16 de Janeiro de 2019, Quarta-feira: Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André (v. 29).

Leitura: Hb 2,14-18

Continuamos na leitura da “carta aos hebreus”, que pode ser chamado “sermão aos cristãos desorientados” (A. Vanhoye) ou “sermão sacerdotal” porque apresenta Jesus Cristo como “sumo sacerdote” (v. 17; 3,1 etc.). Ele é o Filho, superior aos anjos, rei do mundo futuro (v. 5). Embora o reino futuro e definitivo de Cristo ainda não se realize plenamente, não se deve duvidar que Jesus tivesse vivido e morrido por nós, “em favor de todos” (cf. vv. 8b-9).

Visto que os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição, para assim destruir, com a sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo, e libertar os que, por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão. Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão (vv. 14-16).

A humanidade encontra em Jesus um seu semelhante (“em comum a carne e o sangue”). Como todos nós temos origem em Deus, também temos um futuro comum em Deus. Se Deus é o Deus da vida, nada mais é contrária a Deus do que a morte. Como a vida de Jesus não terminou com a morte, mas venceu na ressurreição, também para nós “irmãos de Jesus”, a morte não tem a última palavra (cf. vv. 14-16). O que Jesus e os crentes têm em comum, não é só o destino futuro, também a origem em Deus. Com isso os seres humanos são irmãos, porém, distante de Deus. A encarnação do Filho de Deus uniu os homens com ele e os tornou mais iguais; assim se assemelham mais a Deus também.

“Aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo.” No livro mais novo do AT, escrito por volta de 50 a.C. em Alexandria, “Deus não fez a morte… foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (1,13; 2,24). Lutero pensava em Apolo (cf. 1Cor 1,12; 3,4-11.22; Tt 3, 13) como autor de Hb porque sua descrição em At 18,24-28 se encaixa bastante ao perfil do autor de Hb: origem judaica, educação helenista em Alexandria (onde atuava o filósofo judeu e neoplatônico Filon, cf. Hb 1,3a; 8,5), conhecimento da escrituras e reputação de eloquência. Mas isso não basta para atribuir a carta anônima a Apolo, pois estas características podem ser encontradas em outras pessoas apostólicas da época.

“Libertar os que, por medo da morte, estavam a vida toda sujeitos à escravidão.” Sb 10-19 contempla a ação da sabedoria de Deus nos milagres do êxodo (“saída” da escravidão do Egito). Para Paulo, é o Espírito que ressuscita e da vida, nos faz “filhos” e liberta do medo da escravidão e da morte (Rm 8,11-15.21; cf. 1Cor 15,54-56).

“Não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão”. Seria uma justificação de chamar os destinatários desta carta “hebreus” (termo que aparece pela primeira vez em Gn 14,13; cf. Gn 10,21; Ex 1,15 etc.)? O título “aos Hebreus” não faz parte do texto (nem os termos “judeus”, nem “israelitas”, nem “circuncisão”), foi escolhido, provavelmente, na hora de inserir o escrito numa coletânea de várias cartas. Este sermão-carta, porém, se dirige a cristãos de longa data (cf. 5,12), talvez tenham sido judeus antes do seu batismo. Imaginava-se que seria endereçado aos hebreus, por causa do uso abundante do AT (Antigo Testamento) e das referências ao culto no templo de Jerusalém.

Por isso devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. Pois, tendo ele próprio sofrido ao ser tentado, é capaz de socorrer os que agora sofrem a tentação (vv. 17-18).

Os vv. 17-18 apresentam o tema central do sermão, que vai ser desenvolvido nos capítulos seguintes: Jesus é o “sumo sacerdote” ideal, fiel a Deus e solidário com os homens, “a fim de expiar os pecados do povo” (cf. Rm 3,25; 1Jo 2,2; 4,10). “Fazer-se em tudo semelhante aos irmãos”, incluindo as tentações (cf. Mt 4,1-11p), os sofrimentos e a morte.

Deste modo podemos constatar que a primeira parta da carta (sermão) foi concebida para preparar o novo tema: Jesus, sumo sacerdote. Todo sacerdote deve intermediar entre Deus e os seres humanos. Também a insistência na questão do anjos (1,4-2,5.16) se explica agora. O que atraia os crentes da época para os anjos era exatamente sua capacidade de mediação entre Deus (transcendente) no céu e os seres humanos na terra, cf. Gn 28,12; Jo 1,51).

