14 de Setembro de 2020, Segundo-feira – Festa da Exaltação da Santa Cruz: De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele (vv. 16-17).

Festa da Exaltação da Santa Cruz

A festa de hoje tem sua origem na dedicação das basílicas em Jerusalém sobre o lugar da crucificação (Gólgota, Mc 15,22p) e sobre o sepulcro de Cristo (Jo 19,41), construídas pelo imperador Constantino e sua mãe. Ele era pagão e em 312, na noite anterior a uma batalha decisiva, sonhou com uma cruz, e nela estava escrito em latim: “In hoc signo vinces” (neste sinal, tu vences). Constantino mandou que pintassem uma cruz nos escudos dos soldados e venceu. Pelo édito de Milão em 313 concedeu liberdade religiosa aos cristãos perseguidos por três séculos. Aceitou o batismo só no final da sua vida (acreditava-se na época que a absolvição dos pecados só podia ser recebida uma única vez após o batismo). Constantino ainda tolerava as religiões pagãs, mas promoveu a religião cristã (que se tornaria a religião oficial do Império em 380 por decreto do imperador Teodósio em 380). A cruz perdeu seu significado de escândalo (pena de morte para criminosos; cf. Dt 21,22s; 1Cor 1,22-24; Gl 3,13) e começou a ser representada na arte cristã.

A mãe de Constantino, Santa Helena, procurou a cruz de Cristo na Terra Santa e, conforme a lenda, encontrou a “vera cruz” e ordenou a construção da Igreja do Santo Sepulcro. Hoje milhares de pedacinhos da Santa Cruz encontram-se como relíquias em muitas igrejas do mundo (duvida-se na autenticidade em vários casos). A reforma litúrgica na esteira do Vaticano II determinou a data da festa em 14 de setembro, mas algumas comunidades continuam na data antiga de três de maio.

1ª Leitura: Nm 21,4-9

A leitura de hoje nos apresenta a serpente de bronze, à qual Jesus se refere no evangelho (Jo 3,14). O símbolo do deus que cura (uma serpente enrolada numa vara) era frequentemente representado na Antiguidade.

A serpente era símbolo de astúcia (da tentação e do mal em Gn 3), mas também de sabedoria e poder (na coroa do faraó); na medicina, o veneno de cobras, na dosagem certa, pode servir como remédio para anestesia e contra dor. Saber os efeitos do veneno e usá-lo em dose pequena para remédios (por ex. anestesia) faz parte da medicina em nossos dias também.

O site Dicionário de Símbolos comenta: O símbolo da medicina é representado pelo Bastão de Asclépio (ou Esculápio), o qual consiste em um bastão, varinha ou haste, com uma cobra entrelaçada. Na mitologia grega antiga Asclépio é o deus da cicatrização, ou da própria medicina… Sua capacidade de curar era tão notável que ganhou a reputação de ressuscitar doentes… Isso porque Asclépio sabia dosar perfeitamente as misturas do sangue de Górgona [Górgonas são terríveis monstros que foram transformados em mulheres de cobra por deusa Athena, por ex. Medusa]. Dada a capacidade de trocar de pele, a cobra constante no símbolo representa o renascimento, bem como a fertilidade.

Na antiguidade, havia um culto à serpente, adorada como divindade protetora e curadora. Nosso relato poderia ser uma tentativa de assimilação de um culto pagão prestado a algum deus. O texto mostra que Israel assimilou esse culto (cf. 2Rs 18,4). Aqui, porém, a serpente de bronze é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 179) comenta: Para muitos povos, a serpente representava uma divindade da fertilidade ou da cura … Esta narrativa justifica sua imagem e seu culto no Templo de Jerusalém até o reinado de Ezequias (2Rs 18,4). Aqui, fortalece o esquema rebeldia-castigo-intercessão-cura, usado no Templo pós exílico.

(Os filhos de Israel) partiram do monte Hor, pelo caminho que leva ao mar Vermelho, para contornarem o país de Edom. Durante a viagem o povo começou a impacientar-se, e se pôs a falar contra Deus e contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água, e já estamos com nojo desse alimento miserável” (vv. 4-5).

