente à oração e ao serviço da Palavra” (vv. 2-4).

“Os doze” (v. 2; designação inusitada neste livro, cf. 1,15-26) convocam uma assembleia de discípulos e propõem uma solução. Os doze apóstolos (cf. Mc 3,14p; At 1,12-26) pertencem aos hebreus e representam o povo de Israel (doze tribos, cf. Gn 35,22b-26; Ex 1,1-5). Eles são as testemunhas oculares de Jesus (desde seu batismo até sua ressurreição, cf. 1,21s) e não podem “deixar a pregação da palavra de Deus para servir às mesas” (v. 2). É preciso formar um novo comitê (ministério) encarregado de partilha. As duas atividades, da palavra de Deus e do alimento das pessoas se chamam “serviço” (diakonia em grego, v. 4; cf. as obras da misericórdia, materiais e espirituais).

A proposta agradou a toda a multidão. Então escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo; e também Felipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau de Antioquia, um pagão que seguia a religião dos judeus. Eles foram apresentados aos apóstolos, que oraram e impuseram as mãos sobre eles (v. 6).

A assembleia elege e propõe nomes, todos eles gregos; Nicolau era “um pagão que seguia a religião dos judeus”, lit. “um prosélito” (cf. 2,11), ou seja, recém convertido e circuncidado). Os apóstolos, “oraram e impuseram as mãos sobre eles” (v. 6; cf. 13,3; 1Tm 4,14), lhes transmitiram assim o encargo e a graça para cumpri-lo.

O número é “sete” (cf. os sete dias da criação em Gn 1; os setenta (e dois) povos em Gn 10 e discípulos além dos apóstolos em Lk 10,1), corrente em grupos judeus e diferente dos “doze”. As qualidades requeridas são “boa fama, repletos do Espírito e de sabedoria/prudência” (v. 3; cf. Ex 28,3; Is 11,3). A ordenação, escolha e dedicação dos sete diáconos se parece com a escolha dos setenta colaboradores de Moisés que partilhavam do seu “espírito” (Ex 18,13-26; Nm 11).

Entretanto, a Palavra do Senhor se espalhava. O número dos discípulos crescia muito em Jerusalém, e grande multidão de sacerdotes judeus aceitava a fé (v. 7).

O estranho é que não vemos esses sete homens “servindo a mesa”, mas “pregando a palavra” (Estêvão em 6,8-7,60; Filipe em 8,5-40 que em 21,8 é chamado de “evangelista”), como se fossem uma instância subordinada aos doze para dirigir os helenistas. Com a criação deste novo ministério o incidente fica resolvido, e o narrador o indica noticiando o contínuo crescimento da comunidade; personificando a “Palavra” ou mensagem, diz que “crescia” (v. 7; 12,24; 19,20; cf. 2,41). Até das fileiras dos inimigos acérrimos, a classe sacerdotal, brotavam conversões ao cristianismo.

2ª Leitura: 1Pd 2,4-9

A 2ª leitura de hoje fala sobre a Igreja como “povo de Deus” (palavra chave no Concílio Vaticano II; cf. LG 2) e está empregada de reminiscências de Ex 19. A Bíblia de Jerusalém (p. 2272) comenta: O povo santo de outrora constituiu-se junto do Sinai, mas não podia aproximar-se dele. O novo povo de Deus constituiu-se junto de outra rocha, a pedra, de que podemos aproximar-nos (v. 4). Da mesma maneira, aos sacríficos que tinham selado a aliança antiga (Ex 24,5-8) sobrepõem-se os sacrifícios espirituais dos cristãos (v. 6).

Aproximai-vos do Senhor, pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e honrosa aos olhos de Deus. Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo (vv. 4-5).

“Aproximar-se do Senhor” é expressão cultual (cf. Ex 3,5; 19,23; Lv 16,2; Hb 4,16; 10,19s; 12,18-24). A imagem do crescimento que prevaleceu no trecho anterior (1,14-2,3) cede o lugar à da construção (cf. a eclesiologia trinitária: Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito). A Bíblia de Jerusalém (p. 2272) comenta: O próprio Jesus (Mt 21,42p) se tinha comparado à pedra rejeitada (Sl 118,22), depois escolhida por Deus (Is 28,16). Os cristãos, pedras vivas (v. 5). Como ele (v. 4), “constroem-se” em edifício espiritual (1Cor 3,16-17; 2Cor 6,16; Ef 2,20-22), no qual, por meio de Cristo, tributam a Deus um culto digno dele (Jo 2,21; Rm 1,9; Hb 7,27).

