15 de junho de 2017 – Quinta feira, Corpus Christi – Ano A

 

1ª Leitura: Dt 8,2-3.14b-16ª

A 1ª leitura é tirada do livro de Deuteronômio. Em contraste com os profetas que consideravam a estadia do povo de Israel no deserto como uma época ideal (cf. Os 2,16ss), o Dt apresenta aqui estes quarenta anos como uma prova (cf. já 4,35). O redator sacerdotal de Nm 14,26-35 os apresentou como castigo.

Moisés falou ao povo, dizendo:

Esta introdução é inserida pela nossa liturgia para situar a nossa leitura. Na verdade, o livro de Dt como todo são “estas palavras que Moisés dirigiu a todo Israel, no outro lado do Jordão” (1,1a). O núcleo do Dt é o código legal (caps. 12-26) oriundo do reino do norte e aumentado nas cortes de Ezequias e Josias em Jerusalém, ao qual foram acrescentados no (pós-)exílio mais caps. como introdução e epílogo, situando Moisés e o povo de Israel pouco antes da entrada na terra prometida. Assim corresponde a situação dos leitores que voltam do exílio e povoam a terra de Israel novamente.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 208) comenta: Com base na narrativa pós-exílica da caminhada pelo deserto, busca-se inculcar a obediência aos mandamentos. Para prover a vida, porém, a narrativa oficial deve ser exorcizada do seu espírito de dominação e violência, como faz Jesus em Mt 4,1-11.

Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor teu Deus te conduziu, esses quarenta anos, no deserto, para te humilhar e te pôr à prova, para saber o que tinhas no teu coração, e para ver se observarias ou não seus mandamentos. Ele te humilhou, fazendo-te passar fome e alimentando-te com o maná que nem tu nem teus pais conheciam, para te mostrar que nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor (vv. 2-3)

A Bíblia do Peregrino (p. 309) comenta o cap. 8: Este capitulo é escrito com a perspectiva da prosperidade econômica na terra, que se transforma em tentação ao favorecer uma concepção imanente da vida. O ciclo produção – consumo de explica por si; ele se justifica e se fecha à intervenção de Deus: sua explicação adequada é a força e o talento humano aplicados a uma terra boa. Deus desaparece do horizonte pratico: é esquecido; não é necessário, nem para realizar o processo nem para explicá-lo. O resultado é que o povo peca contra o primeiro mandamento da lealdade total, de modo racionalista, iluminado, sem substituir o Senhor por outros ídolos.

Contra a tentação do esquecimento, o autor propõem o remédio da memória, não só do Senhor, mas também de sua ação histórica. Remonta-se ao momento crítico em que os israelitas vão entrar na terra. Entrada que não é um dado neutro, que está aí, mas é dom histórico, contingente. Olha para trás, para o deserto, que impunha uma visão transcendente da existência, e projeta essa experiência no presente – futuro – na ficção. A história gravita, assim, no presente, revelando a sua contingência. O que é dom pode-se perder. A vida na terra continua sendo caminho. A prosperidade é dom do Senhor, bênção da aliança pelo cumprimento dos mandatos. (Não era a prosperidade que caracterizava a vida dos judeus sob o domínio persa.)

Sobre o tema da provação no deserto, cf. 33,8: Ex 15,24; 17,2 etc. Na decisão livre, o homem se realiza e se manifesta; Deus, que o conhecia por dentro, o conhece agora na execução. Deus é como pai que educa seu filho, Israel como aluno que tem que passar por provas para aprender (v. 5). Outra interpretação possível do v. 2b: “para que percebas o que existe dentro do teu coração”

O povo deve percorrer três etapas interligadas: recordar, reconhecer, guardar (vv. 2.5.6). Lembra três aspectos do deserto, caminho (v. 2), alimento (v. 3), veste (v. 4). Recorde-se o dom do maná e as normas que regulam o seu uso (Ex 16).

“Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor” citado na tentação de Jesus em Mt 4,4 e Lc 4,4. A vida depende não só do alimento, mas também da palavra de Deus, que se pronuncia como mandato:

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 281) comenta: O que sai da boca do homem ou do Senhor é a palavra (23,24 Nm 30,3,13; Jr 17,16; Sl 89,35). O maná não sai da boca de Deus, mas, anunciado pela palavra divina (cf. Ex 16,4), é o sinal de eficácia e da fidelidade desta palavra.

A Bíblia de Jerusalém (p. 287) comenta: Iahweh, que pode criar tudo pela sua palavra, faz os israelitas viver pelos mandamentos (miçwah) que saem (moça’) de sua boca. – Sobre esse texto, retomado por Mt 4,4p, ver Am 8,11; Ne 9,29; Pr 9,1-5; Sb 16,26; Eclo 24,19-21; Jo 6,30-36.68.

Não te esqueças do Senhor teu Deus que te fez sair do Egito da casa da escravidão, e que foi teu guia no vasto e terrível deserto, onde havia serpentes abrasadoras, escorpiões, e uma terra árida e sem água nenhuma. Foi ele que fez jorrar água para ti da pedra duríssima, e te alimentou no deserto com maná, que teus pais não conheciam (vv. 14b-16a).

A Bíblia do Peregrino (p. 309) comenta: O tema do esquecimento serve habilmente para introduzir a lembrança da libertação em duas etapas: saída da escravidão e caminho pelo deserto; a entrada na terra se inclui na disposição do capitulo… O deserto está transfigurado na lembrança como síntese de sede, fome e animais venenosos; tudo superado pela proteção divina.

As “serpentes abrasadoras” (v. 15) se encontram também em Nm 21,6-9 (o mesmo adjetivo “abrasador” designa os “serafins” a vocação de Isaías (Is 6,2). Sobre os acontecimentos no deserto, cf. Sl 78.

2ª Leitura: 1Cor 10,16-17

A 2ª Leitura é tirada de 1Cor em que Paulo trata alguns problemas concretos da comunidade, entre eles a participação nos banquetes oferecidos aos ídolos (10,14-22). O assunto já foi tratado (cap. 8), mas retorna agora com o argumento da eucaristia.

A Bíblia do Peregrino (p. 2753) comenta: De passagem nos oferecem um denso ensinamento sobre a eucaristia como comunhão com Cristo e com os irmãos. Expressa-se e afiança-se uma espécie de parentesco “carnal”, de “consanguinidade” misteriosa com o Senhor. O cálice de bênção procede do ritual judaico e é transformado por Jesus (Lc 22,19-20 par.). Frisa o paralelismo: corpo eucarístico de Cristo/corpo eclesial de Cristo. O pão único o simboliza, a refeição o realiza.

O cálice da bênção, o cálice que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? (v. 16).

“O cálice da bênção, o cálice que abençoamos”; a redundância explica-se pelo fato de que o “cálice da bênção” era um termo técnico litúrgico tomado do seder (ritual da refeição pascal judaica). “Que abençoamos”: pronunciamos a bênção, como Cristo na ação de graças por ocasião da última ceia (Mc 14,23p; grego: eucaristia = ação de graças).

Porque há um só pão, nós todos somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão (v. 17).

Outra tradução do v. 17: “Pois nós somos todos um só pão, um só corpo”.  “Nós todos” Lit. “nós, os numerosos” (cf. Mc 14,24: “derramado por muitos”, mas em hebraico/aramaico significa também “por todos”; cf. Is 53,12; Jo 6,51).

Na eucaristia, pela comunhão com o corpo de Cristo, os cristãos se unem a Cristo e também entre si (o mesmo pão partilhado é o corpo de Cristo, e nós somos seus membros). Assim eucaristia realiza a unidade da Igreja em Cristo (cf. 12,12-29).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2218) comenta: O argumento desenvolvido nos vv. seguintes só tem validez se a expressão “um só corpo” significa, “um só corpo com Cristo” (como em 6,16 e 17, onde se subentendem “com ela” e “com ele”) … Na comunhão com o corpo de Cristo, os cristãos são um no Cristo único. Na explicitação doutrinal do pensamento de Paulo, o vínculo da causalidade entre a Ceia e a unidade da Igreja é percebido de maneiras diferentes pelas diversas Igrejas.