Os “filhos de Israel” (v. 10; cf. v. 1) eram os doze filhos (e uma filha, cf. Gn 34) de Jacó (apelidado Israel: Gn 32,29; 35,10.22b-26), que formaram as doze tribos e se tornaram um povo no Egito (Ex 1,1-7). Na reflexão religiosa de Israel, o deserto aparece como refúgio (Ex 2,15; 1Rs 17,2-6; 19; Mc 1,4.12p; Gl 1,17; Ap 12,6) e também como lugar privilegiado da prova e das reclamações, ou seja, “murmurações” (Ex 14,11; 15,24; 16,3; 17,1-7; 32; Nm 11,1-4; 12,1; 14,1-4; 16,3.14; 20,2-5; 21,5), de onde se pode sair vitorioso somente pela fé e pela esperança (cf. Sl 78; Hb 3,7-19).

Libertado da escravidão, o povo de Israel passou de pé enxuto pelo mar dos juncos, caminhava pelo deserto do Sinai e ficou esperando em Cades; não é uma cidade ou lugar preciso, mas uma região no deserto de Sin (Nm 20,1; 33,36), aqui o principal oásis do norte do Sinai, 75 km a sudeste da Bersabéia (sul de Judá). Este oásis sempre foi uma etapa das caravanas.

Na fronteira da terra de Edom, no “monte Hor”, morreu o irmão de Moisés, Aarão (Nm 20,22-27; 33,38s; Dtn 32,50). “Edom” é região vizinha de Israel, fica na região da Arabá, ao sul de Moab (Jz 17,14-18; Js15,1.21) e se estendeu até o golfo de Ácaba no mar Vermelho. Esaú, irmão mais velho de Jacó, também foi chamado com esse nome Edom (Gn 36,1). Edom recusou passagem ao povo irmão de Israel (Nm 20,14-21), por isso Israel tinha que desviar seu caminho voltando em direção ao mar Vermelho. O nome grego de Edom era Idumeia (o rei Herodes não era judeu, mas idumeio).

Esta história deve ser relacionada com as minas de cobre da Arabá, onde o metal já era explorado no século XII a.C.. Acharam-se em Meneiyeh (hoje: Timna) diversas pequenas serpentes de cobre que sem dúvida eram utilizadas, como a de Moisés, para se proteger contra as serpentes venenosas. Esta região mineira da Arabá se encontra ao caminho de Cades (Nm 13,26) a Ácaba no mar Vermelho (cf. v. 4). O termo “mar Vermelho” não se encontra na Bíblia Hebraica (lá é chamado “mar egípcia” em Is 11,15; ou “mar dos juncos” em Gn 20,1; 28,18; Ex 14,2.9. etc.), mas na tradução grega (LXX) e no NT (At 7,36, Hb 11,29).

Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas, que os mordiam; e morreu muita gente em Israel (v. 6).

“Serpentes venenosas” traduz serafim, plural de saraf = abrasador, que Is 30,6 (cf. 14,29) representa como uma serpente alada ou dragão. O nome dos anjos serafins em Is 6,2-6 vem da mesma raiz. Na sua origem pode ter-se referido a animais fantásticos, dragões de fogo. Não sabemos quanto de recordação histórica há e quanto de fantasia, no relato desta praga.

O povo foi ter com Moisés e disse: “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti. Roga ao Senhor que afaste de nós as serpentes”. Moisés intercedeu pelo povo (v. 7).

Moisés é o grande intercessor em favor do seu povo (no Egito em Ex 5,22s; 8,4; 9,28; 10,17; no deserto em Ex 32,11-14.30-32; Nm 11,2; 12,13; 14,13-19; 16,22; 21,7; Dt 9,25-29). Esta função (cf. Abraão em Gn 18,16-33) é lembrada em Jr 15,1; Sl 99,6; 106,23; Eclo 45,3, e prefigura a intercessão de Cristo e dos santos.

E o Senhor respondeu: “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela viverá”. Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e colocou-a como sinal sobre uma haste. Quando alguém era mordido por uma serpente, e olhava para a serpente de bronze, ficava curado (vv. 8-9).

