16 de Agosto de 2020, Domingo – Solenidade da Assunção de Nossa Senhora: Então apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas (12,1)

Solenidade da Assunção de Nossa Senhora

A data da festa de Assunção de Nossa Senhora é 15 de agosto, mas no Brasil é transferida para o domingo seguinte. Não consegui descobrir o porquê desta data, mas suponho o seguinte: como se trata da morte de Maria, procurava-se uma data depois de Pentecostes (onde Maria estava presente; cf. At 1,14; 2,1) e das festas juninas, mas antes da Natividade de Nossa Senhora em 08 de setembro. Tampouco sei, porque se escolheu o setembro para a Natividade de Maria (deve ser o simbolismo do signo da virgem), mas impressiona-me como o aniversário dela fica despercebido no ano litúrgico no meio de tantas outras festas de Nossa Senhora, enquanto sua Imaculada Conceição, nove meses antes do seu aniversário, em 08 de dezembro, é celebrada com ênfase.

A Imaculada Conceição e a Assunção de Nossa Senhora são festas somente católicas e foram declaradas dogmas (doutrina na qual o católico deve acreditar): em 1854, a dogma da Imaculada e em 1950, a da Assunção, somente cinco anos depois da segunda guerra mundial, em que 55 milhões de vidas humanas foram ceifadas, tantos corpos mutilados, mortos em batalhas ou cremados em campos de concentração. O dogma da Assunção quer resgatar a dignidade do corpo humano. Nosso corpo não é destinado à destruição, mas a glorificação, que já se realizou em Maria, criatura exemplar.

Se Maria foi concebida sem pecado (“Imaculada”) e nunca pecou, seu corpo não merece a morte (o “salário do pecado” desde Adão e Eva, cf. Rm 5,12; 6,23), então Maria foi preservada da corrupção da morte, ou seja, como se reza a oração do dia da Assunção: “Deus … elevastes a glória do céu, em corpo e alma, a imaculada virgem.”

Como a Bíblia não menciona explicitamente estes fatos, os protestantes contestam. Mas a Igreja Católica tirou suas conclusões a partir do conjunto de textos bíblicos sobre Nossa Senhora, além de lendas antigas e uma devoção milenar. Desde o século IV, escritos apócrifos circulam; por ex. o Transitus Mariae nos conta a “Dormição de Nossa Senhora” (festa na Igreja oriental desde 431): Ela adormeceu na presença dos apóstolos, mas seu corpo não foi encontrado para ser enterrado. De fato não existem restos mortais de Nossa Senhora em nenhum lugar do mundo. Se existissem, seria o lugar de romaria maior do que Roma, onde jazem os ossos de Pedro e Paulo.

As leituras da festa querem nos aproximar do mistério da Assunção (omitimos aqui os textos da vigília: 1ª Leitura: 1Cr 15,3-4.15-16; 16,1-2; 2ª Leitura: 1Cor 15,54-57; Evangelho: Lc 11,27-28)

 

1ª leitura: Ap 11,19a; 12,1.3-6a.10ab

A 1ª leitura nos apresenta a mulher no céu que a tradição cristã identificou com Maria.

O livro do Apocalipse (palavra grega que significa “revelação”, cf. 1,1) é da autoria de “João” (1,4.9; mas pelo estilo diferente não o identificamos com o autor do quarto evangelho e das cartas joaninas). Foi escrito por volta de 95 d.C., durante a perseguição violenta do imperador romano Domiciano, que pode ser identificado com a “besta-fera do mar” em Ap 13.

Já o livro de Daniel foi escrito durante uma perseguição violenta por Antíoco Epífanes (175-164 a.C.) e inaugurou o gênero apocalíptico usando metáforas, símbolos, cifras, números e alusões ao Antigo Testamento. Assim o perseguidor não consegue entender a mensagem crítica e consoladora que anuncia a vitória de Deus sobre ele (no final dos tempos). Como em Dn 7, o autor do Apocalipse de João apresenta animais monstruosos, significando a oposição contra Deus, ou seja, contra a Trindade:

O “dragão” é a “antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás” (12,9; cf. Gn 3; Jó 1); opondo se ao projeto de Deus Pai e quer impedir o nascimento do Filho (impressionante a cena em v. 4b). No cap. 13, uma “besta-fera do mar” (imperador romano) opõe-se ao Filho (messias, cordeiro), perseguindo os cristãos; também aparece uma “besta-fera da terra”, a propaganda mentirosa do Império contra a verdade do Espírito Santo.

Abriu-se o templo de Deus que está no céu e apareceu a arca da aliança (11,19a).

Mas antes de apresentar a mulher e as bestas-feras, João apresenta outra cena: O “templo de Deus”, que estava em Jerusalém, agora está ”no céu” (cf. 11,1-2). Como Jesus havia profetizado (Mc 13,1s), o templo em Jerusalém foi destruído em 70 d.C. pelo exército romano (comandado pelo irmão de Domiciano, Tito) e nunca mais reconstruído (hoje tem um santuário muçulmano no lugar).