 

 

Evangelho: Jo 6,51-58

O evangelho de hoje é a conclusão do discurso de Jesus sobre o pão da vida que provoca resistência na multidão dos judeus que o escuta.

(Naquele tempo: disse Jesus às multidões dos judeus:)

A relação do milagre dos pães (6,1-15p) com a eucaristia é evidente nos quatro evangelhos. Uns peritos acham que a explanação nos vv. 51-59 foi acrescentada ao discurso (vv. 30-50) pela última etapa da redação (que acrescentou também os capítulos 15-18 e 21). Sem dúvida, esta parte tem importância especial porque João não narra a instituição da eucaristia na última ceia (somente o lava-pés; cf. Jo 13), mas a supõe; supre-a com essas palavras que esclarecem o sentido dela.

“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente (v. 51ab).

Como Jesus é a palavra de Deus, ele também dá vida. Ele é o “pão da vida”, que é em primeiro plano o ensinamento, em segundo a eucaristia. O uso figurativo do pão ou do alimento é conhecido no AT: Os profetas o aplicam à Palavra de Deus (Is 55; Am 8,11); os sábios aplicam à sabedoria. Como Jesus (vv. 35.37.48-58), a Sabedoria convida os homens para refeição (Pr 9,1-6; Eclo 24,21). A sabedoria é pré-existente como Jesus (Pr 8,22; Sb 7,22).

Jesus é a Palavra de Deus, só ele pode revelar o Pai e dar a vida eterna: “Eu sou o Pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto, no entanto, morreram” (v. 49; cf. vv. 31s.58); morreram lá no deserto, sem chegar à terra prometida (Nm 14,21-23; Sl 95,7-9). “Eis aqui o pão que desce do céu: quem comer dele, nunca morrerá” (v. 50); apesar de seu corpo passar pelo vale da morte (Sl 23,4), a pessoa (alma) que crê continuará viva e ressuscitará (cf. 11,25s).

E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51c).

Esta frase serve de eixo para unir o discurso sobre o pão vivo com a explicação eucarística em seguida. Repetindo a frase programática (v. 51ab), passa a nova seção (vv. 51c-59) marcada pela palavra “carne” (vv. 52-56; cf. 1,14). Este versículo sustenta-se numa síntese teológica: descida do céu, dom sacrifical na cruz, vida do ressuscitado.

A mediação de Moisés com o maná fica superada (cf. vv. 31-33.49). Jesus é mediador da nova aliança, não só para Israel, mas para o mundo inteiro: “Pois o pão do céu é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v. 33; cf. v. 51). Jesus é o “salvador do mundo” (4,42; cf. 3,16s), não só o “messias de Israel” (1,41.49). Sua missão na terra e sua morte são para “todos”, não só para “muitos” (em hebraico, “muitos” pode significar “todos”; cf. Is 53,12; Mt 26,28p e as palavras da consagração na Oração Eucarística). Jesus convida a todos e não exclui ninguém, é o ser humano que se exclui quando não crê.

Os judeus discutiam entre si, dizendo: “Como é que ele pode dar a sua carne a comer?” (v. 52).

Já com v. 51c começou a explicação eucarística, marcada pela palavra “carne”, repetida seis vezes nos vv. 51-56. Jesus é o verdadeiro pão, como palavra de Deus (vv. 32-33) e também através do sacrifício da sua vida na cruz (sua carne e seu sangue). Esta palavra “carne” une a encarnação com a eucaristia. Nós nos alimentamos da Palavra feita carne (1,14).