A metáfora do NT de Cristo como pedra fundamental evoca a esperança do templo novo, bem atestada no judaísmo tardio e que se enraíza no AT (cf. v. 6; Is 28,16; Ez 40). Cristo como pedra “viva” alude à ressurreição, àquele que dá a vida. O templo é “casa de Deus”, já habitado pela shekiná (presença divina, simbolizada pela nuvem). Como templo espiritual, a Igreja se beneficia da ação do Espírito que lhe garante o crescimento. O culto cristão, “sacrifício espiritual e agradável a Deus” (Rm 12,1), é o da Palavra (Bento XVI), não imolar os animais no templo.

“Formai um edifício espiritual”; a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2385) comenta: Outra tradução: “vós sois edificados como casa”. – Pedro costuma propor primeiro uma exortação e depois justificá-la pela Escritura (v. 6) … A palavra habitualmente traduzida por “sacerdócio” foi forjada pelos tradutores gregos do AT, para exprimir a missão providencial do povo de Israel entre as demais nações. O termo particular de cada cristão.

A Bíblia do Peregrino (p. 2907) comenta os vv. 4-8: Desenvolve a imagem da pedra em vários aspectos, combinando textos bíblicos. Pedra de fundação (Is 28,16) na qual se apoia o homem pela fé. Pedra angular (Sl 118,22) que é chave ou remate do edifício (cf. Zc 4,7). Pedras vivas são os cristãos; com eles se constrói o templo “espiritual” de Deus. Nesse templo oficia um sacerdote santo ou consagrado (pelo batismo, de todos os cristãos); oferece sacrifícios espirituais (cf. Jo 4,23-24), que Deus aceita por mediação de Jesus Cristo. Mas a pedra de fundação angular, se é rejeitada, pode converter-se em pedra de tropeço (Is 8,14; cf. Lc 2,34).

Com efeito, nas Escrituras se lê: “Eis que ponho em Sião uma pedra angular, escolhida e magnífica; quem nela confiar, não será confundido” (v. 6).

O autor cita Is 28,16 conforme o texto grego do AT, que favorece a interpretação messiânica da passagem. “Não será confundido” ou: enganado.

A vós, portanto, que tendes fé, cabe a honra. Mas para os que não creem, “a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular, pedra de tropeço e rocha que faz cair”. Nela tropeçam os que não acolhem a Palavra; esse é o destino deles (vv. 7-8).

“A vós … cabe a honra”, a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2385) comenta:  A palavra grega traduzida por “honra” pertence à mesma raiz que o adjetivo traduzido por preciosa nos vv. 4 e 6. O autor aplica à Igreja os títulos dados a Cristo (cf. também “escolhido”, vv. 4 e 6 = “eleito”, v. 9).

O autor cita mais: Sl 118,22 que Jesus já tinha aduzido para anunciar sua morte e sua ressurreição (Mc 12,10p), e Is 8,14 (lit. “pedra de escândalo”; perante Cristo não se pode permanecer indiferente, cf. Lc 2,34).

“O destino deles”, os que tropeçam não são destinados por Deus à incredulidade, mas à queda, caso se recusem a crer. A Bíblia de Jerusalém (p. 2272) comenta: Lit.: “é para isto que foram estabelecidos”. Rejeitando o evangelho, os judeus perderam as suas prerrogativas, agora transferidas para os cristãos (3,9; At 28,26-28; cf. Jo 12,40). É preciso completar essa afirmação com Rm 11,32; 1Tm 2,4; etc. e não julgar de antemão a respeito de uma rejeição escatológica.

Mas vós sois a raça escolhida, o sacerdócio do Reino, a nação santa, o povo que ele conquistou para proclamar as obras admiráveis daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa (v. 9).

