16 de maio de 2018, terça-feira: Agora entrego-vos a Deus e à mensagem de sua graça, que tem poder para edificar e dar a herança a todos os que foram santificados

Leitura: At 20,28-38

Continuamos ouvindo o discurso de despedida de Paulo aos chefes da principal igreja fundada por ele, Éfeso. Os pontos de contato com suas cartas são numerosos; o espírito é o das cartas pastorais (o que indica o tempo da autoria dos Atos na segunda ou terceira geração). Depois de ter lembrado seu ministério na Ásia (vv. 18-21) e feito prever sua partida definitiva, talvez a da morte (vv. 22-27), Paulo faz suas últimas recomendações aos anciãos de Éfeso (e por intermédio deles a todos os pastores das igrejas): vigilância (vv. 28-32), desinteresse e caridade (vv. 33-35). Estas palavras se apoiam no próprio exemplo de Paulo, de quem este discurso nos dá um retrato admirável. Mas também já reflete a época do autor dos Atos, Lucas; por isso, na exegese, este discurso chama-se a “janela de Lucas” em At, porque através dela podemos ver os problemas e as preocupações do tempo de Lucas.

“Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho, sobre o qual o Espírito Santo vos colocou como guardas, para pastorear a Igreja de Deus, que ele adquiriu com o sangue do seu próprio Filho (v. 28).

Depois de olhar para o passado, Paulo olha para frente, para o futuro da Igreja. Nas comunidades por ele fundadas, Paulo designou dirigentes que são denominados ora de “anciãos” (em grego presbíteros, v. 17; 14,23), ora “guardas” (em grego epíscopos, v. 28; Fl 1,1; daí a palavra “bispo”), isto é, supervisores, termos aqui ainda não empregados com a carga institucional de textos mais tardios (Tt 1,5.7; 1Tm 3,1-7). No tempo pós-apostólico, se dividem em bispos e padres (presbíteros) e diáconos.

Paulo se dirige aos dirigentes em imagem pastoral (cf. a discrição do chefe ideal na carta pastoral 1Tm 3,1-7): eles devem “cuidar de si e de todo rebanho … para pastorear a Igreja de Deus” (var.: a Igreja do Senhor).

O v. 28 é um resumo de eclesiologia: a Igreja é “de Deus” (1Cor 1,2; 2Cor 1,1; 11,16; 15,9). 1Pd 2,9s fala do Povo que Deus adquiriu para si (segundo Is 43,21, cf. At 15,14); e que é constituído em “assembleia (= Igreja) de Deus” (5,11), expressão típica de Paulo (1Cor 1,2; 10,32; 11,22 etc.). Lit.: “a qual ele adquiriu para si seu próprio sangue”. Não podendo isto ser dito de Deus, é preciso admitir que “próprio” é empregado substantivamente: “o sangue de seu próprio” (“Filho”, assim completa-se na tradução da nossa liturgia), ou então, que o pensamento passa da ação do Pai à do Filho (cf. Rm 8,13-39). O sangue tem de referir-se a Cristo (“do seu próprio Filho”, embora gramaticalmente pareça o contrário (Rm 3,25; 5,9; Cl 1,20; 1Pd 1,19). Quanto à ideia, cf. Ef 5,25-27; Hb 9,12-14; 13,12.

Os chefes são pastores nomeados pelo Espírito Santo (1Cor 12), isto não quer dizer que atuem independentemente, ao contrário, precisam do reconhecimento e do envio pela comunidade cristã ou hierarquia que impõem as mãos no sacramento da ordenação (cf. 6,6; 13,2s; 1Tm 4,14; 5,22; 2Tm 1,6s; cf. a junção de Espírito e comunidade em 5,21; 15,28).

Eu sei, depois que eu for embora, aparecerão entre vós lobos ferozes, que não pouparão o rebanho. Além disso, do vosso próprio meio aparecerão homens com doutrinas perversas que arrastarão discípulos atrás de si. Por isso, estai sempre atentos: lembrai-vos que durante três anos, dia e noite, com lágrimas, não parei de exortar a cada um em particular (vv. 29-31).

Em forma de profecia se refletem os perigos internos de desvio, que textos posteriores atestam (Jo 10,12; 1Tm 4; 2Tm 3,1; 1Jo 2,18-23; cf. Dt 13,2-6). Por outro lado, no momento do relato, Paulo já havia experimentado problemas semelhantes na Galácia e em Corinto (cf. Gl 4,17; 2Cor 11,8-9; 1Ts 2,3-4). O autor põe uma previsão semelhante na boca de Moisés antes de morrer (Dt 31,16-21). O verbo grego por “exortar” (admoestar) é exclusivo de Paulo (Rm 15,14; 1Cor 4,14; 1Ts 5,12.14).