No evangelho de hoje, o discurso sobre o pão da vida (vv. 31-50) e a prática eucarística da comunidade influenciam-se mutualmente. Carne e sangue significam a totalidade do ser humano (Mt 16,17; 1Cor 15,50). A articulação nestes dois elementos permite o simbolismo do comer e beber. Mas as palavras de Jesus se chocam bastante com as do AT (Antigo Testamento): porque “comer a carne” significa hostilidade destrutiva (Is 9,19; Sl 27,2), canibalismo desesperado (Jr 19,9); ser comida a carne e bebido o sangue é o final macabro dos exércitos de Gog (Ez 39,17-20; Ap 19,18). Por outro lado, consumir o sangue, o fluido da vida, era severamente proibido (Gn 9,4; Lv 17,10-14; Dt 12,16.23 etc.; com base nisso, a seita americana das Testemunhas de Jeová rejeita a transfusão de sangue). Não é de estranhar que o ensinamento de Jesus tenha escandalizado também uns discípulos (vv. 60-61) e aqueles que caem no equívoco de entender materialmente as palavras (ao pé da letra; v. 52).

Então Jesus disse: “Em verdade, em verdade vos digo, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós (v. 53).

Ao mal-entendimento da objeção (típico em Jo), Jesus insiste na necessidade da eucaristia para conseguir vida eterna (cf. a necessidade do batismo em 3,5). O pão da vida agora é a “carne do Filho do homem” (v. 53; cf. v. 27; 1,51; 3,14; 5,27; Mc 8,31p; Dn 7,13), e “seu sangue” alude ao seu sacrifício, a morte violenta na cruz, seu efeito expiatório (Lv 17,11). Com o sangue entra agora a segunda espécie eucarística no discurso.

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida (vv. 54-55).

Jesus se entrega como alimento dessa vida participada do Pai, que agora ele comunica aos fiéis: “Quem come minha carne e bebe meu sangue, tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia” (v. 54; cf. vv. 39-40.44; 11,24s).

“Comer e beber” não são atos puramente mentais (como a refeição da sabedoria, cf. Pr 9,1-6), mas a eucaristia é “verdadeira” comida e “verdadeira” bebida (v. 55). O realismo sensível do sacramento (cf. o termo de S. Tomás: transubstanciação) corresponde ao realismo da ressurreição da carne (não só permanência da alma; cf. 5,28).

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo por causa do Pai, assim o que me come viverá por causa de mim. Este é o pão que desceu do céu. Não é como aquele que os vossos pais comeram. Eles morreram. Aquele que come este pão viverá para sempre” (vv. 56-58).

Esta vida divina já está presente naquele que crê e come, mas alcançará sua plenitude na ressurreição. A eucaristia é o meio exemplar da união íntima com Jesus, “estar nele como ele está no Pai”. É o contrário do alimento comum que entra em nós e acaba. Quem come Jesus sacramentado, entra nele e “permanece”, “viverá para sempre” (vv. 56.58; “permanecer” é um verbo típico da última redação em Jo, cf. 1,32s; 15,1-8 etc., 1Jo 2,6.10.14s etc.).

A expressão “eu nele e ele em mim” procura expressar, com mais força do que usando a preposição “com”, esta união íntima e permanente. Explica-o e completa-o a fórmula seguinte “viver por”. Um alimento comum nos dá vida, mas morre em nós, acaba. E ao final, nós morreremos também como o pão “que vossos pais comeram. Eles morreram” (v. 58; cf. vv. 31-32.49-50: os “pais” representam Israel que comeu o maná no deserto, cf. Ex 16). Mas quem come “o pão que desceu do céu … viverá para sempre” (v. 58), porque está em Jesus que morreu também, mas ressuscitou. É como Paulo afirmou sobre o batismo: “Mas, se estamos mortos com Cristo, acreditamos que também viveremos com ele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado dos mortos, não morre mais; a morte já não tem poder sobre ele” (Rm 6,8-9).

O site da CNBB comenta: Como pode ele dar a sua carne a comer? Como entender que para ter a vida eterna e ressuscitar no último dia é preciso comer a verdadeira comida e beber a verdadeira bebida que são a carne e o sangue de Jesus? Essas verdades se constituem numa realidade absurda para os judeus. Por que? Porque eles não conheceram verdadeiramente quem é Jesus. No mundo de hoje, encontramos muitas pessoas que, como os judeus, não conhecem Jesus e veem a eucaristia como uma realidade absurda. Precisamos agir como missionários para que essas pessoas conheçam Jesus, se alimentem da verdadeira comida e da verdadeira bebida e vivam para sempre.

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