Mas o autor de Hb mostra: Cristo é muito mais qualificado do qualquer anjo para cumprir esse papel de sumo sacerdote. Filho de Deus, ele tem com seu Pai uma relação mais íntima do qualquer anjo (1,5-14). Irmão dos homens, ele é bem mais capaz de nos compreender e nos ajudar (2,5-16). Certamente, os anjos têm lugar assegurado na realização dos desígnios de Deus, mas trata-se de um lugar subalterno (1,14). Cristo glorificado vale incomparavelmente mais do que eles. Para nós, ele é mais do que simples intermediário, pois foi pelo mais profundo do seu ser que ele se tornou, por meio de sua Paixão, o verdadeiro mediador entre Deus e os homens…

Em última análise, o título que resume e completa os outros é “sumo sacerdote misericordioso e fiel” (2,17). O ouvinte é levado a preferi-lo mesmo em relação ao título de Rei-messias. Com efeito, as imagens do messianismo real … evocam excessivamente o poder político e os triunfos guerreiros… “Filho de Deus” reflete somente sua relação com Deus; “irmão dos homens” expressa somente a sua relação conosco; “Senhor” evoca apenas a sua glória; “Servo” recorda apenas sua voluntária humilhação… No entanto, “sumo sacerdote” dá a ideia da dupla relação e, ao mesmo tempo, evoca sua Paixão e sua glória (Vanhoye, p.55s).

Em todo NT, apenas a carta Hb dá este título a Jesus. Era tal inovador, mas suscetível a mal-entendidos que precisava explicá-lo mais detalhadamente nas seções seguintes (3,1-5,10; 5,11-10,39).

Evangelho: Mc 1,29-39

Continuamos ouvindo o relato do dia de sábado em Cafarnaum, em que Jesus, depois de curar um homem possuído no espaço público da sinagoga (1,21-28, evangelho do domingo passado), cura uma mulher no espaço privado de uma casa.

Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André (v. 29).

Hoje as ruínas da sinagoga daquela época e os restos da casa de Simão Pedro são sítios arqueológicos em Cafarnaum. A primeira comunidade está se formando nessa cidade e nessa casa. Isso reflete a missão cristã nos primeiros séculos quando se evangelizava nas casas que serviam para catequese e cultos da assembleia e catequese (Jesus ensina nas casas em 7,7.17; 9,28.33; 10,10).

Tiago e João já haviam deixado a família (o pai em v. 20). Simão (chamado de Pedro só partir de  em 3,16; cf. Mt 16,18) parece ter sido chefe da “casa” que serve de apoio para a missão de Jesus nesta cidade (cf. 2,1; 3,20.31; 4,10?; 9,33).

A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los (vv. 30-31).

Este é o milagre mais breve nos evangelhos, mas contém todos os elementos do gênero. Os relatos de cura seguem um esquema simples: apresentação/descrição da doença e pedido de cura (“a sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus”), depois aproximação e gesto e/ou palavra daquele que cura (“ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se”; cf. 9,27; 5,41; em Lc 5,39, Jesus “ameaçou a febre”, porque pela medicina antiga eram os demônios que causaram a febre) e finalmente a demonstração da saúde recuperada (“a febre desapareceu, e ela começou servi-los”). Muitas vezes segue ainda a reação do povo admirado, aclamando ou assustado. Aqui, a reação do povo é descrita nos vv. 32ss.

O fato de Simão Pedro ter uma sogra demonstra claramente que ele era casado. Sendo natural de Betsaida (Jo 1,44), ao casar provavelmente tinha se mudado para casa dos sogros me Cafarnaum. Alguns acham que Pedro já era viúvo, mas a Bíblia não esclarece o assunto. Paulo diz que todos os outros apóstolos e Cefas (Pedro) levaram consigo uma mulher na missão, só Paulo não fez (1Cor 9,5). Em Mc 10,28s, Pedro diz que deixou tudo para seguir Jesus. Jesus promete recompensa para quem tenha deixado “casa, irmãos, irmãs, mãe e filhos e terras” por sua causa (Lc 18,29 acrescenta “mulher”).

À tarde, depois do pôr-do-sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio. A cidade inteira se reuniu em frente da casa. Jesus curou muitas pessoas de diversas doenças e expulsou muitos demônios (vv. 32-34a).

A cena se alarga: da cura de indivíduos à cura em massa, da casa de família à “cidade inteira”.

