16 de agosto de 2017 – Quarta-feira, 19ª semana

Leitura: Dt 34,1-12

Esta narrativa conclui o Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados em hebraico de Torá, a “Lei” de Moisés). A emoção contida vibra levemente nesta narração breve da morte de Moisés e na memória fúnebre que o autor lhe dedica. A narração combina elementos sacerdotais (principalmente os vv. 7-9) com o texto deuteronomista, retoma 32,48-52 e leva à conclusão outra série de momentos: Nm 27,12-17 (escolha de Josué); Dt 3,23-28 (Moisés pede para ver a terra); 31,14.13 (Josué é apresentado na tenda).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 237) comenta: Os redatores finais do Pentateuco acrescentaram esta notícia, anunciada em 32,48-52, para explicar por que Israel não tem local venerado com túmulo de Moisés (v. 6) … A inexistência do túmulo prova que a importância de Moisés na história de Israel se deve aos feitos atribuídos a ele pelos redatores posteriores, muito mais do que ao personagem histórico.

Moisés subiu das estepes de Moab ao monte Nebo, ao cume do Fasga que está defronte de Jericó. E o Senhor mostrou-lhe todo o país, desde Galaad até Dã, o território de Neftali, a terra de Efraim e Manassés, toda a terra de Judá até ao mar ocidental, o Negueb e a região do vale de Jericó, cidade das palmeiras, até Segor (vv. 1-3).

“Moisés obedece… ao monte Nebo”, obedecendo à ordem recebida por Javé em Nm 27,12-14 (redação sacerdotal) e Dt 32,48-52. A visão de Moisés engloba toda terra prometida, na qual ele não é permitido entrar (cf. 4,21). Aqui o texto não diz mais o motivo da proibição (cf. Nm 20,1-13; cf. 5ª feira da semana passada), agora, no final do Pentateuco, só cabe elogios sobre Moisés. Moab designa a planície que fica entre o sapé dos montes de Moab (Nebo) e do Jordão. O rio Jordão é a divisa, a cidade de Jericó já fica na terra prometida. A visão de “todo o país” é fisicamente impossível. O texto diz que o Senhor lhe fez vê-la; como outrora com Abraão, quando este se separou de Ló; mas Abraão podia percorrê-la, sem possuí-la (Gn 13,15.17).

A visão da terra prometida vai do leste (Galaad, Manassés e Dã estão na Transjordânia) ao norte (Neftali), passa pelo meio (Efraim e Manassés) ao oeste (o Mar mediterrâneo, lit. mar “ocidental”), ao sul (Judá e o deserto Negueb), e volta até Segor ao sul do Mar morto (cf. Gn 19,20s), como Jericó, que esta ao norte do mesmo mar. A área corresponde ao sonho de um Israel unificado pelo rei Josias.

O Senhor lhe disse: “Eis aí a terra pela qual jurei a Abraão, Isaac e Jacó, dizendo: ‘Eu a darei à tua descendência. Tu a viste com teus olhos, mas nela não entrarás’”. E Moisés, servo do Senhor, morreu ali, na terra de Moab, conforme a vontade do Senhor (vv. 4-5).

Mesmo aos 120 anos (v. 7; 31,2), a morte é violenta, porque interrompe o cumprimento da missão: o que começou não pode concluir (cf. 3,7.17). A sós com Deus, Moisés contempla a terra e fecha os olhos cheios com a visão. A dor e a nostalgia se expressaram antes (3,23-26). Mas a promessa de Deus aos patriarcas se cumprirá (Gn 12,7 etc.).

Ao morrer, Moisés recebe o titulo de “Servo do Senhor” (cf. Nm 12,8; Js 1,1s). Segunda uma lenda judaica, Moisés não morreu, mas Deus o tirou (arrebatou), e desde então, Moisés serve a Deus permanentemente (Sota 13b).

