15 de fevereiro de 2017 – Quarta-feira, 6ª semana

Leitura: Gn 8,6-13.20-22

Continuamos com a narrativa do dilúvio, ontem ouvimos como começou, hoje como termina esta primeira catástrofe global. Esta narrativa, comum a muitos povos, apresenta-se na Bíblia como uma combinação de duas tradições, como na origem do mundo e do ser humano.

A tradição sacerdotal (escrita no exílio da Babilônia no sec. VI), chamando Deus de Elohim (Gn 1,1-2,4a), mostrou o diluvio como retorno ao caos anterior à criação (1,2.6-10): as águas de baixo e as águas de cima rompem os diques que Deus lhes pusera (1,7), as águas das profundezas da terra juntando-se às águas que estão acima do firmamento (7,11; 8,2) e cobrindo tudo novamente (7,19-23), por cinco meses (7,11 e 8,4, cf. 7,24 e também 5,1-32 e 11,10-32) ou “cento e cinquenta dias” (7,24; 8,3). A Bíblia do Peregrino (p. 25) comenta 8,1-19: Começa a inverter-se o processo para uma re-criação da ordem. Sopra o vento (1,2), separam-se as águas inferiores e superiores (1,7), aparecem a terra firme (1,9) e as plantas (1,11), as aves voltam ao seu elemento (1,20), e o homem sai para repovoar a terra (1,28).

Passados quarenta dias, Noé abriu a janela, que tinha feito na arca, e soltou um corvo, que ficou revoando, até que secassem as águas sobre a terra (vv. 6-7).

Nossa liturgia apresenta mais a outra tradição, antigamente chamada de javista porque usa o nome divino Yhwh (Javé, traduzido por Senhor). Segundo esta narrativa, o dilúvio é causado por uma chuva torrencial por “quarenta dias e quarenta noites” (7,4.12; 8,6), é precedido de uma semana (”sete dias”) e seguido de três outras. Outro sinal da combinação de diferentes narrativas pode ser visto na contradição entre os vv. 8,5 e 8,9.

Em 8,4 “a arca encalhou sobre os montes de Ararat” (Urartu em babilônico) que são os montes ao norte da Assíria, ao sul do Cáucaso, hoje na fronteira entre Turquia, Irã e Armênia. O pico mais alto é de 5137 metros acima do nível do mar e coberto de gelo e neve, é a montanha mais alta de toda região bíblica (crescente fértil da Mesopotâmia, Israel e Egito).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 34) comenta: No relato babilônico, três pássaros soltos, um após o outro: o corvo, a pomba e a andorinha. O “corvo”, que naquele relato desempenhava um papal importante, já não é mais do que a testemunha de uma estrutura anterior no relato bíblico, que enfatiza a pomba, símbolo de fecundidade.

Soltou, também, uma pomba para ver se as águas tinham baixado sobre a face da terra. Mas a pomba, não achando onde pousar, voltou para junto dele na arca; porque as águas ainda cobriam a superfície de toda a terra. Noé estendeu a mão para fora, apanhou a pomba e recolheu-a na arca. Esperou, então, mais sete dias e soltou de novo a pomba. Pela tardinha, ela voltou, e eis que trazia no bico um ramo de oliveira com as folhas verdes. Assim, Noé compreendeu que as águas tinham cessado de cobrir a terra. Esperou ainda sete dias, e soltou a pomba, que não voltou mais (vv. 8-12)

A pomba com o ramo de oliveira foi promovida a símbolo universal pela paz, principalmente pelo Congresso da Paz em Paris 1949 que divulgou um desenho de Picasso que chamou sua filha Paloma (pomba em espanhol). Comumente o pombo é representado ainda em voo para lembrar a quem vê o seu papel como mensageiro.

A Wikipédia comenta: O pombo então volta carregando um ramo de oliveira em seu bico e Noé constata que o Dilúvio havia baixado e que novamente havia terra para o Homem. (Gênesis 8:11). Isso simbolizava que Deus havia terminado a sua “guerra” contra a humanidade. O aparecimento do arco-íris (Génesis 9:12-17) ao final da história do Dilúvio também representa a paz, por onde Deus direciona o seu “arco” contra si mesmo, um antigo sinal de cessão de hostilidade.

No batismo de Jesus (Mc 1,9-11p), a pomba aparece acima das águas do Jordão como sinal do Espírito Santo e junto com a voz do céu lembra Is 42,1-4 (cf. Sl 2,7) que indica que o messias não será um guerreiro violento, mas de paz e amor. Na mitologia dos povos antigos da Babilônia até a Grécia, a pomba era atributo da deusa do amor (cf. Ct 1,15; 2,14; 4,1; 5,12).