No interior do templo apareceu a “arca da aliança” que se perdeu durante a primeira destruição do templo pelos babilônios em 586 a.C. (cf. Jr 3,16; 2Rs 25; 2Mc 2,4-8). A arca continha as “dez palavras” (decálogo), ou seja, as tábuas da lei com os dez mandamentos (Ex 24,12; 25,10-22; 34,28s; Dt 10,1-8; 31,9.26). Moisés colocou a arca no santuário do deserto, a tenda de Reunião (Ex 40,1-21), e Salomão no templo por ele construído (1Rs 8,1-9). Ela é símbolo da presença divina que guia o povo no deserto e nas tribulações (batalhas, cf. Nm 10,33-35; 14,42-44; Js 3; 6 etc.). Como na cultura cananeia imaginava-se a arca como pedestal do trono divino entre os anjos (querubins, cf. 1Sm 4-6; 2Sm 6; Sl 99,5; 132,7s).

Maria foi chamada pela Igreja “arca da aliança”, porque no seu ventre (baú, arca) estava a “palavra de Deus” que se “fez carne” (Jesus, cf. Jo 1,1.14).

Nossa liturgia omitiu a segunda parte de v. 19 que lembra a teofania no monte de Deus (Horeb/Sinai): “Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e uma grande tempestade de granizo” (cf. Ex 19,16-20).

Então apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas (12,1).

Um “grande sinal no céu” junto com as “dores do parto” (v. 2, omitido pela nossa liturgia; cf. 1Ts 5,3; Mc 13,8p; Ap 2,24; Rm 8,20-22; Os 13,13; Jo 16,20-22) já sinaliza o tempo final (cf. Mt 24,29-31p); cf. o convite de Isaias ao rei Acaz, oferecendo um sinal nas alturas ou no abismo (Is 7,11)

Quem é esta “mulher” luminosa? Brilha mais que Jerusalém (Is 60) e a noiva (Ct 6,10), é revestida de luz solar, como o Senhor (Sl 104,2). Ela se parece com uma deusa astral, mas as “doze estrelas” aludem às doze tribos de Israel (como no sonho de José em Gn 37,9s), ou seja, ao povo de Deus. Ela está gravida do messias (v. 4), e depois tem outros descendentes (v. 17), semelhantes a Is 66,7-14 que dá luz a um povo.  A Bíblia do Peregrino (p. 2960) comenta: Os autores a identificam em três planos: a Sinagoga ou comunidade de Israel da qual nasce o messias, a Igreja que gera o messias em cada cristão (Gl 4,19), e Maria. Esta última é chamada “mulher” em Jo 2,4, é mulher e mãe junto à cruz.

A “coroa” simboliza sucesso e triunfo (cf. 1Cor 9,25; 2Tm 4,8; Tg 1,12; 1Pd 5,4; Ap 2,10; 6,2), aqui antecipando que a mulher não será vencida pelo dragão (vv. 6.14; cf. Mt 16,18).

Então apareceu outro sinal no céu: um grande dragão, cor de fogo. Tinha sete cabeças e dez chifres e, sobre as cabeças sete coroas. Com a cauda, varria a terça parte das estrelas do céu, atirando-as sobre a terra. O dragão parou diante da mulher, que estava para dar à luz, pronto para devorar o seu Filho, logo que nascesse (vv. 3-4).

O segundo sinal no céu é terrível, um “grande dragão” (v. 3), a “antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás” que quer seduzir o mundo todo (v. 9; cf. Gn 3; Jó 1). No Antigo Oriente, o dragão designa o ser demoníaco e o poder do caos (diferente do Oriente distante, p. ex. na China e no Japão, o dragão significa sorte). O AT retoma esta mitologia, mas Javé Deus vence o dragão (Leviatã; cf. Sl 74,13s; Jó 7,12; 26,12s; 40,15ss.25ss; Is 51,9) e o vencerá no tempo final (Is 27,1). Sua “cor de fogo” revela sua vontade assassina (cf. Ap 6,4). Talvez João alude a Is 14,29: “Não te alegre, Filisteia, porque ter quebrado o bastão que te feria, porque da raiz (barriga) da serpente sairá um víbora, e seu fruto será um dragão voador”. A serpente abrasadora é conhecida nas fábulas e se encontra no deserto (cf. Is 30,6; Nm 21,6; Dt 8,15).

Um dragão com “sete cabeças” é uma figura na mitologia babilônica (Tiamat?), também nos escritos da época Pístis Sofia (66) e Hinos de Salomão (22,4). Os “dez chifres e sete coroas” sublinham o poder deste monstro (cf. Dn 7,7). Mas o número 10 indica que seu poder está limitado (cf. 13,1; 17,3.7.12.16; 2,10). Na sua descrição, o autor já pensa no poder terreno do Império Romano que se dispõe como instrumento do dragão na forma da besta-fera do mar (no próximo capítulo 13).

O dragão é arrogante e quer ser igual a Deus, mas seu poder não é criativo, apenas destruidor: “Com a cauda, varria a terça parte das estrelas do céu, atirando-as sobre a terra”. De modo semelhante se descreve em Dn 8,10 a ascensão do pequeno “chifre” (o rei Antíoco Epífanes que perseguia o povo judeu em 174 a.C.). As “estrelas” em Dn 8,10 são o povo escolhido (cf. Dn 12,3; Mt 13,43). O cair das estrelas faz parte do tempo final (6,13; 8,10-12; cf. Mc 13,25p). Como as estrelas simbolizam valores e ideais, podemos pensar na perda de ideais e valores em nosso tempo e no tempo da tribulação.

