16 de junho de 2017 – Sexta-feira, 10ª semana

 

Leitura: 2Cor 4,7-15

A vida de Paulo parece frustração e fracasso diante do êxito que seus rivais em Corinto conseguem. Sinal de Evangelho autêntico, porém, não é prestígio fácil. O evangelho provoca sempre conflitos e perseguições, assim a testemunha participa do caminho de Jesus em direção à morte e à ressurreição. Um primeiro aspecto dessa ressurreição já se pode perceber no testemunho vivo da comunidade, que foi gerada pelo testemunho do apóstolo, cuja fraqueza humana se torna instrumento do poder de Deus.

A leitura de hoje apresenta uma nova seção da carta sobre a vida e a missão do apostolo como prolongamento do mistério da paixão e ressurreição de Cristo (cf. Cl 1,24). “Esse tesouro nós o levamos em vasos de barro” (v. 7). A glória de Cristo que ele proclama (cf. 3,38; 4,4.6) é seu “tesouro” (v. 7), é presença da ressurreição. A paixão se baseia na fraqueza humana e se intensifica com o ministério. A paixão não o aniquila, graças à força da ressurreição. Os sofrimentos do apóstolo são participação, prolongamento e manifestação contínua da paixão de Cristo. Por isso as dores do apóstolo redundam em vida para sua comunidade. Essa eficácia presente confirma a esperança da ressurreição futura, gera confiança (“fé”, v. 13) e impulsiona a pregar.

Trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós (v. 7).

Os “vasos de barro” (v. 7) recordam a criação do homem do barro da terra (Gn 2,7; Sl 103,14) e também Jeremias na oficina do oleiro (Jr 18,1-17). A “força de Deus” excede a capacidade da vasilha, ou seja, do ser humano, e transborda demonstrando sua ação, “para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós”. É tema caro a Paulo (cf. vv. 7-12; 2,16; 3,5-6; 10,1.8; 12,5.9-10; 13,3-4; cf. 1Cor 1,26-2,5; 4,13; Fl 4,13) e já presente no AT (Jz 7,2; 1Sm 14,6; 17, 47; 1Mc 3,19 etc.).

Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos entre os maiores apuros, mas sem perder a esperança; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados; por toda parte e sempre levamos em nós mesmos os sofrimentos mortais de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada em nossos corpos. De fato, nós, os vivos, somos continuamente entregues à morte, por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifestada em nossa natureza mortal (vv. 8-11).

As palavras de Paulo nos vv. 8-9 são tiradas em parte do vocabulário das lutas atléticas; quatro oposições mostram o paradoxo de um sofrimento confinado a um limite: “Somos afligidos de todos os lados, não vencidos pela angústia; postos entre os maiores apuros, mas sem perder a esperança; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados”

Esse paradoxo humano é explicado pelo outro paradoxo superior, a morte e a vida de Jesus: “Por toda parte e sempre levamos em nós mesmos os sofrimentos mortais de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta em nossos corpos. De fato, nós, os vivos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal” (vv. 10-11; cf. Sl 44,23). Paulo não cede ao temor de ver-se esmagado (Ez 2,6), nem pede o milagre de ver-se isento (Jr 45): seria negar a parte essencial do mistério pascal de Jesus.

Assim, a morte age em nós, enquanto a vida age em vós (v. 12).

É uma estranha fecundidade da dor mortal que gera vida (como Raquel parturiente em Gn 35,16-20; cf. Gl 4,19). Em Jo 16,21, Jesus compara seu sofrimento com o parto de uma mulher (cf. Rm 8,18-21). Também tem a ver com a Eucaristia, na qual o alimento (Jesus) morre para nos dar vida.

Mas, sustentados pelo mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: “Eu creio e, por isso, falei”, nós também cremos e, por isso, falamos, certos de que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará também com Jesus e nos colocará ao seu lado, juntamente convosco (vv. 13-14).