Foi no ano seiscentos e um da vida de Noé, no primeiro dia do primeiro mês, que as águas se retiraram da terra. Noé abriu o teto da arca, olhou e viu que toda a superfície da terra estava seca (v. 13).

A longevidade dos patriarcas já aparece na lista genealógica do cap. 5 (tradição sacerdotal escrito no exílio da Babilônia) com idades maiores ainda. A Nova Bíblia Pastoral (p. 27) comenta: Atribuindo idades extraordinariamente longas a antepassados e reunindo a história de Israel com a criação do mundo e com o dilúvio, os exilados imitam a mitologia da Babilônia. A Bíblia de Jerusalém (p. 38) comenta: Uma extraordinária longevidade é atribuída aos primeiros Patriarcas, porque se acreditava que a duração da vida humana diminuíra segundo os grandes períodos do mundo: ela não será mais do que 200 a 6000 anos entre Noé e Abraão, e de 100 a 200 anos para os Patriarcas hebreus; e essa diminuição era relacionada com o progressos da mal (cf. 6,3 na tradição javista), pois uma longa vida é uma bênção de Deus (Pr 10,27) e será um dos privilégios da era messiânica.

Então Noé construiu um altar ao Senhor e, tomando animais e aves de todas as espécies puras, ofereceu holocaustos sobre o altar (v. 20).

Nossa liturgia saltou a saída de Noé, sua família e os animais da arca conforme a ordem de Deus de repovoar a terra e multiplicar-se (vv. 14-19, cf. 1,22.28).

Para a tradição javista, as ofertas a Deus tinham aparecido desde Caim e Abel (4,3-5) e a invocação do nome do Senhor (Yhwh), com Enós (4,26). Aqui temos agora o primeiro “holocausto” (palavra grega, “queimado inteiro”; em hebraico shoá, ambas os termos foram aplicados também ao genocídio dos judeus nos campos de concentração nazistas); é uma imolação total de um animal sobre um altar, provavelmente um altar de terra (cf. Ex 20,24).

O Senhor aspirou o agradável odor e disse consigo mesmo: “Nunca mais tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, pois as inclinações do seu coração são más desde a juventude. Não tornarei, também, a ferir todos os seres vivos, como fiz. Enquanto a terra durar, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite, jamais hão de acabar” (vv. 21-22).

“O Senhor aspirou o agradável odor (lit. o odor pacífico)”. Esse antropomorfismo passará para a linguagem técnica do ritual de sacrifício (cf. 29,18.25; Lv 1,9.13; Nm 28,1, etc.). A expressão de origem babilônica exprime a aceitação da divindade. O autor bíblico elimina uma observação trivial do relato babilônico, no qual “os deuses se reúnem como moscas por sobre o sacrificador”. O holocausto aceito por Deus ab-roga a maldição que pesa sobre o solo por causa do homem (3,17).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 29) comenta: Na Mesopotâmia ensinava-se que o povo devia trazer ofertas aos templos para evitar novo dilúvio. Mas, na resistência à dominação assíria e babilônica, os israelitas libertam-se desse medo, ao mostrar que Javé não impõe condição e promete nunca mais realizar tamanha destruição (8,20-22).

A nova era da (pre-)história se inaugura com o sacrifício copioso oferecido ao Senhor; e este responde com uma promessa: “Nunca mais tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem”, apesar de que “as inclinações do seu coração são más” (com esta expressão começou o relato do dilúvio, cf. 6,5). Deus sabe que o coração do homem permanece mau, mas ele salva sua criação e, apesar do homem, a conduzirá para onde quiser. As leis do mundo são restabelecidas para sempre. O ritmo das estações, dias e noites será sinal de ordem e estabilidade (1,14-18). A perversidade humana não perturbará a permanência das leis da natureza, que são um dom de Deus (cf. Jr 33,25s; Mt 5,45)    

A Bíblia de Jerusalém (p. 42) comenta: O coração é o interior do homem, distinto do que se vê e sobretudo da “carne” (2,21). É a sede das faculdades e da personalidade, de onde nascem pensamentos e sentimentos, palavras, decisões e ações. Deus o conhece profundamente, quaisquer que sejam as aparências (1Sm 16,7; Sl 17,3; 44,22; Jr 11,20). O coração é o centro da consciência religiosa e da vida moral (Sl 51,12.19; Jr 4,4+; 31,31-33; Ez 36,26). É em seu coração que o homem procura a Deus (Dt 4,29; Sl 105,3; 119,2.10), que o ouve (1Rs 3,9; Eclo 2,29; Os 2,16; cf. Dt 30,14), que o serve (1Sm 12,20.24), o louva (Sl 111,1), o ama (Dt 6,5). O coração simples, reto, puro, é aquele que não está dividido por nenhuma reserva ou segunda intenção e por nenhuma falsa aparência em relação a Deus ou aos homens (cf. Ef 1,18).