O dragão opõe-se ao projeto de Deus (Pai), mas não fica satisfeito em destruir a criação material, quer também impedir o nascimento do Filho (impressionante a cena em v. 4b, retratada muitas vezes na arte). Jerusalém lamentou: “Devorou-me, consumiu-me, Nabucodonosor, o rei da Babilônia, … engoliu-me como um dragão” (Jr 51,34; cf. Ez 29 e 32 contra Egito). Como João usa o nome Babilônia como cifra para Roma (14,8; 16,19; 17,5; 18,2.10.21), pode indicar também o inimigo concreto dos cristãos, o imperador perseguidor Domiciano.

E ela deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o filho foi levado para junto de Deus e do seu trono (v. 5).

Ela “deu à luz um filho homem” (cf. Is 7,14; Is 66,7; Mt 1,23; Lc 1,31), que “veio para governar todas as nações com cetro de ferro” (cf. o Sl 2,9, citado outra vez em Ap 19,15). Assim é caracterizado o messias, sem dúvida Jesus Cristo, cuja vida é resumida de modo brevíssimo, “foi levado para junto de Deus e do seu trono” (cf. o arrebatamento e Henoc e Elias em Gn 5,24 e 2Rs 2).

Dá a impressão como se o Filho fosse arrebatado logo após o nascimento, mas João se concentra aqui na entronização como condição para o verdadeiro povo de Deus começa a existir (abrevia como Paulo quando caracteriza Jesus apenas como “crucificado” em 1Cor 1,23; 2,3; Gl 3,1 etc.). João não fala aqui da vida adulta de Jesus nem da sua morte, cuja importância para a salvação destaca em outro lugar (1,5b; 5,9; 14,4 etc.), e em seguida é mencionada (v. 11).

A mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar (v. 6a).

A mulher não está mais no céu, mas “fugiu para o deserto”. Ela não está mais com a presença física do Filho e sofre agora a perseguição pelo dragão (vv. 13-17). Ela se refugia no deserto, como a saída dos israelitas do Egito (Ex 12,40-42), como Moisés (Ex 2,15), Davi (1Sm 19-21), Elias (1Rs 19) e um salmista com “asas” (v. 14; cf. Sl 55,7-9; Ex 19,4). Durante a metade de sete anos é alimentada no deserto (um novo maná, cf. a presença de Jesus na eucaristia em Jo 6).

Nossa liturgia omitiu a segunda parte do v. 6, que especifica o lugar, “em que fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias”. 1260 dias são “42 meses”, ou seja, “3 anos e meio”, i. é. a metade do número perfeito “sete” (cf. Gn 1). Estes números significam a mesma coisa (11,3; 12,4; 13,5; cf. o tempo da perseguição 167-164 a.C. em Dn 7,25; 12,7): um tempo de tribulações em que os cristãos são provados, a última etapa antes do final. É um prazo curto (v. 12) em que Satanás ainda tem poder na terra, mas no céu ele já não tem mais (vv. 7-12).

Ouvi então uma voz forte no céu, proclamando: “Agora se realizou a salvação, a força e a realeza do nosso Deus e o poder do seu Cristo” (v. 10ab).

O dragão não devorou nem derrotou o filho. Ao contrário, Satanás é rebaixado, numa “batalha no céu” (vv. 7-9, omitidos pela nossa liturgia) contra os anjos liderados pelo arcanjo Miguel, cujo nome significa “Quem (é) como Deus?” (cf. Dn 10,12-21; 12,1). O diabo é expulso do céu (onde estava entre os anjos, “filhos de Deus”, cf. Jó 1-2).

João ouve o hino da vitória proclamado por “uma voz forte no céu”, que um anjo e/ou a comunidade dos santos (cf. 5,2.8s.11s.13; 7,9s).  Pela entronização de Cristo no céu (v. 5), a função de Satanás é lhe tirada. Não pode ser mais o “acusador” no céu (v. 10b; cf. Jó 1,6-11; Zc 3,1s) que passou a caluniar e enganar (Gn 3,1-5; Jo 8,44). Não pode mais influenciar a Deus. “Agora” (v. 10) não há mais lugar para ele no céu, mas ele ainda tem um poder limitado na terra, até o fim determinado por Deus (v. 12; cf. 20,7-10).

Nos vv. 13-17 (omitidos pela nossa liturgia) continua a hostilidade do dragão contra a mulher e “sua descendência” na terra (Gn 3,15). “Enfurecido por causa da mulher, o dragão foi então guerrear contra o resto dos seus descendentes que observam os mandamentos de Deus e mantêm o Testemunho de Jesus” (v. 17; cf. Gn 3,15). Neste v. 17 se esclarece que a mulher do céu, agora perseguida na terra, simboliza o povo de Deus na sua união da antiga e da nova aliança. Em Maria, mulher na tradição judaica e mãe do messias (Cristo) e mãe dos seus discípulos (Jo 19,25-27), está união está perfeitamente realizada.

A mulher do céu tem que fugir porque é perseguida também na terra (vv. 6a.13-17). Ela não é uma deusa astral, ela representa Maria e o povo de Deus (Israel com 12 tribos e a Igreja com 12 apóstolos; cf. Ap 21,12.14; Is 54; 60; 66,7; Mq 4,9-10). Costumamos identificar a mulher com Maria, mas ela é figura coletiva também, como nos ensina a comparação com Dn 7,14.18, em que o “Filho do Homem nas nuvens” é identificado com “os Santos do Altíssimo”.

