16 de Maio de 2021, Domingo da Ascensão do Senhor: Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus (v. 19).

7º Domingo do Tempo Pascal –  Ascensão do Senhor (Ano B)

 

1ª Leitura: At 1,1-11

A primeira leitura de hoje apresenta a ascensão do Senhor “quarenta dias” (At 1,3) após a Páscoa. Dessa apresentação procede nossa festa litúrgica da “Ascensão do Senhor”, mas a data certa seria a quinta-feira passada (40 dias após páscoa). No Brasil, porém, esta festa foi transferida para o domingo seguinte.

No meu primeiro livro, ó Teófilo, já tratei de tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu, depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido (vv. 1-2).

Os Atos se dirigem a mesma pessoa a quem o terceiro evangelho se dirigiu na introdução (Lc 1,1-4): “Teófilo”, talvez o patrocinador da obra dupla. Mas como o nome grego Teófilo significa literalmente “amigo de Deus”, pode ser um nome simbólico para qualquer leitor que procura a amizade com Deus.

O evangelista que chamamos de Lucas escreveu duas obras, o evangelho e em seguida os Atos dos apóstolos. O “primeiro livro” é o evangelho de Lc. Como todos os quatro evangelhos na Bíblia é uma obra anônima que posteriormente se atribuiu a uma pessoa do âmbito apostólico. A tradição cristã viu como autor dos Atos (e consequentemente do terceiro evangelho) um companheiro de Paulo, já que a segunda parte do Atos trata das viagens de Paulo, com trechos na primeira pessoa plural (“nós”). O autor escreveu no estilo e na língua grego mais sofisticados em todo Novo Testamento. Nas cartas de Paulo encontra-se entre os seus companheiros uma pessoa de boa formação: o médico Lucas (Cl 4,14, cf. Fm 24; 2Tm 4,10). Alguns, porém, pensam em Timóteo como autor dos At, porque os trechos escritos na primeira pessoa (nós) nos At começam depois da vocação de Timóteo em At 16.

O autor resume o conteúdo da sua primeira obra: o evangelho tratou de “tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu”; desde o começo do ministério de Jesus, e mais precisamente desde o seu batismo (cf. 10,37; Lc 3,23). O evangelho iniciou com a infância de Jesus e terminou com sua ascensão em Lc 24,50-53. Os Atos a recontam no início. A ascensão de Jesus será designada pelos mesmos termos “arrebatado, (e)levado” em Lc 24,51 e At 1,11.22.

Não se mencionam aqui a paixão e a ressurreição que estão incluídas na ascensão. Esta se inicia já em Lc 9,51 com o início da viagem a Jerusalém. Esta viagem era parte central do evangelho e servia principalmente para o ensino dos discípulos que se destaca também aqui: “depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido”.

Outras traduções possíveis: “que ele tinha escolhido pelo Espírito Santo” ou então: “ele foi arrebatado pelo Espírito Santo”. Já se menciona aqui o Espírito Santo, aqui relacionado ao ensino de Jesus (cf. Lc 4,14-30 etc.). Os Atos se destacarão pelo protagonismo do Espírito Santo na missão dos discípulos, por isso esta obra foi chamada o “Evangelho do Espírito Santo”.

Em Lc, os “apóstolos” são identificados com os Doze (Lc 6,13, cf. At 1,15-26) como em At 6,2.6. Esse modo de ver, próprio de Lucas, não é, sem dúvida o mais antigo (cf. a exceção em 14,4.14 e as cartas de Paulo que insiste em ser apóstolo também, cf. Rm 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; 11,5 etc.).

Foi a eles que Jesus se mostrou vivo depois da sua paixão, com numerosas provas. Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus. Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: “Não vos afasteis de Jerusalém, mas esperai a realização da promessa do Pai, da qual vós me ouvistes falar: ’João batizou com água; vós, porém, sereis batizados com o Espírito Santo, dentro de poucos dias’” (vv. 3-5).

Na cultura grega imaginava-se apenas a sobrevivência da alma, não a do corpo (cf. At 17,18s.32). Para Lc é importante, descrever para seus leitores gregos a ressurreição como fato perceptível, não como fantasma ou delírio (Lc 24,11), por isso as “numerosas provas” de ver, tocar e comer com o Ressuscitado (Lc 24,39-43, cf. Jo 20,20.24-29, 1Jo 1,1-3).

No final do seu evangelho, Lc parece concentrar em um só dia (“o primeiro da semana”, cf. 24,1.13.33.50) a ressurreição e a ascensão de Jesus (Lc 24,51), que são separadas em At 1,3 por ”quarenta dias”. Esses quarenta dias podem ser compreendidos como uma duração-tipo de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado ou como o tempo-limite para lançar distantemente as bases da autoridade das primeiríssimas testemunhas.

