16 de Fevereiro de 2021, Terça-feira: “Prestai atenção e tomai cuidado com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes.” Os discípulos diziam entre si: “É porque não temos pão” (vv. 14-16).

6ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Gn 6,5-8; 7,1-5.10

Ouvimos hoje sobre o início do dilúvio, primeira catástrofe global na Bíblia. Enchestes destruidoras marcaram a memória de muitos povos e originaram várias narrativas de dilúvio, por ex. o mito da “terra sem males” dos índios guarani. No Oriente Médio, havia duas ou mais narrativas mesopotâmicas de 1800 a.C., aproximadamente, que influenciaram os autores bíblicos. A narração bíblica combina duas traduções. Nossa liturgia selecionou o trecho atribuído antigamente ao javista (porque usa o nome divino Yhwh, Javé, traduzido por “Senhor”, cf. Gn 2-4), e omitiu a outra tradição, a sacerdotal (séc. VI a.C., usa Elohim “Deus”, cf. Gn 1 e 5).

Uma teoria mais recente (W. Ryan e W. Pitman em 1996) alega um aumento do nível do mar no fim das eras glaciais que causou uma grande invasão de águas do oceano Atlântico pela estreita de Gibraltar formando assim o mar mediterrâneo, que, bem mais tarde, irrompeu também pela estreita de Istanbul, formando o mar Negro (cerca de 7150 a.C.). A Turquia com o monte Ararat (onde a arca encalhou, cf. 8,6) está no meio entre os dois mares, e de lá nascem os rios Eufrates e Tigre que irrigam a “Mesopotâmia” (lit. “entre rios”; atualmente o norte da Síria e Iraque).

O Senhor viu que havia crescido a maldade do homem na terra, e como os projetos do seu coração tendiam sempre para o mal. Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem na terra e ficou com o coração muito magoado, e disse: “Vou exterminar da face da terra o homem que criei; e com ele, os animais, os répteis e até as aves do céu, pois estou arrependido de os ter feito!” Mas Noé encontrou graça aos olhos do Senhor (6,5-8).

Nos vv. 5-8, Javé se arrepende de ter feito o ser humano e quer pôr fim à crescente maldade, que teve início no jardim (3,1-24), prosseguiu com Caim (4,1-16), Lamec (4,23-24), e os “filhos de Deus” (6,2). “Do céu Javé se inclina sobre os filhos de Adão, para ver se há um sensato, alguém que busca Deus. Estão todos desviados e obstinados também …” (Sl 14,2s). O que Deus vê, sente e diz é a chave teológica de todo o relato: uma visão pessimista de toda a humanidade, uma crise fatal que é preciso superar com uma intervenção extraordinária.

Deus penetra no coração do homem (Pr 15,11) e descobre aí a raiz viciada de pecados que se multiplicam “sempre”. É como se descobrisse um defeito de fabricação, de “modelagem” (etimologia da palavra hebraica para atitude, mentalidade): “Os projetos (lit. a inclinação dos desígnios) do seu coração tendiam sempre para o mal”. Nas proximidades da era cristã, os judeus refletirão profundamente sobre a má inclinação ou deformação da natureza humana, que todavia pode ser contrabalançada por uma “inclinação firme” que se manifesta na constância e na fidelidade (cf. também 8,21 e Eclo 37,3).

“O Senhor arrependeu-se”; a mesma expressão em 1Sm 15,11.30 (Javé arrependido de ter feito Saul rei). Este arrependimento de Deus exprime, à maneira humana, a exigência de sua santidade, que não pode suportar o pecado (1Sm 15,29 afasta uma interpretação muito literal, cf. Nm 32,19). Bem mais frequentemente, o “arrependimento” de Deus significa o aplacamento de sua cólera e retirada de sua ameaça (cf. Jr 26,3; Jn 3,10).      

Javé “ficou com o coração muito magoado”; outro antropomorfismo (imaginar Deus em forma humana), típico da tradição que usa nome Javé. Com isso o autor nos apresenta um Deus que não é indiferente nem neutro, mas sente e participa como pessoa que sofre contemplando sua boa criação perturbada pelo homem mau. Evoca a dificuldade da ação de Deus às voltas com a liberdade humana. Mostra também que o Deus da Bíblia leva em conta as atitudes humanas, embora permanecendo fiel e constante.