O autor aplica à Igreja o que fora dito do povo da antiga aliança, citando juntos Ex 19.5s e Is 43,20s (cf. Ap. 1.6; 5.10: um reino, sacerdotes). Uma outra tradução possível “a residência real, a comunidade sacerdotal” faria eco a: “casa espiritual… comunidade sacerdotal” (v. 5).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2272) comenta: Uma nova série de referências bíblicas atribui à Igreja os títulos do povo eleito, a fim de sublinhar a sua relação com Deus e a sua responsabilidade no mundo (cf. Ap 1,6; 5,10; 20,6). Esta “raça” usufruía, pelo fato de pertencer a Cristo, uma unidade que estava acima de toda classificação (cf. Gl 3,28; Ap 5,9; etc.).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1489) comenta nossa leitura: Aqui se encontra o ponto alto desta primeira série de exortações, e provavelmente da carta inteira. Os membros de cada comunidade, marginalizados em terra estranha, são convocados a se aproximarem de Jesus e, ao mesmo tempo, uns dos outros. Devem perceber que sua situação é semelhante à de Jesus: rejeitado pela sociedade, escolhidos de Deus. O autor serve-se de várias passagens da Escritura, em especial dos Salmos e profetas, para refletir sobre a contradição que a pedra Jesus representa para uma sociedade que se alimenta de contravalores, como o individualismo e a injustiça. Mas o texto recorre principalmente a trechos que se referem aos dois êxodos, do Egito e da Babilônia, para salientar a nova identidade de uma gente migrante marginalizada, da qual Deus fez o seu povo. Essas pessoas não devem conformar-se com a humilhação e o desprezo que a sociedade lhes impõe. O desafio apresentado é, mais uma vez, não permitir que a hostilidade e pressão externas impeçam que se construa a comunidade, a “casa espiritual” das pessoas sem teto e sem diretos, a quem a carta se dirige.

Evangelho: Jo 14,1-12

Neste e noutro domingo ouvimos trechos do discurso de despedida de Jesus na última ceia, inserido no quarto evangelho. Depois de Jesus ter lavado os pés dos apóstolos e anunciado a traição de Judas (13,10.18.21-30) e a negação de Pedro (13,36-38), continua falando aos discípulos:

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) “Não se perturbe o vosso coração. Tendes fé em Deus, tende fé em mim também (v. 1).

O anúncio deixou Pedro e os discípulos em crise. Eles têm dificuldades de entender para onde Jesus vai (cf. v. 5; 13,33.36) e estão com medo. Só existe um remédio: a fé. O livro de Isaías narra o pavor do rei Acaz diante da ameaça inimiga: “O coração do rei e o de seu povo ficaram perturbados como as árvores das florestas agitadas pelos ventos” (Is 7,2); o profeta inculca-lhe: “Se não credes, não subsistireis” (Is 7,9). Jesus inculca agora e comunica uma fé confiante. Não devem ficar perturbados (cf. 14,27), porque o apoio agora é duplo e uno: ele é o Pai. O Pai e o Filho são um (10,30), o Pai não deixará o Filho sozinho (8,16.29). Pode-se comparar com Ex 14,31: “confiar (ter fé) em Deus e em Moises” por ter passado pelo mar Vermelho (páscoa).

Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós, e quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E para onde eu vou, vós conheceis o caminho” (vv. 2-4).

Jesus vai embora, mas não sumirá simplesmente. Ele voltará ao Pai (13,1.3) para “preparar um lugar”. Até agora, Jesus só falava dele “ir embora”, quer dizer morrer (13,36), agora fala “para onde” vai. Para a “casa do Pai”, onde “há muitas moradas”, mas teria morada para todos? Agora Jesus apresenta o destino aos seus discípulos, mas como chegar lá?

Os discípulos já devem conhecer o caminho, porque Jesus já falou do seguimento radical, do martírio pelo qual os discípulos chegarão ao lugar onde Jesus estará (12,25s). A decisão dos discípulos agora é facilitada por parte de Jesus que “voltará” a eles e os “levará” consigo (ao lugar onde ele mora) onde poderão ficar e “permanecer” (cf. 8,35). Os leitores podem se lembrar da vocação dos primeiros discípulos em 1,36-39: “Mestre, onde moras?”

A volta de Jesus aos seus discípulos pode ser interpretada de duas maneiras: voltando logo após a ressurreição (e no seu Espírito, os discípulos estarão com ele, cf. vv. 16.25) e voltando no final dos tempos. Toda a expectativa da Igreja apoia-se nesta promessa da “volta” de Jesus glorificado (segunda vinda, chamada parusia; cf. 1Ts 4, 16s; 1Cor 4,5; 11,26; 16,22; Ap 22,17.20; 1Jo 2,28).