Agora entrego-vos a Deus e à mensagem de sua graça, que tem poder para edificar e dar a herança a todos os que foram santificados (v. 32).

Versículo importante para uma teologia da palavra (cf. sobre a escritura em 2Tm 3,15s). Aparece personificada, como alguém a cuja custódia e proteção são confiados objetos e pessoas. A palavra é um dinamismo (“poder”) que constrói e mantém o edifício da Igreja, é um depositário (1Tm 6,20; 2Tm 1,12-14) que dá a herança (celeste) aos consagrados a Deus (cf. Sb 5,5). “Que tem o poder” poderia referir-se também a Deus (cf. Rm 16,25)

Não cobicei prata, ouro ou vestes de ninguém. Vós bem sabeis que estas minhas mãos providenciaram o que era necessário para mim e para os que estavam comigo (vv. 33-34).

Paulo trabalhou com suas mãos fabricando tendas (18,3). Em suas cartas, Paulo se mostra muito cuidadoso em não agir por cobiça ou interesse e em evitar até mesmo a aparência disso (cf. 1Cor 9; 2Cor 11,7-9 etc.). Lucas o apoia com sua atitude crítica frente à riqueza (cf. Lc 1,53; 6,24-26; 12,13-21; 16,19-31).

Em tudo vos mostrei que, trabalhando deste modo, se deve ajudar os fracos, recordando as palavras do Senhor Jesus, que disse: ‘Há mais alegria em dar do que em receber’” (v. 35).

Paulo termina seu discurso com uma palavra do Senhor Jesus (cf. 1Cor 7,10; 11,23-26). Este provérbio citado, porém, não se encontra literalmente em nenhum evangelho, mas retoma o espírito das bem-aventuranças (Lc 6,20-26p). “Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9,7). Zaqueu experimentou a alegria de partilhar (Lc 19, 1-10), mas o jovem rico, a tristeza de não se desapegar de seus bens (18,18-23).

Tendo dito isto, Paulo ajoelhou-se e rezou com todos eles. Todos, depois, prorromperam em grande pranto e, lançando-se ao pescoço de Paulo, o beijavam, aflitos, sobretudo por lhes haver ele dito que não tornariam a ver-lhe o rosto. E o acompanharam até o navio (vv. 36-38).

Os primeiros cristãos rezavam em pé ou ajoelhados. Depois, a emoção toma conta aqui. O serviço vivido desinteressadamente conquista o coração das pessoas; o amor faz brotar o amor no coração das pessoas. Depois de ter dado tantas provas de amor, a comunidade está retribuindo abundantemente. Estavam aflitos “por lhes haver ele dito que não tornariam a ver-lhe o rosto” (cf. v. 25).

“E o acompanharam até o navio”. Paulo continua sua viagem a Jerusalém onde será preso, nunca mais voltará. Assim a cena tem certa simbologia: na mitologia grega, após a morte, a alma é levada por um barqueiro ao hades (morada dos mortos).

 

Evangelho: Jo 17,11b-19

Continuamos ouvindo a chamada “oração sacerdotal” de Jesus antes de sair da última ceia. Jesus presta conta ao Pai e intercede por seus discípulos (e pelos futuros cristãos, cf. v. 20).

Pai santo, guarda-os em teu nome, o nome que me deste, para que eles sejam um assim como nós somos um. Quando eu estava com eles, guardava-os em teu nome, o nome que me deste. Eu guardei-os e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição, para se cumprir a Escritura (vv. 11b-12).

Jesus vai ao Pai, mas os discípulos têm que permanecer no mundo ainda (v. 11), por isso pede: “Guarda-os em teu nome, o nome que me deste”. O nome (cf. v. 6, no evangelho de ontem) representa a realidade de Deus a qual Jesus reflete (“ele é a imagem de Deus invisível”, Cl 1,15); então Jesus pede que os discípulos permaneçam na esfera divina (cf. 15,4-10), já que não são mais do mundo, mas filhos de Deus (v. 14; 1,12s). Jesus pede ao Pai, porque é maior do que o Filho (14,28); depois da sua partida, Jesus não pode mais protegê-los, mas age junto ao Pai (14,23).

Enquanto estava com eles, Jesus os protegeu (“guardei-os”) como era a vontade do Pai (6,37.39; cf. 18,9), “e nenhum deles se perdeu, a não ser o filho da perdição”, ou seja, aquele cujo procedimento tende para a perdição: Judas, que saiu (13,2.30). Em hebraico, quando se quer exprimir a relação íntima entre alguém e um objeto, usa-se esta expressão: “filho de tal coisa”. Esta perda de Judas não foi pela fraqueza de Jesus, mas aconteceu “para se cumprir a Escritura” (cf. 19,28).