“Exterminar, apagar” (6,7) é o contrário de criar: sem seres humanos, o mundo voltará a ser bom? (cf. Sl 104,35). Não dá para entender porque Deus queria exterminar todos os seres vivos (cf. Sf 1,2s), também os animais, se são apenas os homens que são maus (e a serpente). Mas os homens evoluíram a partir dos animais (não têm um dia própria da criação para eles, estão juntos, cf. 1,24-31; 2,7.19).

Deus quer exterminar, mas um pequeno “resto” (Is 4,3) deve sobreviver. Esta atitude encontramos nos profetas que anunciam a desgraça sobre o povo infiel em Israel (Am 3,12; 5,15; 9,8-10; Is 6,13; 7,3; 10,19-21;28,5s; 37,4.31s; Mq 4,7; 5,2; Sf 2,7.9; Jr 3,14; 5,18; Ez 5,3; 9; cf. Jn).

Somente Noé “encontrou graça aos olhos do Senhor”; uma das expressões favoritas da tradição javista (cf. 18,3; 19,19; 30,27…). A Bíblia do Peregrino (p. 24) comenta: O monossílabo hebraico para “graça, favor”, inversão fonética das consoantes de “Noé”, encerra toda a salvação, e a concentra por ora num homem com sua família, porque Noé preserva toda a honradez e justiça (7,1).

O nome de Noé já apareceu em 5,30.32 (inserido pela tradição “sacerdotal” que recomeça em 6,9) e aproxima-se do termo que significa “consolar, reconfortar, restaurar” (nhm, cf. Is 40,1), sugerindo que Deus salvará a humanidade através de Noé. Nossa liturgia omite a versão sacerdotal (6,9-22) e salta para continuação javista (7,1-5). Em 6,9-13 (tradição sacerdotal), é Deus (Elohim) que age, porque a terra está “arruinada” e “cheia de violência”, devido ao comportamento dos seres vivos. Assim os israelitas usam o dilúvio para combater a maldade e a violência (cf. Os 4,1-3). Nos textos mesopotâmicos, os deuses enviam o dilúvio por causa das murmurações humanas.

O Senhor disse a Noé: “Entra na arca com toda a tua família, pois tu és o único homem justo que vejo no meio desta geração. De todos os animais puros toma sete casais, machos e fêmeas, e dos animais impuros, um casal, macho e fêmea. Também das aves do céu tomarás sete casais, machos e fêmeas, para que suas espécies se conservem vivas sobre a face da terra. Pois, dentro de sete dias, farei chover sobre a terra, quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei da superfície da terra todos os seres vivos que fiz”. Noé fez tudo o que o Senhor lhe havia ordenado. E, passados os sete dias, caíram sobre a terra as águas do dilúvio (7,1-5).

O olhar benevolente do Senhor volta-se para Noé, através do qual vai restaurar a humanidade destruída; cf. Jr 5,1: “Percorrei as ruas de Jerusalém, … se encontrais um homem que pratique o direito…, eu a perdoarei”.

Em 6,17-22 (sacerdotal) Deus (Elohim) diz que vai mandar o dilúvio sobre a terra. Para o relato “sacerdotal” (6,9-20), tratava-se apenas de assegurar a sobrevivência das espécies, e Deus ordena que Noé leve a família e “um casal de cada ser vivo” (cf. 7,9.15); Noé obedece.

No relato javista (7,2-5), Javé ordena que que sejam levados “sete casais” de animais puros, e apenas um casal de impuros, e diz que fará chover sobre a terra; Noé obedece. Os animais puros servirão apenas para sacrifícios (8,20s). Toda a alimentação se supõe vegetariana (1,29s), só depois do dilúvio entra a carne dos animais no cardápio (porque Noé os salvou, cf. 9,2-4).

“Sete” significa plenitude, ou seja, o tempo se completou (uma semana). “Caíram sobre a terra as águas do dilúvio”, o Antigo Oriente imaginou um oceano enorme acima do firmamento, de onde vem a chuva através de comportas (cf. 1,6-8; Is 24,18). Na tradição javista, ainda não se mencionou uma chuva, apenas rios, humidade e irrigação (cf. 2,5.10-17).

