16 de Janeiro de 2020, Quinta-feira: Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica curado! ” (vv. 40-41).

1ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Sm 4,1-11

Depois da vocação de Samuel em que o protagonista era a Palavra do Senhor (cap. 3; cf. leitura de ontem), ouvimos hoje, no cap. 4, o relato da derrota de Israel na batalha contra os filisteus, em que a protagonista é a Arca da Aliança que continuará com este papel até o final do cap. 6; este baú (tipo andor) que continha as tábuas da Lei (os dez mandamentos; cf. Ex 25,10-20) é um modo da presença do Senhor, algo mais institucional; embora sem imagem pode-se localizar.

Esta história sobre a arca (caps. 4-7) é independente, fala das guerras como os filisteus (não relatadas em caps. anteriores). Só tem com a anterior liames acessórios, as menções de Silo, de Eli e de seus filhos. Samuel já não aparece. A arca é agora o assunto principal.

Com a derrota de Israel e a captura da arca o autor quer mostrar que Javé abandonou Silo e o reinado da Samaria (na época da redação). Os termos “Arca da Aliança”, enfileirar-se”, hebreus” e “tenda” indicam uma tradição antiga como base nesta narrativa.

A Bíblia de Jerusalém (p. 424) comenta: Pelo seu conteúdo, seu quadro geográfico e seu senso de humor (cf. cap. 5-6), a narrativa se assemelha à história de Sansão (Jz 13-16). Primeiro independente, ela serviu de prefácio à história monarquista da instituição da realeza (caps. 9-11) que prossegue com a continuação das guerras filisteias (caps. 13-14).

Para se ter a sequência da história da arca, é preciso passar a 2Sm 6 (traslado a Jerusalém por Davi) e depois a 1Rs 8,1-9 (Salomão instala a arca no templo por ele construído).

Naqueles dias os filisteus reuniram-se para fazer guerra a Israel. Israel saiu ao encontro dos filisteus, acampando perto de Eben-Ezer, enquanto os filisteus, de sua parte, avançaram até Afec e puseram-se em linha de combate diante de Israel. Travada a batalha, Israel foi derrotado pelos filisteus. E morreram naquele combate, em campo aberto, cerca de quatro mil homens (vv. 1b-2).

Os filisteus pertencem aos povos indo-germânicos. Vindo do mar (talvez da ilha de Creta) avançaram ao Egito onde foram expulsos por Ramsés III em 1180 a.C. do mar. Assentaram-se no sul da Palestina (na atual faixa de Gaza). Aliás, o nome “Palestina” vem da tradução grega palaistinoi do hebraico pelištim, como os filisteus são chamados no AT. Eles se misturaram com os cananeus, o povo nativo e sua cultura. Dos heteus, aprenderam a produção de ferro que monopolizaram na região (cf. 13,19-22; Jz 13-16). Assim começou a idade de ferro na Palestina.

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta a ação dos filisteus na leitura de hoje: Agora aspiram estender seu domínio ao nordeste do país. Como são militarmente superiores (armas de ferro), decidem expor-se numa batalha importante, antes que seus vizinhos israelitas se tornem numerosos e forte demais. São as duas forças jovens no território… os filisteus sobem para a planície de Saron e daí para o curso do Rio Verde (Jarcon) a uma localidade bem defendida [ Afec fica ao norte do território dos filisteus]; os israelitas se reúnem a certa distancia. Parece que são os filisteus que tomam a iniciativa, e a primeira derrota é parcial. O autor conta simplesmente, sem explicar as causas: poder-se-ia ligar a desgraça com o delito dos sacerdotes [cf. 2,12-17.22-25], embora o texto não o diga explicitamente.

O povo voltou ao acampamento e os anciãos de Israel disseram: “Por que fez o Senhor que hoje fôssemos vencidos pelos filisteus? Vamos a Silo buscar a arca da aliança do Senhor, para que ela esteja no meio de nós e nos salve das mãos dos nossos inimigos” (v. 3).

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: Os israelitas podem retirar-se e reorganizar-se no seu acampamento, regido por um conselho de anciãos – não se mencionam comandos militares. Os anciãos consideram o Senhor como causador da derrota, talvez por sua ausência (cf. Sl 60,12), por isso mandam vir a arca, que é paládio dos israelitas.