O batismo é sinal da “fé”, nele recebemos o “Espírito”, que nos faz filhos de Deus (cf. Rm 8,14s; Gl 3,25-27). Paulo cita o Sl 116,10 (desligado ao contexto e segundo a versão grega): “Eu creio, e por isso falei”. Com a fé batismal se recebia o Espírito, e uma de suas manifestações clássicas era falar línguas misteriosas (cf. At 10,44-46; 1Cor 14); aqui o “Espírito” presente pela “fé” impulsiona a falar e proclamar em língua inteligível (cf. 1Cor 14,9.19; cf. At 2).

É a proclamação de uma esperança: “Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, nos ressuscitará também com Jesus e nos colocará ao seu lado dele, juntamente convosco” (v. 14; cf. Mt 19,28; Rm 6,4-5; 8,11; Cl 3,1-3).

E tudo isso é por causa de vós, para que a abundância da graça em um número maior de pessoas faça crescer a ação de graças para a glória de Deus (v. 15).

O trabalho sofrido dos apóstolos resulta em crescimento da Igreja. Como de costume, tudo se concluirá no louvor a Deus, numa “ação de graças para a glória de Deus” numa multiplicação de fiéis pela graça divina. A palavra grega eucaristia significa “ação de graças” e torna-se posteriormente o termo para designar a celebração da missa (o primeiro termo era “partir o pão”; At 2,42; 20,7; cf. Lc 24,30.35).

Evangelho: Mt 5,27-32

No sermão da montanha (caps. 5-7), Mt apresenta Jesus como novo Moisés que transmite a nova lei na montanha (vv. 1-2); não veio para abolir a lei, mas para aperfeiçoar seu cumprimento (vv. 16-19).

Em 5,21-48, Mt apresenta seis exemplos em forma de antítese, para mostrar como é que uma lei deve ser entendida. Nas sinagogas se transmitia o ensino oralmente (“vós ouvistes”) ao povo simples. Na forma repetida da antítese “Vós ouvistes que foi dito aos antigos … Eu, porém, vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44), Jesus se apresenta como autoridade soberana, maior que Moisés. A primeira antítese foi sobre o 5º mandamento, a segunda e terceira são sobre o 6º e 9º mandamento.

Ouvistes o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração (vv. 27-28).

Na segunda antítese do sermão da montanha, Jesus se manifesta sobre o adultério. De novo se apresenta como autoridade soberana, maior que Moisés, e repete: “Vós ouvistes que foi dito aos antigos … Eu, porém, vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44). Depois de radicalizar o quinto mandamento – “não matar” – para nem ter mais raiva nem xingar com nome feio (vv. 21-26; cf. evangelho de ontem), agora faz o mesmo com o sexto. A proibição do decálogo (Ex 20,14; Dt 5,18), sob pena de morte (Lv 20,10), radicaliza-se até a atitude interior, o desejo consentido que induz ao ato (cf. Pr 6,25.27; Jó 31,1; Eclo 9,5): “Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (v. 28).

Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno (vv. 29-30).

Que o desejo já pode ser pecado não é novidade, porque o nono mandamento “não cobiçar a mulher do próximo” alerta para um possível delito contra o sexto mandamento (Dt 5,21; Ex 20,17). Mas Jesus é mais radical ainda, alerta sobre os sentidos, pois pela visão entre o desejo (cf. Davi em 2Sm 11,2 e o episódio de Suzana em Dn 14), ao passo que a mão é o membro do tato e da ação. Mt repete os mesmos vv. 29-30 em 18,8-9 (no contexto do escândalo contra os pequeninos que copiou de Mc 9,43-48). O adultério começa com o olhar de desejo, e o mal deve ser cortado pela raiz.