“Quarenta dias e quarenta noites” (cf. 7,12.17; 8,6) é um tempo de provação e expectativa, como Moisés na montanha (Ex 24,18), Elias (1Rs 19,8) e Cristo no deserto (Mc 1,13p). Depois da libertação, o povo andava por 40 anos no deserto (Ex 16,35; Nm 14,33; Dt 2,7: Js 5,6). O tempo do noivado judaico também é de 40 dias.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 31s) comenta: O Dilúvio, do qual se conhecem versões extrabíblicas, sobretudo um relato babilônico incluindo na epopeia de Guilgamesh, é com efeito transmitido, com alguns remanejamentos, pelas duas tradições, a “javista” e a “sacerdotal”, tendo cada uma a sua própria perspectiva. Observe-se, por exemplo, a dupla menção à obediência de Noé (6,22; 7,5), à sua entrada na arca (7,7.13), aos casais de animais (6,19; 7,2). São atribuídos ao Javista os vv. 6,1-8; 7,1-5.7.10.12.16b.17b.22-23; 8,2b-3a.6-12.13b.20-22. Este relato bem colorido está orientado para um sacrifício aceito por Deus, com consequências boas para o homem. O Senhor concedeu a graça a Noé e promete garantir o ritmo das estações, apesar da perversidade do coração do homem (6,5-8; 8,21-22). O relato “sacerdotal” compreende os vv. 6,9-22; 7,6.9.11.13-16a.17a.18-21.24; 8,1-2a.3b-5.13a.14-19; 9,1-17. Ele insiste mais na construção da arca, descrita como um santuário, e na aliança que Deus fez com Noé para toda a humanidade (9,1-17). Há vestígios de alguns remanejamentos destinados a fazer as duas tradições concordarem (p. ex. 7,3b.8).

A Bíblia de Jerusalém (p. 39) comenta: O redator final respeitou esses dois testemunhos recebidos da tradição, sem procurar suprimir suas divergências de detalhe. Possuímos muitas narrações babilônicas sobre o dilúvio, as quais apresentam notáveis semelhanças com a narrativa bíblica. Esta não depende daquelas, mas haure da mesma herança comum: a lembrança de uma ou várias inundações desastrosas do vale do Tigre e do Eufrates, que a tradição aumentou com as dimensões de um cataclismo universal. Mas, e nisto está o essencial, o autor sagrado dotou essa lembrança de um ensino eterno sobre a justiça e misericórdia de Deus, sobre a malícia do homem e a salvação concedida ao justo (cf. Hb 11,7). É um julgamento de Deus, que prefigura o dos últimos tempos (Lc 17,26s; Mt 24,37s), como a salvação concedida a Noé figura a salvação pelas águas do batismo (1Pd 3,20-21).

Evangelho: Mc 8,14-21

Após os fariseus que exigiram um sinal (vv. 11-13, evangelho de ontem), agora são os discípulos acometidos de cegueira espiritual (vv. 14.21) que recebem as mesmas censuras (em forma interrogatória) do que os de fora em 4,12.

Em v. 13, Jesus deixou os fariseus e embarcou para uma travessia à outra margem. Durante esta travessia do lago, Mc coloca um diálogo áspero e enigmático. A Bíblia do Peregrino (p. 2416) comenta: Em plano superficial, está a preocupação dos discípulos por não terem levado provisões. A essa omissão pode responder o convite a confiar em Jesus, subindo a um plano superior. Mas essa não é a substância do diálogo, que não é instrução, mas aviso e repreensão dura, sem condescendência. O problema de fundo é a incredulidade, a incapacidade de compreender a revelação da pessoa e da missão de Jesus.

Os discípulos tinham se esquecido de levar pães. Tinham consigo na barca apenas um pão. Então Jesus os advertiu: “Prestai atenção e tomai cuidado com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes.” Os discípulos diziam entre si: “É porque não temos pão” (vv. 14-16).

Depois da segunda multiplicação dos pães (vv. 1-10) onde restaram sete cestos, os discípulos tinham consigo “apenas um pão” (v. 14). Pode ser uma alusão à Eucaristia, ou seja, basta ter Jesus consigo, não precisa se preocupar (cf. 4,35-41; 6,45-52). Além das travessias no lago, também as preocupações com a alimentação são motivos típicos em Mc (cf. 3,20; 6,31; 7,19).