A mulher no céu, então, significa o nosso futuro de filhos e filhas de Deus como povo de Deus, um futuro que para Maria já é presente, um grande sinal de esperança.

 

2ª leitura: 1Cor 15,20-27a

No cap. 15 da primeira carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo relaciona a ressurreição de Cristo à ressurreição dos mortos em geral: “Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé” (v. 16).

Na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram (v. 20).

“Na realidade” (lit. “mas não”, refere-se à negação da ressurreição nos vv. anteriores, cf. vv. 12-19). Paulo afirma aqui a ressurreição de Cristo (da qual o apóstolo se vê como testemunha cf. vv. 4-8), como “primícias” (primeiros frutos da colheita, cf. Ex 23,16) de uma ressurreição que engloba a “todos” (v. 22) que morreram (cf. 1Ts 4,14). Em Cl 1,18 e Ap 1,5, Cristo é o “primogênito dos mortos”, tendo em tudo a primazia. Em Rm 8,11, Paulo atribui ao Espírito a ressurreição de Cristo e a dos nossos corpos mortais (cf. Ez 37,1-14).

Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão (vv. 21-22)

Como em Rm 5,12-21, Paulo faz um paralelo com Cristo e Adão (cf. vv. 45-49; em hebraico Adam não é um nome próprio, mas significa “ser humano/homem”). Por Adão (e Eva), o pecado começou a reinar e tem como consequência a morte para todos (porque todos pecaram); por outro homem, Jesus Cristo (Filho de Deus, Filho “do homem/Adão”) veio a graça, o perdão que redime da condenação, da pena da morte para o gênero humano; recupera o paraíso inaugurando a ressurreição dos mortos (cf. o jardineiro em Jo 20,15).

“Reviverão” (o mesmo verbo em Rm 4,17; 8,11; 1Pd 3,18; cf. Ez 37; Is 14-19).

Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda (v. 23)

Paulo diferencia a ressurreição de Cristo que já aconteceu (“como primícias”) da ressurreição geral dos mortos que acontecerá só quando Jesus voltar no fim dos tempos, “por ocasião da sua vinda” (parusia em grego). A ressurreição no fim dos tempos era conceito tradicional (desde Dn 12,1-3, séc. II a.C.) e esperada pela maioria dos judeus (cf. Jo 11,23s). Os fariseus a defendiam, mas os saduceus a contestaram (cf. Mc 12,18-27p; At 23,6-8) e os filósofos gregos não aceitaram (At 17,32).

A ressurreição, que é a vitória sobre o mal, o pecado e morte, não pode ser anarquia ou caos, mas acontece (como na criação) “segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar Cristo, … depois, os que pertencem a Cristo.” Não é só a simples cronologia, mas também o critério da pertença a Cristo que determina a ressurreição.

E quem é que pertence a Cristo? Paulo deve pensar nos cristãos em geral (cf. 1Ts 4,14s), os consagrados (tornados “santos”) pelo Espírito no batismo que se tornaram “filhos de Deus” e “herdeiros do reino” (cf. Rm 8,14-17; cf. Mt 25,34). Pela carne e pelo sangue, também os judeus pertencem a Cristo (Rm 9,3-5). Podemos pensar também nos que praticam misericórdia (Mt 25,31-46), os bem-aventurados (Mt 5,3-12p), pobres (Lc 16,19-31), crianças (Mc 10,14s; Mt 18,1-4) etc.

Na hierarquia (ordem sagrada), os primeiros lugares caberiam aos apóstolos que seguiram Jesus e julgarão com ele as doze tribos de Israel (Mt 19,28). Entre eles o primeiro lugar é de Pedro, na chamada e na lista dos apóstolos, na profissão da fé, no testemunho do ressuscitado (cf. Mc 1,16-18; 3,16; 16,7; Mt 16,16-19; Lc 22,32; 24,34; At 2,14-41; Jo 20,3-8; 21,15-19), depois seriam Tiago e João (cf. Mc 1,18-20; 3,17; 5,37; 9,2; 13,3; 14,33; apesar de 10,35-40; mas At 12,2) ou o “discípulo amado” (Jo 13,24s; 19,26s; 20,3-8; 21,7.20-24) ou as mulheres (cf. a confissão de fé da Marta em Jo 11,27 e Maria Madalena, primeira testemunha da ressurreição, cf. Jo 20,1.11-18p).

Somente em Mt 27,52s narra-se uma ressurreição na hora da morte de Jesus: “Os túmulos se abriram e os corpos dos santos falecidos ressuscitaram. E saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos.” Trata-se de uma alusão a Ez 37,1-4, mas guarda-se a primazia da ressurreição de Jesus diante dos outros santos (talvez os profetas e justos, vítimas da violência, cf. Mt 23,29).

O primeiro mártir que derrama seu sangue pela fé em Cristo é o diácono Estêvão, morrendo com as mesmas palavras de Jesus (At 7,55-60), mas o primeiro que está no paraíso junto com Jesus é o ladrão arrependido na cruz (Lc 23,43: “hoje”). Ou seriam Moisés e Elias que apareceram ao lado de Jesus na transfiguração, uma cena que antecipa a ressurreição (Mc 9,1-9). E Abraão cujo seio é imagem do paraíso (Lc 16,22)? Ou será João Batista, o precursor; segundo Jesus, “dentro os nascidos de uma mulher não há um maior que ele, mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele?” (Lc 7,28).