Os fiéis devem ficar unidos como o Pai e o Filho estão unidos. “Para que eles sejam um assim como nós somos um” (cf. vv. 21-23; 10,30). A redação eclesial preocupa-se com as divisões na comunidade (cf. 1Jo 2,19 etc.). A unidade divina na diferença das pessoas na Trindade é modelo da comunidade eclesial. Esta prece de Jesus expressa seu desejo de unidade nas comunidades e Igrejas; portanto é um evangelho propício para esta Semana da Oração pela Unidade dos Cristãos, porque o ecumenismo se baseia nesta prece de Jesus ao Pai.

Agora, eu vou para junto de ti, e digo estas coisas, estando ainda no mundo, para que eles tenham em si a minha alegria plenamente realizada. Eu lhes dei a tua palavra, mas o mundo os rejeitou, porque não são do mundo, como eu não sou do mundo. Não te peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo (vv. 13-16).

Quem guarda a Palavra (os mandamentos, o amor mútuo), tem a alegria de Jesus (15,10s). Jesus reza com voz alta, para que os discípulos ouçam (cf. 11,41s) e tenham confiança de que não ficarão como órfãos (14,18), mas terão Jesus intercedendo por eles junto ao Pai. O glorificado repetirá esta oração por eles.

Os discípulos estão com a Palavra de Deus, se alegram e se amam, mas o “mundo” os odeia (15,17-16,4a.20) como já rejeitou Jesus (15,20s). Muitas vezes em Jo, “mundo” significa o sistema e as pessoas que rejeitam (ainda) a mensagem de Jesus. Como Jesus que estava no mundo, os discípulos também devem estar “no” mundo sem serem “do” mundo (cf. 1,12). Jesus não pede de tirá-los do mundo, porque eles ainda têm uma missão no mundo (cf. v. 18; 20,21), mas pede: “Que os guardes do Maligno” ou: “Que os preserves do mal” (cf. o pedido final do Pai-nosso em Mt 6,13). O “mal” designa o diabo (cf. 13,2.27; 14,30), como as coisas más que faz (cf. 16,33).

Consagra-os na verdade; a tua palavra é verdade. Como tu me enviaste ao mundo, assim também eu os enviei ao mundo. Eu me consagro por eles, a fim de que eles também sejam consagrados na verdade” (vv. 17-19).

Como os discípulos podem ser guardados do mal? Ficando com a verdade (cf. 4,23; 8,32.40; o maligno é o “pai da mentira”, 8,44). Consagrar na “verdade”, ou seja, nele que é a palavra encarnada de Deus (cf. 1,14.17; 8,31s; 14,6; 18,37s). O Espírito “Santo” é o Espírito “da Verdade” (14,17; 15,26; 16,13; cf. 4,23; 8,31) que capacitará os “apóstolos” (a palavra já significa “enviados”. Assim eles podem entrar na missão como antes Jesus (4,35; 20,21)

Jesus se santifica apresentando-se diante do Pai para “ser um” com ele (cf. vv. 11.21s; 10,30), e, diante dos homens, como a revelação perfeita. Ele pede que seus discípulos vivam na unidade e na verdade de Deus, santificados pela fé no Pai que ele lhes revelou.

O sentido literal do verbo “consagrar, santificar” é separar para Deus, votar (no sentido primário desse termo). O próprio Jesus se consagra para que os discípulos sejam consagrados e possam assumir a missão. Ele se santifica como sacrifício, como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1,29) e dá seu corpo (carne) para a vida do mundo (6,51).

A Bíblia do Peregrino (p. 2607) comenta: A consagração é em primeiro lugar a dedicação a Deus para participar de sua santidade, para ser santos como ele (Lv 19,2; 20,26). Em segundo lugar é capacitar para uma missão entre homens, para funções específicas (rei, sacerdote, profeta, Ex 28,36-39). Deus “consagra” o povo (Ez 37,28) e vai consagrar os discípulos. Jesus é o Santo = consagrado por Deus (6,69; 10,36), que mostra sua santidade (sentido reflexivo como Ez 38,23) para consagrar seus discípulos. Em lugar de rito de consagração, Deus emprega a verdade, ou seja, sua palavra que há de ser recebida com fé e cumprida.

O site da CNBB comenta: Jesus, antes de partir, ora ao Pai por todos nós. Ele sabe que todos nós precisamos da graça divina para permanecer fiéis a Deus. Os valores que nós acreditamos não são os valores do mundo, e o mundo nos odeia porque não acreditamos nos seus valores. Os nossos valores atrapalham os interesses de quem é deste mundo, pois este mundo é marcado pelo egoísmo, pelo ódio, pela mentira e pela morte, enquanto que nós pregamos o amor, a solidariedade, a verdade e a vida em abundância. Nós não devemos fugir dos desafios do mundo, mas sim transformar o mundo através dos valores que acreditamos.

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