Jesus alerta sobre o fermento dos fariseus e de Herodes (cf. o conjunto em 3,6). Aqui em Mc, o fermento não tem o mesmo sentido positivo como na parábola de Mt 13,33 e Lc 13,20s. A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 1941) comenta: O fermento era tido como fonte de impureza e corrupção (1Cor 5,6s; Gl 5,9) e para o rabinos, simbolizava as más inclinações do homem. No contexto de Mc, parece designar as más disposições, tanto dos fariseus (cf. 2,1-3,6; 7,1-13; 8,11-13) com o de Herodes (cf. 6,14-29). Os discípulos corriam risco de compartilhar essas más disposições, se se manifestassem rebeldes aos esforços de Jesus de lhes manifestar o sentido autêntico da missão à qual os queria associar.

Os discípulos são ainda como o povo néscio e sem juízo que os profetas Jeremias e Ezequiel criticam (Jr 5,21; Ez 12,2). O fermento dos fariseus é a tradição humana de observâncias (cf. 7,8-13), o fermento de Herodes é o poder sem moral. Esse é o fermento que corrompe (1Cor 5,7-8) e se contrapõe ao fermento do reino de Deus (Mt 13,33p).

Mas Jesus percebeu e perguntou-lhes: “Por que discutis sobre a falta de pão? Ainda não entendeis e nem compreendeis? Vós tendes o coração endurecido? Tendo olhos, vós não vedes, e tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais de quando reparti cinco pães para cinco mil pessoas? Quantos cestos vós recolhestes cheios de pedaços?” Eles responderam: “Doze.” Jesus perguntou: E quando reparti sete pães com quatro mil pessoas, quantos cestos vós recolhestes cheios de pedaços? Eles responderam: “Sete.” Jesus disse: “E vós ainda não compreendeis?”  (vv. 17-21).

Jesus faz lembrar as duas multiplicações dos pães, até os números (6,30-44; 8,1-10). As censuras dele aos discípulos sempre estão em forma de interrogações para estimulá-los. É mais um convite aos discípulos de irem além das suas preocupações materiais, para refletirem sobre o sentido da missão de Jesus iluminada pelos milagres. Estas palavras chamam atenção para tudo o que se revela da sua missão e da sua pessoa no decurso desta parte do livro, na qual se multiplicaram os sinais não compreendidos.

O quadro que o evangelista Marcos apresenta é pessimista até o final. Os discípulos não entendem. Mc não poupa os discípulos como os outros evangelistas fazem depois dele. É uma característica deste evangelho mais antigo, que os discípulos não compreendem os milagres de Jesus nem o sentido de suas palavras (cf. o segredo do messias e os anúncios da paixão a partir deste capítulo), reagem inadequadamente e recebem censuras. Em Mt e Lc, os apóstolos são descritos com bem mais respeito e devoção.

Ou Mc identifica certas atitudes da sua própria comunidade (e nossa?) com as dos discípulos e quer censurá-las, ou talvez tenha sido assim a atitude dominante dos discípulos durante a vida de Jesus: contemplaram milagres e não viram sinais, ouviram palavras e não escutaram uma mensagem, “têm olhos para ver e não veem, têm ouvidos para ouvir e não ouvem, pois são uma casa rebelde” (Jr 5,21; Ez 12,2; Is 6,9s; Mc 4,11s). Em semelhante atitude, não se projeta ainda a luz da ressurreição. Mas Jesus já fez um surdo ouvir (7,31-37) e fará ainda os cegos verem (em seguida: 8,22-25; 10,46-52).

No site da CNBB comenta-se: Todos nós temos uma hierarquia de valores que servem como critério para a nossa vida e tudo o que temos e fazemos está subordinado a essa hierarquia. A maioria das pessoas orienta a sua vida para a satisfação das suas necessidades primárias e instintivas. Assim, os seus valores principais são a comida, a bebida e o sexo, de modo que essas pessoas, apesar de civilizadas, possuem a mesma hierarquia de valores que os animais: buscam apenas a satisfação dos próprios instintos. Essas pessoas não aceitam a Jesus e criticam a sua doutrina porque a sua dependência aos instintos lhes cega a vista e endurece os seus corações, de modo que não podem compreender a verdadeira hierarquia de valores que Jesus veio trazer para que as pessoas não vivam instintivamente, mas tenham vida em abundância.

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