E ele o sepultou no vale, na terra de Moab, defronte de Bet-Fegor. E ninguém sabe até hoje onde fica a sua sepultura (v. 6).

“Ele o sepultou”, isto é, Javé Deus o sepultou, mas o texto samaritano e uma parte do grego têm: “eles o sepultaram”. A ignorância do lugar contrasta com os dados precisos dos juízes menores (Jz 10,2.5; 12, 7.10.12.15) e mais ainda como o sepulcro patriarcal de Abraão em Hebron junto ao de Isaac, Jacó e José e suas esposas (Gn 23,1-20) e Raquel perto de Belém (Gm 35,19s; 1Sm 10,2).

Incrível que um líder carismático assim tão importante, tenha sido sepultado “no vale” (não no monte) de Moab e ninguém soube onde fica a sua sepultura. Mesmo sem ser recordado num local, o seu nome ficou plantado na memória do povo. É “servo do Senhor” e vive com ele eternamente (cf. sua aparição na transfiguração de Jesus, Mc 9,4p). O mistério que cerca a morte e sepultura de Moisés parece ter finalidade bem clara: o povo não deve “adorar” a figura de seus líderes, mas assumir o processo de sua própria história. Nenhum culto à personalidade.

Segundo uma lenda judaica Moisés morreu “na terra de Moab, defronte de Bet-Fegor” para expiar o pecado dos israelitas em Bet-Fegor (prostituição e sincretismo com as moabitas; cf, Nm 25,1-3).

Ao morrer, Moisés tinha cento e vinte anos. Sua vista não tinha enfraquecido, nem seu vigor se tinha esmorecido. Os filhos de Israel choraram Moisés nas estepes de Moab, durante trinta dias, até que terminou o luto por Moisés (vv. 7-8).

Moisés tinha “120 anos” (cf. 31,2 que afirma sua fraqueza). O tempo de luto é igual ao de seu irmão e sumo sacerdote Aarão que havia morrido também num monte (Nm 20,22-29).

Josué filho de Nun estava cheio do espírito de sabedoria, porque Moisés lhe tinha imposto as mãos. E os filhos de Israel lhe obedeceram e agiram, como o Senhor tinha ordenado a Moisés (v. 9).

Embora a história continue e se sucedam os profetas, segundo o anunciado (Dt 18,15), o lugar de Moisés é único: pela sua missão na libertação do Egito e por sua intimidade com Deus (Ex 33,11; Nm 12,8). Josué foi escolhido pelo próprio Javé em 31,7-8.14, em Nm 27,18-23 (com imposição das mãos; cf. At 6,6; 13,3; 1Tm 4,14).

Em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés, a quem o Senhor conhecesse face a face, nem quanto aos sinais e prodígios que o Senhor lhe mandou fazer na terra do Egito, contra o Faraó, os seus servidores e todo o seu país, nem quanto à mão poderosa e a tantos e tão terríveis prodígios, que Moisés fez à vista de todo Israel (vv. 10-12).

Numa lenda judaica (Midrash Dewarim Rabba 11,10), Deus não deixou morrer seu amigo Moisés, mas acolheu sua alma num beijo da sua boca e chorou, dizendo: “Quem se levantará por mim contra os maus? Quem se colocará ao meu lado contra os malfeitores?” (Sl 94,16). E o Espirito Santo disse: “E em Israel nunca mais surgiu (lit. se levantou) um profeta como Moisés” (Dt 34,10)

Moisés conheceu Javé Deus “face a face” (cf. Nm 12,6-8; Ex 33,20-23; 34,29-35). Só Jesus vai superar Moisés (cf. Jo 6), porque é Filho; cf. a voz da nuvem na transfiguração (Mc 9,2-7); a revelação e conhecimento íntimo de Deus: “Ninguém jamais viu Deus, o Filho único que está voltado para o seio do Pai, este nos deu a conhecer” (Jo 1,17-18; cf. Mt 11,27p).