A Bíblia do Peregrino (p. 2596) comenta: A ideia de casa e lar onde habitar tranquilo é comum aos homens (cf. Rt 3,1). Na história do povo, o Senhor é anfitrião que lhe prepara moradia bem abastecida em Canaã (Sl 68,11; Dt 6,10-11); a seguir, Josué reparte a terra para que cada família tenha um lar (Js 13-18). Davi quer preparar uma morada para o Senhor (Sl 135,5). João imagina o mundo celeste como um grande palácio ou como o templo de muitos aposentos (cf. 1Rs 22,25; Jr 35-36): um texto escatológico fala de entrar nos aposentos (para refugiar-se, Is 26,20). Veja-se a exposição de Paulo em 2Cor 5,1-10.

Na antiguidade, quando reis e imperadores (p. ex. César Augusto) construíram um templo (p. ex. de Apolo) ao lado do seu palácio, queriam expressar que são filho deste deus e moram com ele. No judaísmo é a Sabedoria que mora com Deus desde sempre (cf. Pr 8). O evangelho de Jo, introduz Jesus como Sabedoria preexistente e encarnada, o verbo de Deus (logos, 1,1-18).

Tomé disse a Jesus: “Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” Jesus respondeu: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim (vv. 5-6a).

Os discípulos devem seguir Jesus mais tarde (12,26; 13,36). Seguir (ir atrás) só pode por um caminho conhecido. Tomé já demonstrou disposição extraordinária de morrer junto com Jesus (11,16). Ele repete a pergunta de Pedro, “para onde vais?” (13,36), e quer saber mais, “como conhecer” este caminho a seguir. Jesus surprende com sua reposta, mais uma autorrevelação “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (“Eu sou … ”, cf. 6,35.41.48.51; 8,12; 10,7.9.11.14; 11,25; cf. 6,20; 8,28.58; 13,19; 18,5.8).

As moradias do Pai (terra prometida de repouso; cf. Sl 95; Hb 4) e a imagem do caminho pertencem ao contexto do êxodo. A Bíblia do Peregrino (p. 2596) comenta: Ao mesmo contexto do êxodo pertencem a experiência e a imagem do caminho. O Senhor indicava o caminho com o fogo ou com a nuvem, ele mesmo guiava o povo por meio do anjo o por meio de Moises (Ex 33,14; Sl 77,21). Jesus não é guia. Mas caminho; como é escada até o céu (1,51) como é porta de entrada (10,7). Por ele vem a verdade da revelação  e a vida que é o seu resultado; por ele transitamos rumo ao Pai. É um caminho autêntico (verdadeiro) e vital, é verdade e vida em caminho.

Além do êxodo, “o caminho” é metáfora interreligosa (p. ex. na China no daoísmo: dão é o caminho da natureza, o método a ser seguido; outro ex.: o movimento terrorista no Peru chamava-se “sendero luminoso”). Caminho pode significar conduta reta (cf. Mt 7,13s), a lei de Deus (Sl 119,1). Os primeiros cristãos foram chamados ou se autodenominaram “o Caminho” (cf. At 9,2; 18,25s; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). Em Jesus, Tomé conhece o caminho, nele já se encontra com Deus (cf. 20,28).

Jesus é o caminho ao Pai porque ele revela o Pai (12,45; 14,9). Ele nos ensina o caminho da salvação (At 9,2); ele não só mostra, mas é o caminho (somos salvos por ele). Ele mesmo é o único acesso ao Pai (cf. 1,18; 14,7-11). Jesus já vem do Pai e vai voltar a ele (7,29.33; 13,3; 16,28 etc.). É um com o Pai (10,30; 12,45; 14,9; 17,22). Assim é o caminho da verdade e da vida.

“O que é verdade?”, pergunta Pilatos em 18,38. O que as ditaduras mais temem, é a verdade (cf. a Comissão da Verdade). Mas em Jo, verdade é mais do que transparência, sinceridade, honestidade ou fidelidade. Jesus revela a Palavra de Deus (ele mesmo a é, cf. Jo 1,1.14), então traz a verdade e ele mesmo a representa (é) em pessoa. Jesus é o caminho, porque é a verdade. Verdade religiosa está ligada ao Espírito (4,23s; 15,26; 16,13) e à graça (em 1,17 pode-se traduzir: “amor e fidelidade” ou “graça e verdade”). Esta verdade dá orientação (torá – lei, instrução), revela o sentido (direção) da vida e liberta da escravidão da mentira e ilusão (8,31s; cf. 3,21; 5,33; 8,40.45s; 18,37; 1 Jo 1,6).