O santuário de Silo se encontrava perto; meia jornada bastava para transportar a arca, um objeto bastante pesado e transportado com varais (Ex 37,1-5). Pela arca da aliança, a divindade guerreira está entre a tropa e atua, salvando ou dando a vitória (cf. Nm 10,35 e o cerco de Jericó em Js 6). A arca é sinal da presença de Javé (v. 7), mas esse mesmo v. indica que ela só acompanhava o exército excepcionalmente, apesar do atestado em Js 3-4; 6,6 e 2Sm 11,11.

Então o povo mandou trazer de Silo a arca da aliança do Senhor Todo-poderoso, que se senta sobre querubins. Os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, acompanhavam a arca (v. 4).

A arca aparece com seus títulos: “da aliança”, porque continuam o documento do tratado (pacto/aliança é contrato); “do Senhor dos Exércitos” (traduzido aqui por “Senhor Todo-poderoso”), que é o titulo cósmico e guerreiro do seu Deus (cf. 1,3.11; Gn 2,1; Is 25,6 etc.) cujos exércitos são os astros e seu povo.

“Senhor Todo-poderoso (Yhwh [Javé] Sebaot), que se senta sobre querubins” é a primeira menção desse título que está relacionado com o santuário de Silo (cf. 1,3.7; o mesmo título em 2Sm 6,2; 2Rs 19,15; Is 37,16; Sl 80,2; 99,1; 1Cr 13,6; ). Os “querubins” são personagens conhecidas há muito tempo na mitologia mesopotâmica, esfinges aladas que franqueavam os tronos divinos ou reais da antiga Síria. Aqui são provavelmente quadrúpedes com rosto humano (esfinges) e cuja função era proteger a arca que recobriam (cf. Ex 25,10-20; 37,1-5). Em Silo, como no Templo de Jerusalém (1Rs 8,6), os querubins e a arca são o trono de Javé Deus, a “sede” da sua presença invisível.

Essa acumulação de títulos poderia ser posterior. Os dois sacerdotes, filhos de Eli, custodiam a arca e se espera que são protegidos por ela.

Quando a arca da aliança do Senhor chegou ao acampamento, todo Israel rompeu num grande clamor, que ressoou por toda a terra (v. 5).

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: A chegada da arca é saudada com o “alarido”, grito ritual, bélico e litúrgico. Prática militar antiga (alalaço dos gregos, ululatus dos romanos, alarido dos mulçumanos), com que os guerreiros se excitam e aterrorizam o inimigo. Pelo seu caráter sacro, deve produzir uma como que descarga de valentia religiosa em seus fieis e um terror pânico irresistível no inimigo. O tremor da terra descreve a ressonância do grito, mas pode insinuar além disso uma reação à teofania.

“Todo Israel rompeu num grande clamor”: é ainda um grito de guerra (como em Js 6,5.20; cf. Am 1,14). Esse brado religioso e guerreiro passará para o ritual da arca e do templo (cf. Nm 10,5.9; 31,6; 2Sm 6,15; Am 2,2; Sf 1,16; Sl 27,6; 33,3; 47,6; 89,16; 150,5 etc.).

Os filisteus, ouvindo isso, diziam: “Que gritaria é essa tão grande no campo dos hebreus? ” E souberam que a arca do Senhor tinha chegado ao acampamento. Os filisteus tiveram medo e disseram: “Deus chegou ao acampamento! ” E lamentavam-se: ”Ai de nós! Porque os hebreus não estavam com essa alegria nem ontem nem anteontem. Ai de nós! Quem nos salvará da mão desses deuses tão poderosos? Foram eles que afligiram o Egito com toda espécie de pragas no deserto. Mas coragem, filisteus, portai-vos como homens, para que não vos torneis escravos dos hebreus como eles o foram de vós! Sede homens e combatei! ” (vv. 6-9).

Para os filisteus, os israelitas são “hebreus” (cf. vv. 6.9; 13,19; 14,11; 29,3), é o nome que os estrangeiros dão aos israelitas (Ex 1,16 etc.) e é, talvez depreciativo. Os israelitas tinham consciência de serem distintos dos hebreus. O termo poderia designar uma população flutuante (o egípcio hapiru significa migrante) e tomar, na boca dos filisteus, um significado satírico, como na boca dos egípcios em Gn 39,17; 41,12; Ex 1,15s; 2,6. Nesta batalha está em jogo o domínio, ser senhores ou vassalos (escravos).

A reação dos filisteus vai progredindo: primeira surpresa, depois “medo”, em seguida ânimo, “coragem”. A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: Os filisteus parecem confundir as pragas do Egito com a derrota do faraó no mar dos juncos (Ex 14). A referência à vitoria sobre os egípcios pode ser simplesmente um recurso do narrador para introduzir a recordação da grande libertação nacional, precisamente na boca dos pagãos, como em Js 2,10 (Raab).