Parece que Paulo não pensava em Maria cujo nome nem se encontra nas suas cartas (apenas “mulher” em Gl 4,4). Para os católicos, a pessoa que mais pertence a Cristo é Maria que já foi levada ao céu em corpo e alma (dogma da assunção 1950). A tradição e devoção da Igreja afirmam: em primeiro lugar está Maria, “a primeira depois do Único (Deus)”. O Papa Francisco salienta que “Maria é mais importante do que os apóstolos”.

Em primeiro lugar entre os santos está a mãe de Jesus, Nossa Senhora; dela dependia a encarnação, foi através do seu consentimento (sim; Lc 1,38), que Jesus entrou no mundo. Dela o filho de Deus recebeu a carne humana, não de José que colaborou como pai adotivo (Mt 1; Lc 1). O DNA de Jesus é de Maria, que colaborou não apenas fisicamente (Lc 11,27s; Mc 3,31-35p), mas com sua fé, seu carinho, sua educação etc. 

Quando Jesus ressuscitou, ele levou seu corpo (sua carne, seu DNA), para onde? Ao céu, a eternidade. Poderia ficar a carne imaculada de Maria e assumida por Jesus na encarnação, apodrecer em um túmulo? Não, devia ser glorificada como a do Filho. Cristo ressuscitado, de corpo e alma subiu ao céu (Ascensão do Senhor), de Maria dizemos que não subiu, mas foi “elevada” ao céu, também “em corpo e alma” (cf. oração do dia da “Assunção”). Como a nossa mãe (Jo 19,25) e irmã (como criatura) alcançou desde já a salvação plena e completa, ela é sinal de esperança para nós criaturas incompletas e limitadas.

Pode se perguntar se ressuscitarão todos os mortos para comparecerem ao julgamento (Jo 5,29; At 24,15, cf. Sb 4,20-5,1; Dn 12,2s)? Ou apenas os bons? Mas aqui Paulo fala da participação da ressurreição gloriosa de Cristo, não do julgamento (cf. Fl 3,21).

A seguir, será o fim, quando ele entregar a realeza a Deus-Pai, depois de destruir todo principado e todo poder e força. Pois é preciso que ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte (vv. 24-26).

Jesus pregava a vinda próxima do reino de Deus (Mc 1,14s); ele representava este reino na terra, porque era o “rei” (messias, em grego: Cristo) apesar da fraqueza aparente da cruz (“I.N.R.I”; cf. Jo 18,35-37). A primeira vinda foi na humildade (presépio, cruz; cf. 1Cor 1,18-25), a segunda vinda (parusia) será no triunfo do poder celestial no “dia do Senhor” (cf. 1,6-8; 5,5; 2Cor 1,14 etc.; cf. Am 5,18 etc.). “Destruir todo principado e todo poder e força”, estas três categorias designam todas as forças inimigas de Deus, angélicas e humanas (cf. 1Cor 1,26; Cl 1,16; 2,15; Ef 1,21; 1Pd 3,22).

“Pois é preciso que ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés”. Paulo cita aqui o Sl 110,1, um salmo messiânico (cf. Hb 1,13; 10,13 e Mc 12,35-37: Jesus é superior a Davi). Outro salmo também declara a vitória sobre os inimigos (Sl 2; cf. 1ª leitura).

Desde sua ressurreição, Jesus reina com toda autoridade (Mt 28,18; Rm 1,4). O último inimigo, a própria morte (personificada) será destruída em Ap 20,14; 21,4 (cf. Is 25,8; Ap 1,18).

A Bíblia do Peregrino (p. 2764) comenta: Paulo segue e amplia o esquema oferecido por Sl 110,1 …; entronização atual, duração “até que”, expansão do reinado, com a vitória sobre os inimigos. Paulo distingue as etapas. Primeira, a ressurreição de Cristo já acontecida. Segunda, a expansão a todos os cristãos na parusia. Terceira, a submissão de tudo com a vitória sobre os inimigos, até o último.

Com efeito, “Deus pôs tudo debaixo de seus pés” (vv. 27a).

Paulo cita Sl 8,7 (soberania do ser humano, “filho de Adão”) e mantém a hierarquia de tudo, tudo está submisso ao Filho (cf. Sl 8,5-8; Hb 2,8; Ef 1,20-22). Deus Pai está acima de tudo, também de Cristo (Jo 14,28). A Deus Pai, o Filho Jesus se submete, embora sendo igual a Deus, ele é Filho e Servo de Deus (cf. Fl 2,5-11; Jo 10,30; Mc 10,45), “para que Deus seja tudo em todos” (v. 28b; cf. Cl 3,11: Cristo).

Evangelho: Lc 1,39-56

Não há um texto bíblico que narra a ascensão de Nossa Senhora. Este evangelho foi escolhido porque Isabel proclama Maria “bendita entre todas as mulheres” (v. 42) e “mãe do meu Senhor” (v. 43; Senhor pode designar Javé Deus ou o Messias). Maria agradece e louva a Deus que “olha para humildade de sua serva. Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada … Derrubou do trono os poderosos e eleva os humildes” (vv. 48.52). A serva humilde de Nazaré foi elevada: aqui na terra tornou-se a mãe do Senhor e no fim é aclamada Rainha no Céu (cf. Ap 12; festa em oito dias, dia 22.08), é sinal de esperança para todos os pobres e humildes mortais.