 

Evangelho: Mc 8,22-26

A cura do cego é muito parecida em estrutura e gestos com procedentes do surdo (7,31-37). Na tradição anterior de Mc, estas duas curas deviam ter formado um par contado para exaltar Jesus como aquele que renova a criação ferida e traz a salvação messiânica profetizada em Is 35,5-6 (cf. 7,37). Com essa cura, a profecia de Is 35,5-6 (curas de cegos, surdos, coxos, mudos) se completou no Evangelho.

Jesus e seus discípulos chegaram a Betsaida (v. 22a).

Betsaida (hebraico: lugar de pesca) fica à margem setentrional do lago Genesaré. Segundo o quarto evangelho, três apóstolos eram naturais desta cidadezinha: Pedro, André e Filipe (Jo 1,44; 12,21). Jesus passou várias vezes ali (cf. Mc 6,45; Lc 9,10) e operou também milagres (cf. Mt 11,21p). Será que a cura em seguida tem algo ver com Pedro cuja profissão de fé é narrada em seguida (vv. 27-33)?

Algumas pessoas trouxeram-lhe um cego e pediram a Jesus que tocasse nele. Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, colocou as mãos sobre ele, e perguntou: “Estás vendo alguma coisa?” (vv. 22b-23).

Na cura do surdo, vimos também pessoas anônimas que trouxeram um deficiente, e descreve-se o mesmo afã de afastar-se e a comunicação pelo tato, ou seja, pela saliva e pela mão (dedos). Os antigos atribuíam à saliva virtudes terapêuticas: a de Jesus é milagrosa. De fato, a saliva tem certa qualidade anti-inflamatória como se pode observar em animais lambando suas feridas. Em Jo 9,6, Jesus “cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre os olhos do cego.”

O homem levantou os olhos e disse: “Estou vendo os homens. Eles parecem árvores que andam.” Então Jesus colocou de novo as mãos sobre os olhos dele e ele passou a enxergar claramente. Ficou curado, e enxergava todas as coisas com nitidez. Jesus mandou o homem ir para casa, e lhe disse: “Não entres no povoado!” (vv. 24-26).

Novo e único é o processo da cura em duas etapas, não era cego de nascença (cf. Jo 9), pois soube identificar as figuras com arvores. A Bíblia de Jerusalém traduz “começou a ver” em vez de “levantou os olhos”. A cura é constada, mas falta uma aclamação do povo (cf. 7,37) porque está ausente aqui. Jesus manda o homem ir à casa (cf. 2,11; 5,19) sem passar pelo povoado, porquê?

Como em outras ocasiões, Jesus não quer a divulgação da cura. É o chamado “segredo do messias”, uma característica no Evangelho de Mc (cf. 1,24s.34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,25.30; 9,9): Jesus não quer ser confundido com um messias guerreiro igual a Davi ou com um médico famoso que prolonga a vida dos doentes. A sua missão de messias é salvar o povo através da doação de sua própria vida, e isso só se revelará na cruz (cf. 10,45; 15,39).

As curas nos evangelhos, porém, tem significado simbólicos. Jesus é a luz do mundo, é ele que ilumina as pessoas que não conseguem enxergar a realidade e o segredo da sua pessoa. Em Mc, no trecho anterior (evangelho de ontem), Jesus acabou de censurar os discípulos: “Tendo olhos, vós não vedes, e tendo ouvidos, não ouvis?” (8,18). No contexto da cidade Betsaida ainda, esta cura do cego pode aludir à fé (visão) de Pedro no trecho seguinte: ele começa enxergar que Jesus é o messias, mas ainda o confunde com um messias guerreiro; só depois da cruz e da ressurreição enxergará “com nitidez”.

O site da CNBB comenta: Jesus retira o homem do povoado, não o cura totalmente na primeira vez que lhe impõe as mãos, o deixa totalmente curado na segunda vez que lhe impõe as mãos e diz para ele não entrar no povoado. Esses elementos nos ajudam numa reflexão sobre o Evangelho de hoje. As pessoas vivem em sociedade e, geralmente, assumem integralmente os seus valores. Esses valores muitas vezes se tornam um obstáculo para a atuação da graça e para a verdadeira libertação dessas pessoas. Depois que a libertação acontece, essas pessoas não podem assumir novamente todos os valores da sociedade, pois voltarão a viver na escuridão do erro e do pecado.

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