Os “quarenta dias” marcam a presença visível do Ressuscitado no meio dos discípulos. Este número pode significar o tempo de preparação, como eram os quarenta anos do povo no deserto do Sinai antes de entrar na terra da “promessa”. Após ser batizado por João Batista, cujas palavras são citadas e adaptadas aqui (cf. Lc 3,16p; At 11,16), Jesus ficou quarenta dias no deserto (Lc 4,1p) antes de iniciar sua pregação sobre o “Reino de Deus” (Lc 4,43p), será o tema também da pregação apostólica (At 8,12; 14,22; 19,8; 20,25; 28,23.31).

No dia de Pentecostes, os judeus celebram a “entrega da Lei” no monte Sinai/Horeb. Moisés ficou com Deus quarenta dias no monte Sinai/Horeb (Ex 24,18; 34,28) e Elias caminhava quarenta dias para lá (1Rs 19,8). A presença de Moisés diante do Senhor antes de entregar a Lei ao povo pode ter inspirado este tempo de convivência com o Ressuscitado antes da entrega do Espírito.

Os apóstolos devem se preparar para a vinda do Espírito “dentro de poucos dias”, ou seja no “dia de Pentecostes” (2,1), palavra grega que significa 50 dias após a Páscoa (Tb 2,1; cf. cf. Ex 19,1s; Lv 23,15-21). Depois da ascensão de Jesus, os discípulos vão ficar em Jerusalém junto com as mulheres, e rezar por nove dias (a primeira “novena”, cf. 1,12-14). Neste período escolherão um duodécimo apóstolo em substituição de Judas. Os doze simbolizam as doze tribos de Israel.

Então os que estavam reunidos perguntaram a Jesus: “Senhor, é agora que vais restaurar o Reino em Israel?” Jesus respondeu: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade. Mas recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (vv. 6-8).

A Bíblia do Peregrino (p. 2625) comenta: O breve diálogo revela o horizonte mental dos discípulos, mesmo depois da ressurreição, mas antes de receber o Espírito: uma restauração política de Israel (cf. Mt 17,11; Ab 20-21; Sf 3,19-20). Jesus se nega a predizer datas (Mt 24,36-37; Mc 13,32).

Lc quer esclarecer um mal-entendido: Jesus não veio para “agora… restaurar o reino em Israel” (cf. a restauração nacional em Ml 3,23; Eclo 36,1-17; Mc 9,12, cf. Lc 19,11; 21,8; 24,21; At 15,16s). Seria realizar o sonho de muitos em Israel, a libertação de Jerusalém (cf. 2,25.38), mas este sonho foi perseguido por meio violentos, por ex. atentados terroristas contra os romanos pelos zelotas (partido radical ao qual um dos doze apóstolos pertencia: Simão Cananeu, o zelota, cf. Lc 6,15; At 1,13)

Jesus não era um messias como Davi (cf. 1Sm 18,7), não veio para libertar Israel do poder estrangeiro, mas o povo de Deus do poder do pecado e da morte. Não queria derramar o sangue dos outros, mas o próprio (cf. Hb 3-9). Veio para proclamar o evangelho da misericórdia, não da violência; não queria acabar com os inimigos, mas com a inimizade (Ef 2,14; cf. Lc 6,27s.36; 23,34; At 7,60). Agora precisa anunciar e praticar este evangelho para além de Israel.

Só o Pai sabe a hora (cf. Mc 13,32p) da parusia (volta triunfal do Cristo do céu). Mas os discípulos vão receber o “poder do alto” (Lc 24,49), o dom e a realização da promessa do Pai (cf. v. 4; Lc 24,49), o Espírito Santo que deve capacitá-los a evangelizar (como o mesmo Espírito desceu a Jesus na hora do batismo para dar início a sua pregação, cf. Lc 3,32-22p, 4,1-2.14.18).

A Bíblia do Peregrino (p. 2625s) comenta: O Espírito tradicionalmente comunica força física (Jz 14,6.19) ou espiritual (Is 11,2-3). Os apóstolos a receberão para uma missão particular: ser “testemunhas” de Jesus. A palavra é densa de conteúdo, por sua frequência em todo o NT, em suas variações verbais e nominais. As etapas estão marcadas: Jerusalém, centro; daí, em movimento centrífugo, a Judéia, a semipagã Samaria, os pagãos “até os confins do mundo” (Is 48,20; 49,6; 62,11). Essa consciência de universalidade se deve ao narrador inspirado. Os discípulos levarão tempo para compreendê-la.