Lucas conta paralelamente a história dos nascimentos de João Batista (seis meses mais velho, cf. v. 36) e de Jesus. Depois dos anúncios do arcanjo Gabriel, a Zacarias em Jerusalém e à Maria em Nazaré, as duas linhas paralelas se cruzam numa intersecção transcendental: A reclusão de Isabel (v. 24) se abre para receber a visita de sua prima. O novo episódio, o encontro de duas parentes em sua primeira gravidez, se polariza para o encontro misterioso de Jesus e João e para o hino de Maria (vv. 47-55, chamado “Magnificat”).

Maria é representante da comunidade dos pobres que esperam pela libertação. Dela nascerá o Filho de Deus. O anjo Gabriel tinha falado a Maria sobre a gravidez da sua prima Isabel “apesar da sua velhice … já faz seis meses que está grávida” (v. 36).

Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia (v. 39).

Nazaré fica na Galileia; de lá, Maria parte para a região montanhosa, isto é a Judeia com nível mais alto do mar (Jerusalém: 800 m). É um caminho cerca de 100 km até a casa de Isabel, hoje identificada no lugarejo de Ain Karim, 6 km a oeste de Jerusalém, onde seu marido Zacarias trabalhava no templo como sacerdote (1,8).

Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo (vv. 40-41).

A saudação de Maria é medianeira de alegria e inspiração celeste. Lembramos que a saudação grega é xaire (em latim: Ave) que significa: “Alegre-se” (1,28).

João recebe o Espírito anunciado em 1,15; como profeta é chamado antes de nascer, “antes de se formar no ventre eu te escolhi; antes de saíres do seio materno eu te consagrei” (Jr 1,5; Is 49,1; cf. Gl 1,15). Estremecendo diante do messias secretamente presente em Maria, João inaugura sua missão no ventre de Isabel e impressa sua alegria inconsciente (de sinal contrário os gêmeos de Gn 25,22). Assim João anuncia o messias já no ventre materno e antecipa-se o encontro dos dois adultos no rio Jordão (batismo de Jesus em 3,21p).

Isabel fala profetizandocheia do Espírito Santo”. Em Lc, a expressão “cheio/repleto do Espírito Santo” não significa plenitude de graça santificante, mas o dom da profecia que faz falar de forma inspirada (1,41.67; At 2,4; 4,8.31; 7,55; 9,17; 13,9). Aqui, o embrião João se manifesta no seio materno de tal modo que sua mãe expressa a voz profética. Pode-se comparar Maria com a arca da aliança, com base em 2Sm 6 (cf. Ap 11,19-12,1; 1ª leitura), porque dentro dela está a Palavra encarnada de Deus (cf. Jo 1,14).

Com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! (v. 42).

A interpretação profética de Isabel menciona três elementos conjugados: a fé (v. 45), a maternidade (v. 42), o Messias (v. 43). Maria é “bendita as mulheres”; embora possa recordar mulheres ilustres (Jael em Jz 5,24; Judite em Jt 13,18; Abgail em 1Sm 25,33), o contexto próximo convida a pensar na benção da fecundidade a Eva e Sara (Gn 1,28; 9,1; 17,16; Dt 28,4). Mas nenhuma maternidade da história pode ser comparada com a de Maria; a ela estavam direcionadas muitas maternidades procedentes.

Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? (v. 43).

Isabel como esposa de um sacerdote estava numa posição social, superior à de Maria, mulher de carpinteiro. No entanto, Isabel chama o filho de Maria de “meu Senhor”, como que reconhecendo o messias (Cristo). Não sabemos se o autor alude a Sl 110,1. No AT, “Senhor” é tradução do nome divino de Javé (cf. Ex 3,14). Para os cristãos, é título divino de Jesus Cristo ressuscitado (At 2,36; Fl 2,11 etc.) que Lc lhe atribui desde a vida terrestre, com mais frequência que Mt e Mc (cf. Lc 2,11; 7,13; 10,1.39.41; 11,39 etc.).

Cristo é o Senhor, ele é Deus junto com o Pai (“consubstancial”, declarou o Concilio de Niceia em 325), portanto, Maria pode ser chamada “Mãe de Deus” (Concílio de Éfeso em 431; lógico que Maria não é a Mãe do Pai nem do Espírito). As saudações do anjo (v. 28) e de Isabel (v. 42) formam a primeira parte da oração “Ave Maria”; a segunda parte (a intercessão, incluída oficialmente apenas em 1566) inicia “Santa Maria”, usando o título “Mãe de Deus”.

“Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria no meu ventre. Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido, o que o Senhor lhe prometeu” (vv. 44-45).

A benção acrescenta a felicitação (“bem-aventurada”), a primeira de uma série sem fim: a fé é mérito principal: crendo tornou possível o cumprimento. Em contraste com Zacarias (v. 20), Maria é a crente, acreditou e se colocou à disposição da palavra de Deus (v. 38) e da sua prima Isabel, cuja gravidez o anjo Gabriel lhe indicou como sinal (v. 36). Ajudando a Isabel, Maria permaneceu com ela “mais ou menos três meses” (v. 56), provavelmente até o nascimento e a circuncisão de João (cf. vv. 57-66).

