15 de janeiro de 2017 – 2º Domingo, Ano A

1ª Leitura: Is 49,3.5-6

A primeira leitura do domingo é sempre escolhida em vista do evangelho, hoje falando de João Batista que apresenta Jesus como “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). A leitura de hoje nos apresento o Servo de Deus que foi chamado “desde o ventre materno” (Is 49,1.5); pode se aplicar a João Batista (leitura do dia do seu martírio, 29 de agosto) ou ao próprio Jesus, “luz das nações” (Is 49,6).

Deutero-Isaías (Segundo Isaías, caps. 40-55) escreve no exílio babilônico (por volta de 550 a.C.) numa situação triste, mas vê luz no horizonte. Ele apresenta uma figura que os cristãos veem como profecia sobre Jesus Cristo (cf. At 8,32-35). Em quatro poemas (ou cânticos), um servo ungido pelo Senhor com o Espírito assume uma missão, não é violento, mas cuidadoso (42,1-4); Apesar de dificuldades, sua atuação vai para além de Israel (2º canto: 49,1-6); depois de sofrer perseguição (3º canto: 50,4-9), morre inocente, “como um cordeiro conduzido ao matadouro”, (Is 53,7) salvando o povo dos seus pecados através da própria morte é recompensado por Deus (4º canto: 52,13-52,12). Na Semana Santa, todos os quatro cantos são lidos na íntegra.

Hoje ouvimos o segundo canto na qual o Servo de Deus oscila entre vocação e decepção, entre desânimo e nova esperança (os vv. 1-2.4, porém, são omitidos pela nossa liturgia). Ele confessa certo desânimo, mas uma nova revelação (“agora”, vv. 5-6) dá lhe sua força e aumenta o alcance da sua missão. O Servo não só deve recolher as doze tribos dispersas de Israel e reconduzir os desterrados do exílio, mas ser luz também para as outras nações, os pagãos.

O Senhor me disse: “Tu és o meu Servo, Israel, em quem serei glorificado” (v. 3).

“Tu és o meu Servo”, Deus falou as mesmas palavras já em 41,9, mas dirigidas a Israel (41,8), e Javé se gloria em Israel (44,23). Pode-se entender que Israel seja uma logomarca para o profeta que é servo como “resto santo” (cf. Is 10,20s) do povo Israel, representando Israel como “verdadeiro israelita” (Jo 1,47) que não desiste da luta (cf. Gn 32,25-30).

A grandeza da missão supera as condições do Servo (cf. v. 4), mas Deus se encarrega de pagar o serviço (cf. Gn 31,42; Jr 15,10-18; Ez 33,30-33). Pela sua vocação (vv. 1-3), o profeta sabe que tem razão; no momento, porém, o seu povo não o reconhece e faz sofrer, mas no tempo futuro, Deus o recompensará e lhe dará razão diante dos inimigos (cf. 50,7-9; 53,11c-12).

E, agora, diz-me o Senhor – ele que me preparou desde o nascimento para ser seu Servo – que eu recupere Jacó para ele e faça Israel unir-se a ele; aos olhos do Senhor esta é a minha glória (v. 5).

Só uma nova palavra do Senhor pode renovar o ânimo do profeta (cf. Jr 15,18s), que será pronunciada em v. 6. Antes o profeta lembra, como no v. 1, sua vocação desde o ventre materno e sua missão dirigida a Jacó=Israel (Jacó era o neto de Abraão e recebeu o apelido Israel, seus filhos representam as doze tribos do povo, cf. Gn 32,29; 49,1.28). Pode-se entender que a missão do profeta não se dirige apenas aos judeus (da tribo de Judá, do reino do Sul), mas inclui também as tribos do reino do Norte de Israel superando assim a divisão dos dois reinos (desde Salomão, cf. 1Rs 12).

Disse ele: “Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra” (v. 6).

A nova palavra de Deus surpreende: Apesar do insucesso do profeta, aumenta ainda o alcance da missão, será “luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra” (cf. Lc 2,32; At 1,8; 13,47). Já em 42,1.4.6, os povos (pagãos) e as nações distantes faziam parte da missão, mas agora Deus a reforça de maneira mais explícita.