Quanto ao remédio, a representação do causador do dano para conjurá-lo corresponde a crenças populares: ao tê-lo em imagem (ou saber o nome), o homem o controla. É uma espécie de homeopatia ou mágica (cf. o medo de pessoas nas sociedade primitivas de serem fotografadas; cf. as bonecas espetadas com agulhas no vudu). Mas o autor elimina os elementos estranhos à fé de Israel: é o próprio Senhor quem oferece a seu povo este meio de cura.

O autor faz Moisés intervir intercedendo, o Senhor dando poder ao remédio e os israelitas confessando o pecado. A serpente de bronze colocada sobre uma haste é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada. Ao mesmo tempo, lembra os erros cometidos e as consequências desses erros, para que a marcha se mantenha dentro do projeto libertador de Javé.

Em Sb 16,5-14 comenta-se o episódio, excluindo da imagem todo poder mágico. O Evangelho de João aplica a imagem da serpente a Jesus crucificado, sinal de salvação (Jo 3,14).

 

2ª Leitura: Fl 2,6-11 (opcional)

A carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo na prisão de Éfeso entre os anos de 54 e 57. Apesar dos sofrimentos, o apóstolo demonstra nesta carta que o evangelho é boa notícia. A comunidade de Filipos era a primeira igreja que Paulo fundou na Europa (At 16,11-40) e a única da qual aceitou donativos para suprir suas privações (4,10-20).

Paulo convida a comunidade dos filipenses a evitar as divisões causadas pelo espírito de “competição” (v. 3), pelo desejo de receber elogios e pela busca dos próprios interesses. A comunidade deve zelar pela harmonia interna e, para isso, é necessário que haja humildade, “cada um considerando os outros superiores a si” (v. 3), e que o empenho tenha sempre em vista o bem comum (v. 4).

Paulo sabe por experiência como facilmente nascem rixas e conflitos nas comunidades (cf. 1Cor). Ele percebeu sinais disso em Filipos (1,27; 2,14; 4,2) e por isso exorta os seus correspondentes à unidade e à concórdia. A unidade só se realizará por uma vida de humildade, abnegação e serviço de que o próprio Cristo deu o exemplo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (v. 5).

Citando um hino conhecido, Paulo apresenta em Cristo o modelo da humildade. Embora tivesse a “mesma condição de Deus”, Jesus se apresentou entre os homens como simples homem. E mais: abriu mão de qualquer privilégio, tornando-se apenas homem que obedece a Deus e serve aos homens. Não bastasse isso, Jesus serviu até o fim, perdendo a honra ao morrer na cruz, como se fosse criminoso. Por isso Deus o ressuscitou e o colocou no posto mais elevado que possa existir, como Senhor do universo e da história. Os cristãos são convidados a fazer o mesmo: abrir mão de todo e qualquer privilégio, até mesmo da boa fama, para pôr-se a serviço dos outros, até o fim (cf. o lema da CF 2105, inspirada em Mc 10,45).

O esquema “humilhação”/”exaltação” pode-se detectar já em Pr 15,33; 18,12; Sl 113,7-8; cf. 1Sm 2; Sl 22; 118; Is 53. As diversas etapas do ministério de Cristo estão assim marcadas, cada uma numa estrofe deste hino: 1) a descida (vv. 6-8): a partir da preexistência divina, o aniquilamento da encarnação, o aniquilamento ulterior da morte; 2) a subida (vv. 9-11): a glorificação celestial, a adoração do universo, o título novo de “Senhor”.

Trata-se do Cristo histórico, Deus e homem, na unidade da sua personalidade concreta, que Paulo jamais divide, se bem que distinga seus diversos estados de existência (cf. Cl 1,13s).

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz (vv. 6-8).

“Existindo em condição (lit. forma) divina” (v. 6a). Aqui e no v. 7, “forma” exprime mais do que uma aparência; é figura visível manifestando o ser profundo, ou, então, por alusão a Gn 1,27 e 5,1: a imagem de Deus, i. é, o próprio ser de Deus em Cristo, “igual (isos) a Deus”. A tradução “condição/forma”, (grego: morphe) permite repetir a palavra em v. 7 (“com aspecto humano”). Cristo, sendo Deus, tinha por direito todas as prerrogativas divinas.