Agir desta maneira contra a própria natureza parece ser automutilação, mas Jesus exige isso em vista à vida eterna. A expressão é hiperbólica, exagero de poesia oriental, ou devemos levá-la ao pé da letra? Orígenes, um teólogo do século III, se castrou a partir dessas palavras, mas depois descobriu que ainda estava com desejos sexuais na cabeça. E se você tem maus pensamentos, o que deve então cortar? A cabeça? Jesus alerta do perigo da cobiça, ou seja, de sentimentos e pensamentos que podem levar ao pecado. Não se deve considerar como pecado apenas o ato cometido (adultério, assassinato, …), mas estar atento ao seu começo no pensamento na cabeça ou ao sentimento nos membros do corpo. Devemos cortar os maus pensamentos, a cobiça, não a cabeça. Depois de reconhecer seu erro, Orígenes desenvolveu a interpretação alegórica da Bíblia (simbólica, nem sempre literal, ao pé da letra).

Mesmo sem praticar essas palavras ao pé da letra, não se deve desconsiderá-las, pois Jesus fala seriamente do inferno, castigo escatológico. Apesar da bondade divina, o ser humano pode perder seu destino. Quem não reconhece que seu futuro depende das próprias decisões, subestima o valor da sua própria vida. Nosso pensar, agir e omitir tem consequências positivas ou negativas para nossa vida e para nosso futuro.

Foi dito também: “Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio”. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério (vv. 31-32).

Jesus radicaliza até à interioridade a fidelidade matrimonial, apelando ao amor verdadeiro e leal. Mt inclui aqui a terceira antítese, uma norma que se entende na Igreja Católica não só como ética do coração, mas como lei canônica.

A tradução do nosso texto “a não ser por motivo de união irregular” não corresponde ao original grego. A palavra grega porneia não significa “união ilegítima” entre parentes (cf. Lv 18; At 15,20.29), mas um mau comportamento sexual que pode ser muitas coisas (a Bíblia Pastoral traduz: “fornicação”), mas em v. 32 que fala de mulheres casadas designa o ato sexual fora do casamento, então adultério.

Mt copiou esta norma já de Mc no contexto da questão do divórcio (19,9; Mc 10,11; cf. Lc 16,18; 1Cor 7,10-11) e a inclui aqui como exemplo da radicalização da lei por Jesus. Jesus revela a vontade de Deus (19,6: “o que Deus uniu, o homem não separe”) e restabelece o sentido original da lei porque Moisés só permitiu o divórcio “por causa da dureza dos vossos corações” (19,8).

Mas existe uma diferença em relação às antíteses anteriores (vv. 21-30): A raiva ou a cobiça dos olhos não são matérias, que se pode julgar num tribunal, mas a proibição de divórcio é: Quando alguém se casa outra vez sem ser viúvo, o divórcio se torna definitiva. Por isso estas palavras não são um mero apelo ao nosso coração, à nossa consciência, ao nosso amor. Já as primeiras comunidades cristãs tiraram conclusões jurídicas. Jesus não fundou uma igreja já pronta com estatutos do direito canônico, mas aqui temos uma sentença de direito em potencial. Mc e Lc não conhecem exceções; com seu “privilégio”, Paulo não aboliu a proibição de Jesus, mas toma uma decisão num dilema entre mundo (um cônjuge não cristão) e comunidade cristã (cf. 1Cor 7,12-17). Também Mt não questiona a regra de Jesus, só demonstra com sua cláusula – “a não ser por causa de fornicação”- uma exceção dentro desta regra.

Pode haver perdão e reconciliação depois de um adultério (cf. Jo 8,10-11; 1Cor 7,10)? Muitos judeus pensavam que em caso de adultério, o casamento já estava destruído; “fornicação” era uma abominação que tornou a terra impura (cf. Lv 18,25.28; Dt 24,4: Os 4,2-3; Jr 3,1-3,9) e em caso de adultério precisava-se divorciar. Para Mt, a questão fica aberta (cf. 18,15-17.21-22).