Como o profeta poderia “restaurar as tribos de Jacó”? Através de sua pregação profética provocar a conversão e reconciliação? Renovar a aliança com todas as tribos igual a Moisés e Josué (Ex 24,3-8; Js 24), ou convocá-las em Jerusalém para festa (Sl 122), como tentou fazer o rei Ezequias na Páscoa (2Cr 30)?

Em v. 3, o Servo de Deus é chamado de “Israel” (cf. 44,21), em vv. 5-6 ele mesmo deve reconduzir as tribos de Israel. Ele é um indivíduo ou uma figura coletiva? Ora é o povo de Israel, ora seu chefe e salvador. Neste segundo canto, ele se apresentou como profeta chamado por Deus. O terceiro e quarto cântico trarão mais luz sobre sua personalidade (50,4-9; 52,13-52,12).

Como ele pode ser a “luz das nações”? Já em 42,1.4 ele deve levar o direito (mispat) aos povos que esperam por seu ensinamento (tora, lei). A “luz” é metáfora tradicional por: lei, justiça ensinamento, “orientação” porque o sol nasce no oriente (cf. Os 6,3.5; Mq 7,8s; Sf 3,5; Ml 3,20; Sl 37,6). No Antigo Oriente, o deus solar era também o deus da justiça porque clareia tudo (cf. Jo 3,19-21). Na parte superior da estela do código de leis do rei Hamurabi, há uma imagem: Shamash, o deus do sol e da justiça, entrega os símbolos da autoridade ao rei babilônico (2700 a.C.)

No NT, há três interpretações deste segundo canto do servo:

1) O povo israelita, que ouve a nova lei de Jesus no sermão da montanha, deve ser a “luz do mundo” por suas boas obras (Mt 5,14-16).

2) O próprio messias Jesus é a “luz do mundo” (Jo 8,12), “luz das nações” (Lc 2,32).

3) A missão dos apóstolos se estende como “luz das nações… até os confins do mundo” (At 13,47; cf. 1,8). Um filósofo judeu, Franz Rosenzweig, constatou que não foi o judaísmo, mas o cristianismo que levou a Bíblia hebraica até as ilhas distantes, conforme as profecias de Isaías.

 

2ª Leitura: 1Cor 1,1-3

A segunda leitura no Tempo Comum não é escolhida por afinidade ao evangelho (ou à 1ª leitura), mas é uma leitura contínua (trechos escolhidos por vários domingos) de uma carta de um apóstolo. Hoje, por coincidência, liga-se ao tema da vocação das outras leituras.

Ouvimos nos próximos domingos trechos da primeira carta aos Coríntios que Paulo escreveu por volta de 56 d.C. em Éfeso. A Bíblia Pastoral comenta na introdução: Corinto era uma rica cidade comercial, com mais de 500.000 habitantes, na maioria escravos. Nesse porto marítimo se acotovelava gente de todas as raças e religiões à procura de vida fácil e luxuosa, criando ambiente de imoralidade e ganância. A riqueza escandalosa de uma minoria estava ao lado da miséria de muitos. Surgiu, inclusive, uma expressão: «Viver à moda de Corinto», que significava viver no luxo e na orgia. Paulo, entre os anos 50 e 52, permaneceu aí durante dezoito meses (At 18,1-18) e fundou uma comunidade cristã formada por pessoas da camada mais modesta da população (1Cor 1,26-28).

Na leitura de hoje, na saudação (vv. 1-3), já se encontram grandes assuntos da carta: a vocação do apóstolo, a fraternidade, a santidade da assembléia destinatária, a unidade de toda a igreja em Cristo e o augúrio de graça e paz (cf. Rm 1,1). Na ação de graças em seguida (vv. 4-9, omitida pela nossa liturgia) anunciam-se a palavra e a sabedoria cristã, os dons ou carismas cristãos e a perseverança até o final no Dia do Senhor.

