15 de setembro de 2016 – Quinta-feira, dia de Nossa Senhora das Dores

A memória de hoje é de origem devocional e segue a festa de ontem, a exaltação da Santa Cruz. Foi introduzida no calendário romano pelo papa Pio VII em 1814 e nos convida a venerar Maria associada à paixão do Filho, ao lado dela elevado na cruz. “Mãe entre todas bendita, do Filho único aflita, a imensa dor assistia” (Stabat Mater).

Leitura: Hb 5,7-9

A leitura contém em resumo uma cristologia completa. Aí, a paixão é descrita como oblação suplicante, toda compenetrada de respeito pela vontade de Deus (cf. a oração no jardim de Getsêmani, Mc 14,36p). O autor afirma, ao mesmo tempo, que esta oração foi atendida e que Cristo precisou sofrer e obedecer. O acolhimento favorável consiste numa transformação que se opera mediante a própria morte. Tal como no hino cristológico de Fl 2,6-11 (2ª leitura de ontem), a obediência vai resultar numa glorificação, mas ela é expressa aqui em termos de sacerdócio: em vez de ser adorado e saudado com o título de Senhor (Fl 2,11), Cristo é reconhecido como salvador e proclamado “sumo sacerdote” (4,14; 5,1.10; 9,11 etc., tema principal da carta aos hebreus), apesar de ter nascido “leigo” (o sacerdócio no AT era hereditário), mas ele ofereceu seu próprio sangue (e não o dos animais como os sacerdotes no templo).

Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa de sua entrega a Deus (v. 7).

A preexistência do Filho de Deus já se afirmou em 1,2. “Nos dias da sua vida terrestre”, neste tópico, toda a atenção se volta para a humanidade do sumo sacerdote Jesus. Para representar os homens, ele deve ser um deles; para ter compaixão das suas misérias, ele deve tê-las compartilhando (cf. 2,17-18; 4,15). Ora, esta humanidade de “carne” (Rm 7,5) é constatada em Jesus (Jo 1,14), através de toda a sua agonia e morte.

“E foi atendido, por causa da sua entrega a Deus.” Não que ele tenha sido subtraído à morte para qual ele veio (Jo 12,27), mas ele foi arrancado ao seu poder (At 2,24s) e Deus transformou esta morte numa exaltação gloriosa (Jo 12,27s; 13,31s; 17,5; Fl 2,9-11; Hb 2,9)

Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu (v. 8).

O texto grego se permite um jogo de palavras conhecidas, pela semelhança fonética de “sofreu” e “aprendeu” (sobre a “obediência”, cf. Fl 2,8).

Mas, na consumação de sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem (v. 9).

“Na consumação (da sua vida)”, outra tradução possível: “tornado perfeito” (cf. 2,10). Aqui, o termo grego é passível de dupla interpretação. Primeiro, exprime uma transformação profunda: pela obediência de Cristo, a natureza humana foi completamente refundida no cadinho do sofrimento, de conformidade com a vontade de Deus (cf. 10,9-10). O termo evoca, igualmente, uma consagração sacerdotal, pois este é o seu sentido na tradução grega do AT (cf. Ex 29; Lv 8). A consumação de Cristo pelo sofrimento é a condição prévia da proclamação do seu sacerdócio.

Evangelho: Jo 19,25-27

O evangelho de hoje é um trecho da paixão do quarto evangelho (cf. evangelho na sexta-feira santa). Somente em Jo, há parentes e discípulos perto da cruz de Jesus: as três Marias e o discípulo amado, figura do evangelista.

Perto da cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã da sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, este é o teu filho”. Depois disse ao discípulo: “Esta é a tua mãe”. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo (19,25-27).

No evangelho de hoje, a mãe de Jesus está no pé da cruz. Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) tinham notado a presença de mulheres no Calvário, à certa distância da cruz; entre elas, “Maria Madalena” (Mt 27,55s; Mc 15,40; Lc 23,49). Jo é o único evangelista que as menciona perto da cruz; ele cita três ou quatro, conforme o modo de contar como uma ou duas pessoas: a irmã da mãe de Jesus e Maria (mulher) de Cléofas (lit. Clopas, cf. Lc 24,18). Ou se trata de Salomé, mãe dos filhos de Zebedeu (cf. Mt 27,56p) ou, ligando essa denominação ao que se segue, “Maria (mulher) de Cléofas”.

As “três Marias” com o “discípulo amado” representam a parte de Israel fiel a Jesus até o suplício. Entre elas, seleciona a mãe. Maria está presente ao primeiro milagre em Caná, que revela a glória de Jesus (2,1-12) e, novamente, na cruz (19,25-27). Por uma intenção manifesta, vários dados se correspondem nas duas cenas: Jo a denomina “mãe de Jesus”, não menciona seu nome Maria; Jesus a chama “mulher”.

Em termos sociais, o filho único, antes de morrer, assegura um destino à mãe (que é viúva); recomenda-a um amigo leal. O relato aponta além. Jesus lhe dá o tratamento de 2,4: “mulher”; mas agora “chegou a hora” então anunciada. A mãe do rei recebe como nova família, como irmão de Jesus, o discípulo ideal. Este poderá suscitar filhos ao irmão mais velho morto (Dt 25,5-10). Maria pode encarnar a nova Eva que “adquiriu um homem com a ajuda de Deus” (Gn 4,1). Para a tradição antiga, é figura da Igreja mãe. O contexto escriturístico (cf. vv. 24.28.36.37) e o caráter singular do apelativo “mulher” parecem significar um ato que transcende a simples piedade filial: a proclamação da maternidade espiritual de Maria, a nova Eva (Ave x Eva), sobre os fiéis, representados pelo discípulo bem-amado (cf. 15,10-15).

A Igreja católica interpreta ao “irmãos de Jesus” (7,2-10; Mc 6,3p; Gl 1,19) como parentes (cf. Gn 13,8). Se Maria tivesse mais filhos (cf. Mc 6,3; cf. o comentário de 08 de setembro), Jesus não precisava entregá-la a alguém de fora da família para cuidar dela.

“O discípulo acolheu a consigo” (lit. no que era seu); Jesus confia sua mãe à proteção do discípulo amado. Diversas interpretações foram propostas:  1. Jesus institui Maria mãe dos fiéis; as tradições ortodoxa e católica falam da maternidade espiritual de Maria para com os fiéis representados aqui pelo discípulo bem-amado. 2. Se, como alguns pensam, o discípulo é um pagão convertido, Jesus reconcilia os judeu-cristãos com os pagão-cristãos. 3. A fé verdadeira, que é vivida debaixo da cruz, inaugura novas relações (cf. Mc 3,31-35p).

A mãe de Jesus representa aqui o povo da antiga aliança que se conservou fiel às promessas e espera pelo salvador. E o discípulo amado representa o novo povo de Deus, formado por todos os que dão sua adesão a Jesus. Na relação mãe-filho, o evangelista mostra a unidade e continuação do povo de Deus, fiel à promessa e herdeiro da sua realização.

No seu comentário, o site da CNBB lembra de Lc 2,33-35: A presença de Maria junto ao seu Filho no momento do seu suplício mostra para nós a realização da profecia de Simeão: “E quanto a ti, uma espada de dor transpassará a tua alma”. Esta presença também nos mostra a necessidade da nossa presença e da nossa solidariedade junto a todos os que sofrem e que esta presença deve ser muito mais do que estar ao lado fazendo alguma coisa. Ela deve ser também a presença solidária de quem sofre junto, porque temos os mesmos valores, comungamos as mesmas idéias e lutamos pela realização plena dos mesmos projetos.

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