Então os filisteus lançaram-se à luta, Israel foi derrotado e cada um fugiu para a sua tenda. O massacre foi grande: do lado de Israel tombaram trinta mil homens. A arca de Deus foi capturada e morreram os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias (vv. 10-11).

Os gritos e discursos duram narrativamente mais que a batalha, a derrota, a fuga, a captura da arca, as mortes (descritas com rapidez do ritmo dos verbos). A derrota é desconcertante: o Deus que salvou do Egito não pode salvar agora? Aquele que salvou a outros não pode salvar-se agora, presente na arca? (cf. Mc 15,31). As tendas designam o domicílio (cf. Js 22,6-8; Jz 7,8; 1Sm 13,2 etc.)

A morte dos filhos de Eli é mencionada só de passagem, porque já anunciada em 2,34 e 3,13. A notícia da captura da arca é o golpe de graça para Eli e o golpe mortal para sua nora (vv. 12-22).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 410) comenta: Segundo o nosso relato, a arca não é um objeto que se possa manipular inconsideradamente: aos israelitas, ela não traz a vitória esperada; na Filisteia (cap. 5) e em Bet-Shemesh (6,19), sua presença provoca devastações; mais tarde causa a morte de Uzá (2Sm 6,6-7). Talvez o narrador queira sugerir que o lugar próprio da arca é em Jerusalém (cf.  2Sm 15,25), na obscuridade (1Rs 8,12), da câmara sagrada da Casa, no lugar santíssimo (1Rs 8,6), longe dos olhares indiscretos (2Sm 6,19) e dos contatos, mesmo acidentais (2Sm 6,6). Pois o Senhor é o Deus santo (1Sm 6,20; cf. Is 6,3), o totalmente outro, o inapreensível, que exige do seu povo a santidade (Lv 11,44-45 etc.). Relacionado ao castigo dos filhos de Eli, o desastre do Eben-Ezer ilustra desde já o ensinamento de Jr 7 (onde os vv. 12 e 14 se referem a Shilô): se não se quer corresponder às exigências de Deus, de nada serve colocar-se ao abrigo do santuário.

Evangelho: Mc 1,40-45

Ontem ouvimos como Jesus curou muitos doentes em Cafarnaum, mas se afastou da cidade para pregar também em outras aldeias da região da Galileia. O Papa Francisco chama isso de “Igreja em saída”, indo para as “periferias geográficas e essenciais” (cf. EG). No caminho, Jesus encontrou um leproso.

Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica curado! ” (vv. 40-41).

Um leproso veio perto e “de joelhos, pediu” a Jesus (cf. 10,17). O pedido é como uma prece: apela à vontade de Jesus (“se queres”) revelando fé (“tens o poder”).

Alguns manuscritos de Mc têm uma versão diferente da maioria das Bíblias que traduz como aqui no texto litúrgico “Jesus, cheio de compaixão” (v. 41). A versão diferente (traduzida na Bíblia Pastoral) é: “Jesus, cheio de ira”. Muitos peritos da Bíblia dizem que esta versão da “ira” pode ser a mais original, porque é menos comum. É, portanto, mais original apresentar Jesus com “raiva”, em vez da “compaixão” dele que os leitores cristãos já conhecem e esperam. A compaixão de Jesus se refere à miséria humana (6,34; 8,2; 9,22), sua ira ao mal (3,5). Ambos os sentimentos mexem com nossas entranhas e deixam um desconforto querendo mudar a situação para o melhor. A palavra hebraica “compaixão, misericórdia” (rahamim) vem de “útero”; a raiva se faz sentir também nas vísceras. Ira ou comoção expressam também o poder milagroso (7,34; Jo 11,33.38).

Mt e Lc copiaram Mc, mas não escreveram “compaixão”; omitiram aqui qualquer sentimento (Jesus apenas “estende a mão …”, cf. Mt 8,3; Lc 5,13), provavelmente porque liam em Mc “ira” e não a acharam oportuno.

Os rabinos consideravam a lepra como castigo de Deus; o leproso devia ficar à distância para não contagiar outros com esta desgraça. Jesus podia ter raiva, porque o “leproso chegou perto” dele. Mas Jesus ficou com ira não do leproso, sim dos poderes malignos e omissos que levaram o homem à esta situação de abandono e exclusão total (cf. 3,5; Lv 13-14). Conhecemos a mesma mistura de sentimentos quando se aproxima um mendigo ou outra pessoa doente e marginalizada, abandonada por familiares ou entidades governamentais.