Maria disse: “A minha alma engrandece o Senhor, e se alegrou o meu espírito em Deus, meu Salvador. ” (vv. 46-47)

Depois da bem-aventurança de Isabel no encontro das duas mães gravida (vv. 39-45), Maria responde com uma oração de louvor e ação de graças. Este hino de Maria (vv. 46-55) é chamado “Magnificat” (segundo a primeira palavra em latim: engrandece…) e inspira-se no cântico de Ana (1Sm 2,1-10) e em muitas outras passagens do AT.

No Magnificat, Maria é representante da comunidade dos pobres de Israel que esperam pela libertação (cf. 2,38). Dela nascerá o Filho de Deus, o messias libertador (cf. 4,18 citando Is 61,10).

O cântico é composto em estilo de hino (salmo com versos paralelos), com temas tradicionais. As duas seções dividem-se no versículo 50. Notem-se dois grandes temas: 1. Os pobres e pequenos são socorridos em detrimentos de ricos e poderosos (Sf 2,3; cf. as bem-aventuranças e os “ais” em Lc 6,20-26; Mt 5,3). 2. Israel é objeto da graça de Deus (cf. Dt 7,6; etc.), desde a promessa feita a Abraão (Gn 15,1; 17,1).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1252) comenta: O cântico de Maria se inspira no de Ana (1Sm 2,1-10) e em alguns salmos. Começa celebrando a ação de Deus que olhou para a humilhação que Maria vivenciava naqueles dias, por ter assumido a maternidade do Messias. Em seguida, recorda a ação de Deus na vida dos pobres de Israel, reorientando o rumo das coisas, recriando a justiça e renovando a esperança animada pelas promessas feitas desde o tempo de Abraão. O cântico indica o rumo que será assumido por Jesus, ungido pelo Espírito para levar a boa notícia aos pobres (4,18).  

A Bíblia do Peregrino (p. 2454) observa no hino: Não menciona expressamente a maternidade, implícita no contexto próximo. Não é implorável que Lucas tenha adaptado um hino já existente. Do cântico de Ana e seu contexto (1Sm 1-2), toma: o tema básico da maternidade (2,5), as duplas poderosas/humildes, ricos/pobres (2,5.7.8), a reviravolta da situação, a alegria da celebração (2,1), a santidade de Deus (2,2), a atenção para a humildade ou humilhação (1,11), o Deus de Israel (1,17).

O hino é alegre, festivo. A “alegria” irrompeu pela saudação de Gabriel (em latim Ave Maria; lit.: “Alegre-te” em 1,28, saudação comum em grego) e agora toma a palavra na boca de Maria. Ela exulta (Sl 35,9; cf. Hab 3,18; cf. cf. Sl 9,15; 13,6; 31,8;) a “grandeza” de Deus (cf. Sl 34,4; 69,31), “meu salvador” (2Sm 22,3; Is 43,3;).

O AT reserva, o mais das vezes, o título “salvador” a Deus (Dt 32,15; 1Sm 10,19; Sl 24,5; 27,1.9; 62,2.7; 65,6; 79,9; 95,1…cf. Lc 1,47; 1Tm 1,1) e o dá às vezes aos juízes de Israel (Jz 3,9.15; 12,3; Ne 9,27). Na aparição dos anjos aos pastores, Lc o dará a Jesus (2,11; cf. Jo 4,42).

Porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, (v. 48)

Maria pertence ao “povo pobre e humilde” que o Senhor conservou (Sf 3,12). “Olhou para humildade/humilhação de sua serva“ (cf. v. 25.38; 1Sm 1,11; Sl 31,8). Alguns pensam que o hino de Maria nasceu na liturgia cristã na Palestina ou em Jerusalém (cf. a filha de Sião em Sl 9,15; Zc 9,9); Lc lhe teria então acrescentado o v. 48, para colocá-lo nos lábios de Maria (cf. vv. 38.45). A Bíblia de Jerusalém (p. 1928) comenta: Lc deve ter encontrado esse cântico no ambiente dos “pobres”, onde era talvez atribuído à Filha de Sião; julgou conveniente colocá-lo nos lábios de Maria, inserindo-o em sua narrativa, que é em prosa.

“Me chamarão bem-aventurada” (cf. 11,27s) como as vizinhas de Lia a felicitaram por causa do nascimento de Aser (= Féliz; Gn 30,13), mas projetado para um futuro sem fim. Profecia que está se cumprindo na Igreja que a vê como primeira criatura que alcançou a plenitude da salvação (dogma da Assunção de Nossa Senhora, a serva humilde de Nazaré foi elevada; cf. v. 52b): aqui na terra tornou-se a mãe do Senhor e no fim é aclamada Rainha no Céu (cf. Ap 12), sinal de esperança para todos os pobres e humildes mortais.

Porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que o temem (vv. 49-50).

Da pessoa agraciada de Maria (“em meu favor”), o louvor se generaliza, “a todos os que o temem”.

 O (Todo) “poderoso”: Sf 3,17. Já Gabriel (cujo nome significa: poder/força de Deus) mencionou o “poder” do Altíssimo (v. 35). “Fez grandes coisas” (Sl 71,19; 126,2-3; Jl 2,21) “em meu favor” (cf. Dt 10,21).