A Bíblia do Peregrino (p. 2738) comenta os vv. 1-9: A introdução à carta contém, como de costume, saudação e ação de graças. Na saudação mencionam-se remetente e destinatários; a ação de graças é específica nesta carta. Pode-se se notar no grego o jogo com a raiz “kal” – à qual pertencem chamar (vv. 1.2.9), invocar (v. 2), igreja (= convocação, v. 2). À raiz “char”- pertencem graça (vv. 3.4), dar graças (v. 4) e dom ou carisma (v. 7). Nota-se também a presença dominadora de Jesus Cristo, mencionado nove vezes em nove versículos mais um pronome: todo o sentido do evangelho é orientar para a pessoa de Jesus Cristo.

Paulo, chamado a ser apóstolo de Jesus Cristo, por vontade de Deus, e o irmão Sóstenes, à Igreja de Deus que está em Corinto: aos que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso. Para vós, graça e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo (vv. 1-3).

“À Igreja de Deus”, ou “à assembleia de Deus”, é uma expressão cara a Paulo (10,32; 11,16.22; 15,9; 2Cor 1,1; Gl 1,13; 1Ts 2,14; 2Ts 1,4; 1Tm 3,5.15; cf. At 20,28; “as igrejas de Cristo” em Rm 16,16; cf. Mt 16,18; At 5,11; 7,38). Inspira-se no AT: a assembleia do Senhor (qahal Yhwh, cf. Dt 23,2-9 etc.) era a reunião do povo convocado por Deus. Aqui designa a Igreja local (”que está em Corinto”) na qual se efetua concretamente esta reunião, sendo fortemente afirmada também a ligação com a Igreja universal. A saudação se dirige a uma igreja local, aludindo a outras igrejas (“Senhor deles e nosso” pode ser interpretado como aposto a “todo lugar”).

Paulo se apresenta com seu título de “apóstolo” (a palavra grega quer dizer: “enviado”); como embaixador, menciona o nome e título de quem o chamou e enviou (Gl 1,15s; At 26,14-18): “Jesus Cristo (messias)”. O encargo vem da decisão de Deus, que o “chama”, é sua “vocação” (como a dos profetas no AT). A ela corresponde o “chamado” à “santidade” dos cristãos de Corinto (que atualiza o chamado à santidade de todo o povo, como na “lei da santidade” em Lv 17-26). Pelo batismo ficaram consagrados (“santificados”) a Cristo Jesus (cf. Jo 17,17.19; cf. “consagrou os seus chamados”, Sf 1,7; outras consagrações: Dt 15,19; Jr 1,5). A saudação se estende a outras igrejas, cuja identificação comum consiste em “invocar Jesus Cristo como Senhor” (kýrios, cf. Jl 3,5; Fl 2,11). A expressão vem de Jl 3,5: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. O NT (Novo Testamento) cita esse texto transferindo para Jesus o que o AT (Antigo Testamento) diz de Deus (At 2,21; Rm 10,13 etc.).

O “irmão Sóstenes” é provavelmente aquele que era o chefe da sinagoga em Corinto (cf. At 18,17, espancado pelo judeus devia ter mudado para o grupo de Paulo).

“Graça e paz” une a saudação grega (charis; cf. Lc 1,28) com a hebraica (shalom) numa dimensão nova.

Evangelho: Jo 1,29-34

No segundo domingo do Tempo Comum não entra o evangelista do Ano A, B ou C, mas um evangelho de Jo, hoje sobre João Batista que apresenta Jesus como “Cordeiro de Deus”. Depois de esclarecer sobre sua própria função (missão) diante das autoridades (vv. 19-28), João Batista dá testemunho sobre Jesus diante de um público não definido. Começa um ciclo de anotações cronológicas de uma semana que se concluirá no casamento de Caná (vv. 29.35.42; 2,1).

João viu Jesus aproximar-se dele e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (v. 29).

O quarto evangelho não narra o batismo de Jesus diretamente como os sinóticos (Mc, Mt, Lc), mas através do testemunho de um terceiro: Só João Batista vê o Espírito e ouve a voz (vv. 33-34; dif. Mc 1,10: só Jesus o viu) e já antecipa aqui a interpretação da missão do messias. Enquanto no evangelho mais velho, em Mc, a identidade messiânica e a morte de Jesus na cruz estão cercadas de segredos, no evangelho mais novo, em Jo, a primeira palavra sobre Jesus (fora do hino: vv. 1-18 não falam da morte, só da carne em v. 14) é sobre sua missão redentora: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (vv. 29; cf. v.36 e 1 Jo 3,5).