Considerando que a Carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo entre 56 e 64, temos aqui é o testemunho mais antigo da preexistência de Jesus (cf. ainda de Paulo: 1Cor 8,6; 20 a 40 anos antes de Jo 1,1s; 8,58; 17,5; Hb 1,2; Cl 1,15-20). A descida e a ascensão de Cristo neste hino antecipam a cristologia joanina (cf. Jo 1,14; 3,13-14; 12,32; 13,1…)

“Não fez do ser igual a Deus uma usurpação” (v. 6b; lit. “não considerou o estado de igualdade com Deus como uma presa”, que não se largar, ou, antes, que se deve agarrar). Não se trata da igualdade de natureza, suposta pela “condição divina” e da qual Cristo não poderia despojar-se, mas de uma igualdade de tratamento, de dignidade manifesta e reconhecida, que Jesus poderia ter reivindicado mesmo na sua existência humana. Pode-se pensar na atitude oposta de Adão (Gn 3,5.22).

Duas explicações se confrontam. Para uns, a condição divina é o estado do Cristo antes de sua encarnação, e esta é a primeira forma do rebaixamento de Cristo. Neste curso, a “presa” (a igualdade com Deus) deve ser conservada e defendida, não conquistada. A palavra grega parece sugerir antes uma presa da qual alguém quer se apropriar. Neste caso, o reflexo do ser de Deus (imagem de Deus) se manifesta no comportamento terrestre de Cristo. Haveria aí uma alusão a Adão que procurou fazer-se igual a Deus (Gn 3,5.22): Cristo escolheu na terra a humildade e a obediência em vez do orgulho e da revolta. Este paralelo antitético entre Adão e Cristo, iniciado aqui, será novamente tratado por Paulo em perspectivas mais amplas (Rm 5,14; 1Cor 15,45-47). Como ilustração por contraste podem-se ver as pretensões divinas do rei do Tiro (Ez 28,6.9), do rei da Babilônia (Is 14,13-14) e o convite irônico a Jó (Jó 40,7-14).

“Mas esvaziou-se a si mesmo” (v. 7a). Do verbo grego que significa “esvaziar” veio o termo kênosis (oposto do pleroma, plenitude divina, cf. Cl 1,19; 2,9; Ef 1,23; 4,10; Jo 1,16). Trata-se menos da encarnação do que do seu modo. Aquilo de que Cristo feito homem se despojou livremente não é a natureza divina, mas a glória que por direito ela lhe conferia, glória que ele possuía na sua preexistência (cf. Jo 17,5) e que deveria normalmente resplandecer sobre a sua humanidade (cf. a transfiguração, Mc 9,2-8p). Ele preferiu privar-se dela para recebê-la apenas do Pai (cf. Jo 8,50.54), como preço do seu sacrifício (vv. 9-11).

“Assumindo a condição de escravo” (v. 7b). A condição de escravo/servo é simplesmente a condição humana submetida a Deus. O termo “servo” opõe-se ao título de “senhor” (v. 11; cf. Gl 4,1; Cl 3,22s). Cristo feito homem adotou um caminho de submissão e de humilde obediência (v. 8). É provável que Paulo esteja pensando aí no “Servo de Javé” de Is 52,13-53,12, um texto-chave do AT para os cristãos porque descreve um messias-profeta (cf. Is 42,1; 61,1) sofrendo e morrendo pelos pecados os povo (cf. At 8,30-35; 3,13; 1Pd 2,21-25; Mt 26,28).

“Tornando-se igual aos homens” (v. 7c), portanto, não apenas um verdadeiro homem, mas um homem como os outros, partilhando de todas as fraquezas da condição humana, exceto o pecado (Hb 2,17).

“Humilhou-se a si mesmo” (v. 8). Se a encarnação é um primeiro aspecto da kênosis, eis o segundo. Como o Servo de Is 53, Cristo escolheu o rebaixamento por obediência até a morrer (cf. Is 53,8.12), “e morte na cruz”, reservada aos malfeitores (Hb 12,2). É o escândalo da cruz, um dos pontos fundamentais da pregação de Paulo (1Cor 1,18-25; 2,1-2; Gl 6,14).

“Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai (vv. 9-11).