Mc especifica o tempo para seus leitores não-judeus: “à tarde, depois do pôr do sol” quer dizer que o sábado terminou para os judeus. No sábado, dia sagrado dos judeus, era proibido trabalhar e curar (cf. Mc 2,23-3,6p; Lc 13,14; Jo 5,10.16-18; 9,14-16; no AT: Gn 2,3; Ex 16,23-30; 20,8-11; 23,12; 31,12-17 etc.). Mas para os judeus, o próximo dia já começa com o brilho da primeira estrela na véspera, então agora permitido carregar a Jesus “todos os doentes e possuídos pelo demônio” (cf. 6,55-56).

Jesus não curou “todos os doentes” que trouxeram, mas “muitas pessoas” (como depois os missionários cristãos). Mc quer relatar com credibilidade. É o primeiro sumário das curas em Mc: o que narrou antes, as curas da sogra doente e do possuído na sinagoga, agora é atividade geral. O dia em Cafarnaum é paradigmático para Mc.

E não deixava que os demônios falassem, pois sabiam quem ele era (v. 34).

Temos aqui outra vez o “segredo messiânico”. Como em v. 25, Jesus não só acalma os possuídos desequilibrados, mas manda calar. Não deixava que os demônios falassem, pois sabiam quem Ele era (v. 35; cf. v. 24; 5,6s). Quem é Jesus? Mc responde isso ao longo do seu evangelho (cf. 1,1.11.24 etc.), não precisa explicitar aqui no sumário. Os homens ainda não sabem que Jesus é o messias. Os demônios, porém, como espíritos (mesmo maus e impuros) têm conhecimento sobrenatural, mas Jesus quer manter sua identidade messiânica em segredo (cf. vv. 24s.44; 3,11s; 7,36; 8,30; 9,9) para não ser confundido com um messias guerreiro e nacionalista. Este “segredo messiânico” é típico para o evangelho de Mc que foi escrito no meio da Guerra Judaica (66-70 d.C.).

De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto. Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando o encontraram, disseram: “Todos estão te procurando”. Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (vv. 35-39).

Aqui encontramos pela primeira vez outro traço característico na narração de Mc: a falta de compreensão por parte dos discípulos. Jesus começa afastar-se das multidões (cf. 3,9; 4,10; 7,24) e, “de madrugada… rezar num lugar deserto” (v. 35, cf. 6,31-46; 14,32ss). Oração, anúncio do reino e sua prática de curar os males pertencem juntos.

Os discípulos “procuraram”, a palavra grega (lit. “perseguiram”) revela um desejo egoísta (cf. 3,22; Jo 6,24), querem segurá-lo para si e para essa cidade, dizendo: “Todos estão te procurando”.  Mas Jesus responde: “Vamos a outros lugares…, devo pregar também ali, pois foi para isso que vim” (v. 38). Também isso pode refletira a prática missionária dos primeiros cristãos, escolher uma cidade como centro e depois ir aos lugares do redor, às comunidades da periferia, hoje o Papa Francisco chama isso “Igreja em saída”.

Jesus não veio para ser um médico bem-sucedido (cf. 2,17; Lc 4,23) prolongando a vida das pessoas por mais alguns anos, mas para pregar os valores do reino de Deus, praticá-los curando e, depois, salvar-nos do pecado e da morte através da doação de sua própria vida (cf. 2,5.17; 10,45). O evangelista mais novo, Jo, desenvolverá um teologia profunda sobre Jesus como “enviado” (cf. Jo 3,17.34 etc.).

E andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os demônios (v. 39).

Neste pequeno sumário termina a sequência paradigmática do primeiro dia, estendendo a atividade de Jesus de Cafarnaum “por toda a Galileia.  Como em 1,21, Jesus prega nas sinagogas (e os missionários cristãos, cf. Paulo nos At 9,20; 13,5.14ss etc.) e liberta os seres humanos da alienação, das entidades que não nos deixam ser humanos.

O site da CNBB resume: A centralidade da missão de Jesus encontra-se na revelação do Reino de Deus, de modo que para ele é mais importante a pregação do que a realização de curas e outros tipos de milagres. Os milagres estão relacionados com a revelação, pois explicitam o conteúdo principal da pregação de Jesus que é o amor que Deus tem por todos nós e o bem que ele concede a nós como manifestação desse amor. Sendo assim, o mais importante não é o milagre em si, mas a revelação que ele traz junto de si: Deus ama a todos nós com amor eterno e tudo faz pela nossa felicidade, e isso deve ser anunciado a todos os povos.

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