“O seu nome é santo” (Is 57,15; Sl 111,9; cf. 1Sm 2,2; o três vezes santo de Sl 99 e Is 6,3). Já Gabriel falou do Espírito Santo e do futuro menino como santo ou consagrado (v. 35).

“Sua misericórdia se estende a todos que o temem” (Sl 103,17; cf. Sl 100,5; o estribilho litúrgico de Sl 136). O temor de Deus é virtude sapiencial e dom do Espírito (Sl 25,12-14; 112,1; 128,1; Pr 1,7; Eclo 1,11-20 etc.; Is 11,2).

Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes (vv. 51-52).

Do contraste entre o poder de Deus e o ser humano e humilde, passa-se ao exercício do poder divino que inverte a sociedade em favor dos humildes.

“Mostrou a força” com sua direita (Sl 118,15s), com seu “braço” (Ex 15,16; Is 51,5.9, Sl 89,11) que desbarata, “derruba”, “dispersa” os inimigos e monstros (Sl 89,10s davídico); Jó 5,11s; 12,19), “poderosos” e “os soberbos de coração” (lit. os orgulhosos pelo pensamento dos seus corações), cf. Eclo 10,14s.

“O Senhor ergue do pó o homem fraco, do lixo ele retira o indigente para fazê-lo sentar-se com os nobres” (1Sm 2,7-8 = Sl 113,7), só isso já é humilhação dos abastecidos. “Quem se exalta será humilhado, quem se humilha, será exaltado (elevado)” (Mt 23,12; Lc 14,11; 18,14; cf. Ez 21,31).

Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias (v. 53).

Como na política, realiza também uma revolução na economia (cf. as transformações em Sl 107,9.33-41). A respeito da libertação de um escravo: “Quando o deixares ir em liberdade, não o despeças de mãos vazias” (Dt 15,13). Se Brasil tivesse feito uma reforma agrária junto à abolição da escravatura, o país seria outro.

Lc destaca o contraste e a inversão nas bem-aventuranças (6,20-26) e na parábola do pobre Lazaro e o rico esbanjador (16,19-31). Em Lc, Jesus não só multiplica os pães para a multidão faminta (9,12-17p), mas converte alguns ricos para partilha e colaboração (Zaqueu em 19,1-10; mulheres ricas em 8,3; Barnabé em 4,36s).

“Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre” (vv. 54-55).

O hino emboca nas promessas antigas aos antepassados (“nossos pais”) do povo eleito por Deus (Dt 7,6). “Israel” é nome do povo socorrido inúmeras vezes (libertado da escravidão, resgatado do exílio etc.), é “servo” de Deus (Is 41,8s; como Maria, cf. vv. 38.48). Este povo descende do neto de Abraão, Jacó, cujo apelido era Israel (Gn 32,29; 35,10). A eleição começou com Abraão a quem Deus fez sair da sua terra para ser uma benção para todos os povos, e lhe prometeu terra e “descendência” (Gn 12,1-3; 13,14-17; 15,5; 17,1s etc.).

O AT nota muitas vezes que Deus “se lembra” (Gn 8,1; 9,15; Ex 2,24…) para dizer que ele é fiel à sua promessa (a Davi, a Jacó, a Abraão, cf. Sl 18,51; Mq 7,20; Lc 1,72) e a executa. Se sua misericórdia (vv. 50.54) é pura iniciativa, a lealdade supõe um compromisso (Sl 25,6; 98,3).

Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa (v. 56).  

Maria permaneceu provavelmente com Isabel até o nascimento e a circuncisão de João. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1969) comenta: Os três meses de permanência de Maria se estendem até o nascimento de João (cf. 1,36), e Maria pode ter estado presente a este acontecimento, mas Lc indica aqui a sua partida para concluir a narração, da mesma maneira que contará paradoxalmente a prisão de João antes do batismo de Jesus (3,20): ele destaca assim a distinção das cenas e separa o tempo de João do tempo de Jesus (cf. 1,80, onde ele termina falando da juventude de João, antes de voltar ao nascimento de Jesus).

O site da CNBB comenta:

Vemos no evangelho de hoje o encontro de duas mulheres que estão grávidas sem que isso fosse possível. De um lado, Isabel, idosa e estéril, e de outro Maria, virgem. A idosa representando o Antigo Testamento, pois será a mãe do último profeta da Antiga Aliança. A virgem representando o Novo Testamento, pois será a mãe daquele que no seu sangue selará a Nova e Eterna Aliança entre Deus e os homens. Vemos a complementariedade entre as duas Alianças e vemos também em Maria a essência da missão evangelizadora: levar Jesus a todas as pessoas para que possam reconhecê-lo e acolhê-lo.

Maria reconhece, no canto do magnificat, que Deus realizou maravilhas em sua vida, mas que esta realização não foi somente para ela e que não é um fato isolado na história do povo de Deus, de modo que as maravilhas que Deus realiza nela são, na verdade, para todo o povo de Deus, uma vez que pelo seu Filho virá a salvação para todos os povos. Sendo assim, devemos compreender que quando Deus realiza maravilhas nas nossas vidas, essas maravilhas não são apenas para nós, mas a todas as pessoas a partir de nós, e quando Deus realiza maravilhas nas vidas das outras pessoas, também somos beneficiados por ele.

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