Já nos evangelhos, a proibição de Dt 24,4 de não se casar outra vez com sua própria mulher divorciada estendeu-se a todas as mulheres divorciadas. “Quem se casa com uma mulher divorciada, comete adultério” (v. 32; 19,9; Mc 10,11; Lc 16,18). A consequência desastrosa para tais mulheres, Mt atenua com sua clausula: como na sua comunidade o divórcio só se concede em caso de adultério, então só é proibido casar-se com uma adúltera.

A posição católica a respeito do divórcio é conhecida. Não existe divórcio, e um segundo casamento nesta igreja só existe para viúvos. Mas pode haver uma “separação de mesa, cama e residência” mantendo o vínculo do matrimônio. Assim a posição católica está perto de Mt que não permite casar-se com uma adúltera. Depois se iguala a situação da mulher ao do homem. Mt 5,32 (e o AT) se dirigiu apenas aos homens. Se valer a mesma coisa para mulheres, então é proibido casar-se com homens adúlteros também. O divórcio judaico admitiu outros casamentos; Mt 5,32 com igualdade para os gêneros diz que não, o que coincide em muito com a posição católica, não em termos (divórcio permitido só em caso de adultério, mas não um segundo casamento com adúlteros), mas de fato (só separação de mesa, cama e residência).

Na Igreja Ortodoxa, o divórcio possibilita um segundo casamento, mas só com penitência. O que destrói o casamento e serve de motivo para o divórcio, é o adultério (cf. Mt 5,32), mas pode haver outras razões. A possibilidade do segundo casamento não se vê como direito divino, mas como concessão por causa da fraqueza humana (cf. Mt 19,8).

Para as Igrejas protestantes, o casamento não é um sacramento, mas “coisa do mundo” (Lutero). Entendem Mt 5,32 como apelo ético aos corações, que se há de diferenciar do código civil. Lutero disse que o amor não precisava de leis. Isso possibilita um trabalho pastoral guiado pelo amor e não pela lei.

Mas ambas as igrejas ocidentais sofrem com sua posição. Os católicos lamentam a dureza da sua doutrina e do seu direito canônico que parecem contrariar o amor, o perdão e a misericórdia de Deus em casos concretos. Mas a ausência de um direito que regula o divórcio nas igrejas protestantes deixa o pastor sozinho nas suas decisões, geralmente ele escolhe o caminho de menor resistência, aceitando e abençoando tudo. O amor, porém, precisa do apoio de leis para ajudá-lo a não aceitar e ocultar tudo. A posição católica está mais perto de Mt 5,32, mas há uma certa tensão entre a norma de Mt 5,32 e o centro da pregação de Jesus: o amor incondicional de Deus aos seres humanos. Não é fácil ser justo (lei) e misericordioso (amor) ao mesmo tempo. É um dilema entre direito canônico e trabalho pastoral (ex. abençoar ou excluir casais de segunda união da comunhão eucarística).

Um pároco disse uma vez: “Melhor quebrar uma norma da igreja do que o coração de um ser humano”. As normas, porém, devem orientar para o melhor do ser humano (cf. o final do Código de Direito Canônico: a salvação das almas deve ser a lei suprema na Igreja).

O site da CNBB comenta: O valor da pessoa humana não pode ser diminuído em hipótese alguma. O Evangelho de hoje nos mostra o valor da pessoa como motivação para a vivência plena da Lei. Não é porque eu não fiz nada que eu não desrespeitei. Jesus não quer apenas ato, ele exige de nós uma postura evangélica de quem é capaz de ver o outro e a outra como seres criados à imagem e semelhança de Deus, mas também como renascidos em Cristo para uma vida nova, membros do Corpo Místico de Cristo, unidos a Cristo como o ramo está unido à videira, Templos vivos do Espírito Santo e como consagrados pela graça do Batismo, ou seja, pertencentes ao Pai, amados e amadas por ele e que devem ser respeitados e valorizados.

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