O elogio a Moisés, o primeiro “profeta” de Israel, oferece o modelo de verdadeiro profeta e indica a atividade profética do povo de Deus. Essa atividade consiste em ler, na história presente e na sociedade, os apelos do Deus do êxodo. Ele quer libertar o povo e conduzi-lo na construção de uma história e sociedade novas, voltadas para a liberdade e a vida.

A descendência de Moisés é insignificante comparando-a à dos patriarcas. Por mais importante ele tenha sido para o Êxodo e a caminhada rumo a terra prometida, ele é apenas intermediário entre Javé Deus e seu povo. Não é a pessoa de Moisés que é importante no judaísmo, mas a saída do Egito (festa da Páscoa) e o dom da Lei (festa de Pentecostes). Moisés tem sua importância na permanência da Lei que orienta Israel. “Ele não tem túmulo. Não está contigo como morto, mas vive como Lei” (George Eliot).

 

Evangelho: Mt 18,15-20

Continuamos no quarto discurso de Jesus no evangelho de Mt. Depois de seguir Mc 9 com a valorização dos pequenos (vv. 1-9; cf. 17,1-2) e da parábola da ovelha desgarrada (vv. 10-14, copiada da fonte chamada Q; cf. Lc 15,3-7), Mt apresenta um trecho mais longo sobre a correção fraterna e o perdão. Às duas frases que já encontrou na outra fonte (além de Mc) Q (Lc 17,3-4), Mt acrescenta ainda material próprio: uma regra da comunidade sobre o trato com pecadores (no texto de hoje) e uma parábola (evangelho de amanhã).

Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão (v. 15).

Na vida cotidiana, experimentamos continuamente as fraquezas e os erros de pessoas que vivem conosco e frequentam a comunidade. Se um irmão pecar, não se deve imediatamente fofocar ou denunciá-lo publicamente. Primeiro, é preciso conversar com ele a sós, compreender as razões pelas quais agiu assim.

Nossa liturgia apresenta a versão “pecar contra ti” (cf. Lc 17,3-4), acrescentada por muitos documentos, mas provavelmente deve ser rejeitada e ler apenas “pecar”. Aqui se trata de uma grave falta pública, não necessariamente cometida contra aquele que procura corrigi-la (o caso do v. 21 é diferente). A primeira instância é totalmente privada: fazer o irmão refletir e reconciliar-se; “ganhar” (cf. 16,26; 25,16) não para a fé nem conservar a título de amigo, mas conservar como membro da comunidade aquele que estava a ponto de abandoná-la, ou da qual seria excluído (cf. 1Cor 9,19-22).  

Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas (v. 16).

Também a segunda instância é privada, mas com testemunhas (Dt 19,15), que servirão de mediadores.

Se ele não vos der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público (v. 17).

A terceira instância é o julgamento da comunidade. A “Igreja” (em grego ekklésia) é a assembleia dos irmãos (cf. 16,18). Só em casos extremos, deve-se expor o caso à comunidade. Deixar-se corrigir é cancelar o mal da própria vida e crescer como filho de Deus. Humildade para quem corrige e para quem é corrigido. Quando as pessoas não são corrigidas na comunidade, o mal pode fazer festa e destruir tudo. A comunidade cristã é comunidade de salvação pela correção e pelo perdão.

“Seja tratado”, lit.: não te ocupes mais com ele; já não és mais responsável por ele; só Jesus conseguirá alguma coisa neste caso. Quando um irmão peca, prejudicando o bem comum, a comunidade age com prudência e justiça, procurando corrigir o irmão. Se alguém que em última instância se negar a reconciliar-se, já não faz parte da comunidade, deve ser decretada a sua separação (ex-comunhão; cf. a excomunhão pronunciada por Paulo em 1Cor 5,4-5.11). “Pagãos” e “pecadores públicos” (como pessoas que cobravam impostos para os romanos) eram considerados pessoas “impuras” com as quais os judeus piedosos não podiam se relacionar (cf. 5,46s; 8,7-8; 9,10s; At 11,2-3).

Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu (v. 18).

Reunida em nome e no espírito de Jesus, a comunidade tem o poder de “ligar ou desligar”, ou seja, incluir ou excluir pessoas do seu meio. Os responsáveis pela comunidade têm o direito de perdoar, reconciliar ou excomungar. À assembléia ou aos ministros da igreja, aos quais desde o princípio todo deste discurso se dirige, concede-se de um dos poderes conferidos a Pedro: é complemento de 16,19.

De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus (v. 19).

Jesus diz “de novo”, ou: “ainda mais”: O acordo (com ou contra o pecador) se deve manifestar também na oração (v. 19); ou então: também para orar deve haver acordo (cf. Eclo 34,24); como também para oferta no altar (cf. Mt 5,23s). Em João, Jesus promete atendimento a quem faz uma oração “em meu nome” (Jo 14,13s; 15,16; 16,23-24.26; cf. 1Jo 5,14), quer dizer, na intenção (vontade) dele, de maneira que ele possa assinar o pedido.

Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles” (v. 20).

A oração comunitária é corrente nos Salmos; agora adquire novo sentido pela presença de Cristo. Entende-se a presença real de Cristo glorificado, não mera presença mental. Os rabinos exigem o mínimo de dez homens para o culto (dez homens “reunidos” constituem uma “sinagoga”); Jesus o reduz a “dois ou três”. Esta afirmação tem provavelmente a finalidade de estimular todas as tentativas de correção e reconciliação entre os irmãos no seio da igreja, garantindo lhes a presença de Jesus. Mt apresenta Jesus como “Emanuel”, ou seja, “Deus conosco”: no início do seu evangelho (1,23), no final (28,20), e aqui no meio também (v. 20).

Obs.: Nosso texto de hoje tem um papel fundamental na história do sacramento da reconciliação (confissão). Nos primeiros séculos, só havia uma “confissão pública” de pecados graves (e geralmente conhecidos) como apostasia (negar a fé cristã), homicídio e adultério. O pecador recebeu uma penitência dura por um tempo determinado (vestimenta de penitente, exclusão da eucaristia,…), depois foi admitido de novo na comunidade numa celebração de reconciliação. Como este perdão só se podia receber uma única vez, muitos adiaram o seu batismo até o final da sua vida (por ex. o imperador Constantino). A partir do séc. VI, pelos monges irlandeses e ingleses, entrou outro tipo de reconciliação: a “confissão individual” que cada monge fazia a seu abade periodicamente, foi estendida ao povo. Temos então vários aspectos: jurídico (antecipação do juízo, acusação própria, perdão pela autoridade), terapêutico (conversar sob sigilo, aconselhar e curar a alma, cf. o paralítico em Mc 2,1-12; Tg 5,16), comunitário e individual. Havia certamente abusos na época de Lutero (vender e comprar o perdão e a salvação através das indulgências, ou seja, por dinheiro no séc. XVI) que o levaram a descartar este sacramento. Por isso restaram apenas dois sacramentos, o batismo e a ceia (eucaristia) foram aceitos nas igrejas protestantes.

O site da CNBB comenta: A vida em comunidade é essencial para que possamos sentir a presença de Jesus no meio de nós e usufruir dessa presença, porém ela não é fácil, principalmente por causa das dificuldades de relacionamento. A comunidade, para ser realmente cristã, deve ser pautada na misericórdia, no perdão e na acolhida dos que erram, buscando não a punição, mas sim o reerguimento e a superação dos que erram, possibilitando-lhes a conversão e a vida nova em Cristo. É por isso que Jesus nos mostra, no Evangelho de hoje, as exigências da correção fraterna juntamente com a sua promessa de presença no meio de nós.

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