“Por isso, Deus o exaltou” (v. 9a; lit.: superexaltou). Foi exaltado (cf. Is 52,13; 53,10-12) pela ressurreição e ascensão, obra por excelência do poder de Deus (cf. 1Ts 1,10; Rm 1,4)

“Lhe deu o Nome” (v. 9b). Conferir um nome é não somente atribuir um título, mas uma dignidade autêntica (cf. Ef 1,21; Hb 1,4). Aqui Paulo pensa no nome de “Senhor” (cf. v. 11; At 2,21.36; Hb 1,4) que no AT grego é a palavra empregada para exprimir o nome impronunciável de Deus (Yhwh, portuguesado: “Javé”; Ex 3,14s). Assim o senhorio de Deus se revela em Jesus na sua extrema humilhação.

O Servo é exaltado acima do universo inteiro a fim de que o gesto de adoração e homenagem devida a Deus somente doravante dirija-se também a Jesus “Senhor” em que Deus se revela e age (cf. Is 45,23; Fl 3,21; Ef 1,20-23; 3,14; 4,10; Cl 1,18-20; Rm 14,11; 1Cor 24-28; Mt 28,9.17; Lc 24,51-52). “Nos céus, na terra e abaixo da terra” é a tríplice divisão do mundo criado (cf. Ap 5,3.13). Debaixo da terra visa aos habitantes da morada dos mortos, de preferência aos demônios (no AT era opinião comum que os mortos não louvem a Deus, cf. Is 38,18-19; Sl 30,10; 88,11-13, aqui está mais em sintonia Sl 22,30).

Evangelho: Jo 3,13-17

O evangelho de hoje dá uma interpretação cristológica, descrevendo a serpente no estandarte (Nm 21,4-9, leitura de hoje) como imagem de Jesus na cruz (v. 14). Nos evangelhos sinóticos, Jesus anuncia sua morte na cruz só depois de certo tempo de pregação (cf. Mc 8,31.34p). Em Jo, João Batista já indicou o sacrifício de Jesus chamando-o “Cordeiro de Deus” (1,29.36).

Sem usar a palavra “cruz” (escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, cf. 1Cor 1,23; Gl 3,13; Dt 21,22s), Jo fala do suplício em termos de “elevação”. As palavras proferidas são dirigidas ao fariseu Nicodemos que procurou Jesus em Jerusalém (3,1).

Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu: o Filho do Homem (v. 13).

Na conversa noturna com o velho Nicodemos, conselheiro membro do Sinédrio (cf. 7,48-52; 12,42; 19,34), Jesus propôs um nascimento novo (nascer de novo, ou seja, do alto, nascer através da água e do Espírito; cf. vv. 3-8). À pergunta de Nicodemos “como é que isso pode acontecer?” (v. 9), Jesus diz que a grande novidade que Deus tem para os homens está no “Filho do Homem” (Jesus), que subiu ao céu porque desceu de lá (alusão à ascensão, que manifestará a origem celeste de Jesus e o entronizará na glória do Filho do homem, cf. Dn 7,13s). O verbo “subiu” está no passado, o que indica que é a comunidade do evangelista que fala aqui, não Jesus histórico.

O título “Filho do Homem”, em Jo, denota uma insistência sobre a humanidade de Jesus, embora sua origem divina, fortemente acentuada (3,13; 6,62), motive os atos nos quais ele antecipa as prerrogativas escatológicas (5,26-29; 6,27.53; 9,35).

Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna (vv. 14-15).

Com o mesmo verbo “levantar/elevar”, o evangelista fala da cruz igual à ascensão, e associa a haste da serpente que curava, com a cruz que salva. Na cruz revela-se o maior ato de amor: a doação de sua própria vida em favor dos homens (cf. 15,13). O Filho do Homem (cf. Dn 7,13; Mt 8,20; 12,32; 24,30) deve ser “levantado”, ao mesmo tempo levantado sobre a cruz e reintroduzido na glória do Pai (1,51; 8,28; 12,32-34; 13,31-32). Para ser salvo, será preciso “olhar” para o Cristo elevado na cruz (Nm 21,8; Zc 12,10; Jo 19,37), isto é, “crer” (vv. 16.18; 6,40; 12,45; 14,9) que ele é o Filho único (3,18; Zc 12,10). Ficar-se-á então purificado graças à água do seu lado traspassado (alusão ao batismo, cf. v. 5; Jo 19,34; Zc 13,1). Fonte de salvação para humanidade é Jesus levantado na cruz (cf. 12,32).