Jesus reage à profissão de fé do leproso e não tem medo de tocar nele. Jesus “estendeu a mão” (cf. Moisés em Ex 4,4; 7,19; 8,1; 9,22s; 14,16.26s) e “tocou nele” (cf. os doentes que tocam em Jesus em Mc 3,10; 5,27-31; 6,56; 8,22)

Hoje a lepra é chamada “hanseníase” segundo o médico Hansen que descobriu sua causa e cura em 1837. Ela se transmite via gotículas da respiração ou saliva, mas não pelo toque da pele. Naquela época, porém, era a doença mais temida e incurável. Os sacerdotes deviam examinar e excluir o doente de qualquer convívio social, se a lepra fosse confirmada (Lv 13-14). Os leprosos deviam nem chegar perto (em Lc 17,12 “pararam a distância”), mas alertar os passantes gritando “impuro, impuro” para evitar contaminação (Lv 13,45).

No mesmo instante a lepra desapareceu e ele ficou curado. Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: “Não contes nada disso a ninguém! Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles! ” Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato. Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo (vv. 42-45).

Sem mais palavras ou outros gestos (cf. Moisés implorando Deus em Nm 12,14-16; Eliseu aconselhando um mergulho m Jordão), a cura acontece.

Depois de curar o homem da doença, Jesus restaura também a dignidade dele mandando-o para o sacerdote (Lv 13,49: “deve se mostra ao sacerdote”) que deve declarar a cura e revogar a exclusão do convívio (cf. Lv 13-14). Como era prescrito um sacrifício para purificação, o lugar deste só pode ser no templo em Jerusalém.

“O que Moisés ordenou”; os judeu-cristãos antes da destruição do templo (70 d.C.) se perguntaram, como se comportar diante da Lei; a resposta era cumprir, mas relativizar. Não foi Deus quem ordenou, mas Moisés que só é mencionado em Mc nos debates com mestres da Lei (cf. 7,10; 10,3s; 12,19.26).

“Como prova (lit. testemunho) para eles” (cf. Pr 29,14; Os 2,14; Mq 1,2; 7,18) pode ser entendido de modo positivo (os judeus podem ver que a comunidade cristã segue a lei) ou negativo (no contexto maior de Mc, cf. 6,11; 13,9)

A ordem de calar sobre o milagre pode fazer parte do gênero, mas é típico no Evangelho de Mc (cf. 1,25.34;  3,12; 5,43; 7,35; 8,26.30; 9,9). Jesus quer manter seu segredo de messias, mas não adianta. O homem não consegue ficar calado. Quanto mais Jesus proíbe de falar, mais as pessoas começam a “divulgar muito o fato” (cf. 7,36). O milagre é grande, um leproso era visto como um morto vivo (Nm 12,12), sua cura como ressuscitar um morto que mostra Jesus como “homem divino” (cf. 2Rs 5,7.15), portanto, aquele que era excluído dos homens torna-se arauto de Jesus.

Agora acontece uma permuta de lugares, sinal de que Jesus não apenas cura, mas assume o sofrimento humano (como na profecia em Is 53). O Messias Jesus se coloca no lugar do marginalizado, ele “não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora”, enquanto o leproso marginalizado volta para o convívio social da cidade, onde é “prova” da cura e testemunho vivo contra um sistema que não cura, mas só declara quem pode e quem não pode participar da vida social.

Esta cura marca o primeiro ponto alto da atividade pública de Jesus em Mc. Sua fama se espalha, levada pelo homem libertado da lepra. Ainda mostra Jesus sem conflito com a Lei (que começa em seguida com as controvérsias dos caps. 2-3).

O site da CNBB resume: Uma das promessas que sempre estão presentes nas profecias do Antigo Testamento a respeito dos tempos messiânicos é a cura da lepra. Isso acontece porque a lepra era uma das doenças mais temidas entre as pessoas, principalmente porque uma das suas consequências era a exclusão social e religiosa. Ao curar uma pessoa da lepra, Jesus não apenas o livra da doença em si que a faz sofrer como também a reintegra na vida social e religiosa. Por isso entendemos a alegria do homem que foi curado, que fez com que ele não fosse capaz de guardar o fato só para si, mas passou a divulgá-lo de tal modo que Jesus não podia mais aparecer em público.

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