A “vida” é o termo chave, para o qual os outros convergem; significa a vida plena e eterna que Jesus dá e, ao mesmo tempo, representa (6,35; 10,10; 11,25s; cf. 1,4; 5,21.26; Hb 10,19-22). Nos evangelhos sinóticos, Jesus ensina como entrar no Reino de Deus que ele mesmo representa (como rei-messias); em Jo, ele ensina o caminho da verdade e da vida que ele mesmo dá e representa.

Ninguém vai ao Pai senão por mim (v. 6b).

Jesus se apresenta como único caminho. Ao Deus único do judaísmo (Dt 6,4; Ex 20,3; Is 45,5 etc.) corresponde a exclusividade do “Filho unigênito” (Jo 1,18) no cristianismo. No tempo atual que preza mais a tolerância, como então podemos ver as outras religiões? São outros caminhos válidos ou errados? Levam à salvação por outros caminhos ou à confusão e perdição?

Já na antiguidade se viu este problema, e os Padres da Igreja desenvolveram a teoria de que o logos (o verbo de Deus que criou o mundo e, segundo Jo 1,1.14, é o Filho de Deus), atua também antes, ao lado e depois da encarnação, e portanto, pode atuar também em outras religiões e filosofias que também procuram a “verdade”. Assim se pode dizer que toda salvação (a plenitude da salvação) vem de Cristo, mas sem demonizar outras religiões, ao contrário, reconhecer nelas umas “sementes do Verbo” (como no próprio Antigo Testamento). O Concílio Vaticano II afirma sobre outras religiões: “A Igreja Católica não rejeita nada daquilo que é verdadeiro e sagrado nestas religiões … embora em algumas coisas diferem daquilo que ela mesmo ensina, mas não raramente, deixam reconhecer um raio daquela verdade que ilumina todos os homens” (AG 2; cf. Jo 1,9).

O próprio evangelho e as cartas de Jo salientam a importância do amor (13,34s; 15,12s.17; 1Jo 2; 3,11-4,21) ao ponto de definir: “Quem não ama, não conheceu a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Se Deus é amor, aquele que ama, está no caminho certo; não obstante se é consciente porque conhece Jesus (o amor maior, cf. 15,13) ou não o conhece, sendo um “cristão anônimo” (Karl Rahner).

Se vós me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes”. Disse Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!” (vv. 7-8).

No discurso de Jesus na despedida da última ceia, uns discípulos interrompem com perguntas: Pedro em 13,6-9.36, Tomé em 14,5, Filipe em 14,8; Judas Tadeu em 14,22.

“Conhecer” é uma das palavras-chaves do evangelho de João (muito importante também nas cartas paulinas). Conhecer quem é Jesus é conhecer o Pai (8,19). Vê-lo com olhos de fé é ver o Pai. Os discípulos já experimentaram (passado: “o vistes”) a presença do Pai: “o conheceis e o vistes” nas palavras e obras do Filho, já agora experimentaram o que um dia se concluirá nas moradas celestes (v. 2).

O apóstolo Filipe (cf. 1,43-48; 6,7; 12,21s) entendeu que o Pai não é um deus distante, inacessível em sua transcendência, mas está agora presente no mundo. Por isso pode colocar uma pergunta correspondente. Mas ainda não entendeu que o Pai não é uma entidade dentro do mundo ao lado do Filho. Da mesma maneira, os adversários já entenderam mal (8,19).

Filipe formula a seu modo o pedido audaz de Moisés (Ex 33,18), ao qual o prólogo fez alusão (1,18; cf. 1Jo 4,12). É a esperança do orante (Sl 17,15) e a experiência de Jô (42,5). Filipe representa também o afã de todo o homem autenticamente religioso: contemplar Deus como sentido último da sua existência. É que não aprofundou no conhecimento de Jesus.

Jesus respondeu: “Há tanto tempo estou convosco, e não me conheces, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: Mostra-nos o Pai? Não acreditas que eu estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo, mas é o Pai que, permanecendo em mim, realiza as suas obras. Acreditai-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Acreditai, ao menos, por causa destas mesmas obras (vv. 9-11).