A frase evoca a morte expiatória de Jesus misturando duas imagens tradicionais: por um lado, a do “servo sofredor” de Javé que assume os pecados da multidão (do mundo) e que, inocente, se oferece “como cordeiro” para carregar os pecados do povo (Is 53,7.11s), e por outro lado, a do “cordeiro pascal”, símbolo de libertação do povo hebreu (Ex 12,1-28). Será título emblemático de Jesus (cf. 1Cor 5,7; 1Pd 1,18-19; Ap 5,6-12). No evangelho de João, Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, sacrificado na cruz na exata hora quando os sacerdotes imolavam milhares de cordeiros no templo para refeição pascal (cf. 19,14.34.36).

Foi observado que, pela fonética na língua aramaica, “servo” e “cordeiro” parecem ser a mesma palavra. Jesus é o Cordeiro/Servo de Deus que dará sua vida para expiar os pecados do povo, morre inocente, “como um cordeiro conduzido ao matadouro”, (Is 53,7) salvando o povo dos seus pecados através da própria morte é recompensado por Deus (cf. o canto do Servo de Javé: Is 52,13-52,12). Pode-se pensar ainda no bode que tira os pecados do povo no dia da expiação (Yom kippur; Lv 16,20-22).

Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim. Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel” (vv. 30-31).

Em v. 30, João afirma a prioridade de Jesus: apesar de nascer e “vir depois de mim, ele existia antes de mim” (pré-existência e origem divina, cf. 1,1.14-15). O quarto evangelho não apresenta o Batista como grande pregador da conversão dos pecados, mas como testemunha qualificada.

E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo. Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!” (vv. 32-34).

João batizava só com água (sinal de conversão e purificação), mas não com o Espírito Santo. Só o Messias (Cristo), o Filho de Deus (vv. 34.41.49) tem o Espírito (cf. Is 11,2; 42,1; 61,1). Ele pode transmiti-lo, mas só após sua ressurreição (cf. 7,39; 14,26; 16,7-8; 20,22; Lc 24,49; At 1,5; 2; Rm 5,5). O Espírito desce sobre Jesus “como pomba” (cf. Mc 1,9-10p). Em grego (pneuma) e hebraico (ruah), Espírito é a mesma palavra do que “ar, vento” (cf. Gn 1,2); um pássaro é um símbolo propício. A pomba é símbolo tradicional de paz (cf. Mt 10,16), amor (Ct 2,14) e nova vida após a purificação dos pecados através do dilúvio (Gn 8,8-12); ela combina com o nome do messias, “príncipe da paz” (Is 9,5), e a conduta do “servo de Javé” (Is 42,1-3; 50,5s; 53) que não usa violência, mas sofre para pagar os pecados do povo. A pomba também é animal para sacrifícios (cf. Lv 1,14; Lc 2,34).

Só o quarto evangelho salienta que o Espírito “permanece” sobre Jesus (vv. 32-33); esta palavra indica a preocupação do evangelista diante da crise na comunidade e atual ainda hoje: Muitos foram batizados e crismados, mas “não permaneceram” na comunidade (cf. Jo 8,31; 15,4-7.9-10.16; 1Jo 2,19; 2Jo 9).

O site da CNBB comenta: João Batista é o único profeta que profetizou o Messias, manifestou a sua presença no meio dos homens e falou sobre a sua missão de tirar o pecado do mundo. É ele quem batiza o autor do próprio batismo e presencia a vinda do Espírito Santo sobre Jesus. Por fim, o evangelho conclui com o testemunho maior de João Batista a respeito de Jesus: “Este é o Filho de Deus”. A vida e a missão de João Batista só podem ser entendidas tendo como centro o Messias, nos mostrando a centralidade que Jesus deve ter nas nossas vidas e no nosso trabalho evangelizador.

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