Na cruz vai se revelar a “vida” nova, “para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (v. 15). Em vez de falar do “Reino de Deus” (exceto nos vv. 3.5) como os outros três evangelistas, o quarto evangelista prefere falar da “vida”, eterna ou plena (cf. 1,4; 3,36; 4,14; 5,24.26; 6,27.33 etc., cf. 8,12; 10,10; 11,25; 14,6; 20,31; cf. Mc 10,17p).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1991) comenta: Deus, Senhor absoluto da vida (Gn 9,4s; Dt 32,39; Sl 36,10), transmitiu seu poder ao Filho (5,21; 10,18; 17,2). O Filho é a vida (11,25; 14,6), ele tem em si a vida e a dá (5,26) aos que nele creem (1,4. 12; 4,14; 5,24; 6,35; 20,31). Essa vida é simbolizada pela água (4,14) e alimentada pela palavra (6,35). Ela é frequentemente qualificada de “eterna”, palavra que denota uma qualidade propriamente divina, pela qual a vida ultrapassa o que é corporal e o tempo, a duração mensurável (cf. Gn 21,3; Is 40,28; Sl 90,2; Sl 90,2; Sb 5,15-16; etc.). Ela é prometida aos que creem (cf. 2 Cor 4,18), mas já lhes é dada (3,36; 5,24; 6,40.68; 1Jo 2,25) e se consumará na ressurreição (6,39-40.54; 11,25-26; cf. também Mt 7,14; 18,8; 19,16).

Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele (vv. 16-17).

“Deus amou tanto o mundo”. Em Jo, o “mundo” pode significar, como aqui, toda criação amada por Deus (17,5.24; Sb 11,24) ou a terra habitada por seres humanos (17,25; 16,21). Muitas vezes, porém, é o mundo que se afastou de Deus, a humanidade perdida que se fechou à luz e odeia os discípulos de Jesus “porque não pertencem ao mundo” como ele também não (17,14).

Deus ama até as últimas consequências (cf. 13,1), “que deu seu Filho unigênito/único”; em vez de “deu” talvez seja melhor traduzir “entregou” (palavra-chave da paixão) “o Filho unigênito” (1,18: “o unigênito que é Deus no seio do Pai”); talvez com alusão oblíqua ao sacrifício ao sacrifício de Isaac (Gn 22,2.16; cf. Rm 8,32; Gl 2,20; 1Jo 4,9-10).

Deus não quer que os homens se percam, nem sente prazer em condená-los (cf. Ez 18,23). Ele manifesta todo o seu amor através de Jesus, para salvar e dar a vida a todos.

Como os israelitas olharam com fé para a serpente de bronze e foram curados da picada da cobra, os cristãos olham para o crucifixo com fé e serão salvos da mordida do diabo, que é a morte (cf. Gn 3). A serpente de bronze livrou de uma morte repentina, Jesus crucificado dará a vida eterna. Como era necessário eliminar elementos mágicos da história da serpente (Sb 16,5-14), deve-se evitar uma devoção mágica de imagens de Jesus e dos santos. Não é a imagem que opera milagres, mas a pessoa representada por ela. Mas uma imagem de Jesus na cruz é um auxílio forte para ter fé em Deus que está conosco também nas dificuldades (sofrimento e morte), não nos abandona nunca, mas nos ama até as últimas consequências.

O site da CNBB comenta: Todos os que creem no Filho de Deus elevado entre o céu e a terra, suspenso na cruz, recebem dele a vida eterna. A cruz, instrumento de suplício e de maldição, torna-se, em Jesus Cristo, instrumento de salvação para todas as pessoas. Por isso, somos convidados a nos associar à cruz de Cristo. Quando falamos em união à cruz, logo pensamos em sofrimento, mas devemos pensar em algo que é mais importante que o sofrimento: Jesus, no alto da cruz, não era nada para si, mas todo para os outros, nos mostrando, assim, que cruz significa não viver para nós mesmos, mas fazer da nossa vida um serviço a Deus e aos irmãos e irmãs. A cruz só pode ser verdadeiramente compreendida sob o horizonte do amor maior.

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