Jesus não há de dizer algo novo, mas resume o que já disse em 5,17.20; 8,19.38; 10,30.38; 12,44f.49. Os discípulos “já viram o Pai” (v. 7), não há necessidade de “mostrar o Pai”. A união íntima de Jesus com o Pai implica: a pessoa (“estar em”, 10,38), as palavras (12,49) e as obras; as três apontam para o Pai e convergem para ele. O Pai é espaço vital de Jesus, e como Filho é o espaço de manifestação do Pai (espaço vital: “estar em”, não “ao lado”: o Pai não está ao lado de Jesus para ser mostrado no mundo, mas se manifesta “no” Filho). Somente a fé o pode descobrir e contemplar, “ver”. Somente a fé discerne na presença do Filho o Pai e do Pai o Filho. Filipe engana-se ao reclamar uma manifestação fulgurante do Pai. “Quem me viu, viu o Pai” (v. 9; cf. já 12,24).

Em Jo, a visão de Deus e com isso, a comunhão com ele (“eu estou no Pai e o Pai está em mim”), não é apenas para os discipulos que são testemunhas oculares, pessoas especialmente dotadas ou através de práticas cultuais ou exercícios austeros (cf. os cultos de mistérios na antiguidade). A mística de João é para quem aceita Jesus como mediador de Deus (cf. 20,24-29). “O verbo (logos) se fez carne … e nós vimos sua glória … cheia de graça e verdade” (1,14). Ver Deus significa ter a vida eterna (cf. 17,24) que “todos os quem veem o Filho e crêem nele, terão” (6,40; cf. 20,30s).

Em Jesus, o Deus invisível tornou-se realidade visível e palpável (cf. Cl 1,15; Jo 1,1.14.18). Com isso, cai de certo modo a proibição de fazer imagens de Deus (Ex 20,4s etc.). Antes de Jesus, os povos erraram fazendo imagens de Deus, porque era invisível (cf. as imagens dos deuses  egípcios com cabeças de animais). Agora, pela encarnação do Filho, temos a imagem de Deus invisível e podemos fazer imagens dele, não como idolatria (adorar algo que não é Deus), mas como sinal de fé em Deus que se fez realmente presente no homem de Nazaré, p. ex. como menino no presépio ou como sofredor na cruz. São João Damasceno (650-754) e o II Concílio de Niceia (787) argumentaram com a encarnação contra os iconoclastas.

Os discípulos devem acreditar na união do Pai e do Filho. O que Jesus falou “aos judeus” (10,22-39), fala agora aos discípulos: “Acreditai, ao menos, por causa destas mesmas obras” (v. 11).

Em verdade, em verdade vos digo, quem acredita em mim fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas. Pois eu vou para o Pai” (vv. 12).

Pela fé, o fiel adere a Jesus, pode cooperar com sua atividade e fazer as “obras” de Jesus (não só milagres como os “sinais”). Jesus já falou de “obras maiores” em 5,20s, referindo-se à ressurreição de mortos por ele mesmo. O ministério da revelação e da salvação, do qual os milagres foram os sinais (2,11; 4,54 etc.), prolonga-se nas obras dos discípulos que podem realizar obras “ainda maiores”, na sua força reveladora, uma vez que Jesus já terá sido glorificado e pode apoiá-los de cima. (p. ex.: São Francisco Xavier converteu e batizou mais de 100.000 pessoas, mais do que o próprio Jesus na sua vida terrestre). Os Atos dos Apóstolos começam a ilustrar essa promessa. O Espírito, fonte dos carismas que lhes serão dispensados, será enviado pelo Cristo glorificado a direita do Pai (7,39; 16,7) para realizar estas obras.

O site da CNBB comenta: Jesus está prestes a concluir a missão para a qual foi enviado pelo Pai e sabe que a sua presença histórica no meio dos homens está perto do fim. Por isso, ele inicia a preparação dos apóstolos para que reconheçam a sua nova forma de ser presença na vida das pessoas, assim como para receberem o Espírito Santo e serem conduzidos por ele na sua missão evangelizadora. Jesus inicia esta preparação mostrando aos discípulos que ele jamais os abandonará, mas irá preparar um lugar para onde ele mesmo conduzirá todas as pessoas que ele ama a fim de conviverem eternamente com ele.

Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode chegar ao Pai sem Jesus, pois ele é verdadeiramente o único caminho que nos leva ao Pai. Ninguém pode de fato conhecer o Pai se não for através de Jesus, pois ele é a Verdade que nos revela o Pai, ele é o próprio ícone do Pai, ele vive em perfeita comunhão com o Pai. Quem conhece Jesus, conhece o Pai e quem conhece o Pai, conhece Jesus. Nós também participamos dessa comunhão na medida em que nos tornamos ícones de Cristo e a participação nessa comunhão é que nos garante a vida em plenitude, a vida eterna, que é a participação na vida divina.

 

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