Jerusalém permanece no início da evangelização como era no início e no fim do evangelho (Lc 1,9; 2,22.38; 9,51; 24,33.47). Mas os apóstolos serão as testemunhas de Jesus “em Jerusalém, em toda a Judéia e na Samaria, e até os confins da terra”. Esta frase indica o plano de narração dos Atos: os apóstolos Pedro e João e o diácono Estêvão testemunharão em Jerusalém (caps. 2-7). Pela perseguição, o evangelho começa a se espalhar ao redor (8,1: “Judeia e Samaria”). Finalmente o missionário Paulo leva o evangelho para Europa (cap. 16) e termina em Roma (cap. 28), que será o novo centro da cristandade de onde o evangelho se expandirá “até os confins da terra”.

O testemunho prestado a Cristo é antes de tudo testemunho da sua ressurreição (1,22). Nos Atos, as “testemunhas” são antes de tudo os Doze (1,22; 10,41), mas outros também são igualmente chamados testemunhas, em sentido um pouco diferente (13,31; 22,20).

Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles. Uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não mais podiam vê-lo. Os apóstolos continuavam olhando para o céu, enquanto Jesus subia. Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu” (vv. 9-11).

Aqui o autor descreve a ascensão mais detalhada como no final do evangelho (cf. Lc 24,50-53). Para os outros evangelistas, a ressurreição é a “glorificação” ou exaltação de Jesus, para “sentar-se à direita de Deus” (cf. Sl 110,1). Esta ascensão (cf. Is 52,13) é um acontecimento transcendente, não acessível aos sentidos. Lucas dramatiza o fato, inspirando-se em antecedentes bíblicos, em lendas apócrifas e talvez em modelos helenísticos.

No AT, a “nuvem” é um elemento das manifestações de Deus (cf. Ex 13,21s; 14,20.24; 16,10; 19,16; 24,15-18 etc.; cf. a expressão em Lc 1,35 “cobrir com sua sombra”, e o final da transfiguração em Lc 9,34p). O “Filho do homem” em Dn 7,13s está numa nuvem do céu para receber do Ancião (Deus) o poder do reino (cf. Lc 21,27; Mc 14,62p). No mundo greco-romano contavam-se ascensões de heróis ou reis: Hercules, Alexandre Magno, César Augusto, também do taumaturgo Apolônio de Tiana (que realizava muitas curas parecidas às de Jesus).

Diferente de uma viagem ao céu que atinge apenas a alma (ex. Maomé, num sonho subiu de Jerusalém para ver os sete céus e acordou depois), numa ascensão, a pessoa é “arrebatada/levada” com seu corpo todo, que some, carregado por um ventaval, por uma nuvem ou por anjos. Do AT se conhece a referência concisa a Henoc (Gn 5,24; Eclo 44,16) e o relato misterioso, quase litúrgico do rapto do profeta Elias na presença do seu discípulo Eliseu num carro de fogo (2Rs 2,1-13; Eclo 48,9.12; 1Mc 2,58).

Para Lc e seus leitores greco-romanos era importante quem foi elevado ao único Deus: é o messias Jesus; e os At explicam o porquê. A morte de Jesus foi um escândalo difícil de superar e recuperar fé e esperança (cf. Lc 24,19-21; cf. 1Cor 1,22-24). É de dentro da nuvem, ou seja, de dentro de Deus, o ressuscitado queria derramar o Espírito a seu povo em Pentecostes.

A Bíblia do Peregrino (p. 2625) comenta: Lucas adora o esquema vertical, que coloca a divindade na altura celeste (Sl 123,1). Usa o verbo “elevar-se” (“epairo”, raro com este fim) e o corrente “levantar, elevar” (que corresponde ao hebraico “lqh”). Convoca dois personagens masculinos celestes e prefere a nuvem ao carro de fogo (“tomando as nuvens como teu carro”, cf. Sl 104,3). A cena visual se anima com diálogos e instruções… Anjos em figura humana são companhia costumeira em momentos solenes: o nascimento (Lc 2,9), a ressurreição (Mc 16,5).

Os apóstolos não devem “parados, olhando para o céu”, mas se colocar em movimento, assumir a missão para os diversos cantos da terra. Como designação de origem, “Galileia” não se aplica a todos; sim, como designação dos seguidores de Jesus.

O anúncio da volta é conciso, sem indicação alguma temporal. “Virá do mesmo modo”; pura afirmação do fato, garantida por duas testemunhas celestes (cf. Dt 19,15). Jesus, que doravante estará ausente, não cessará no entanto de estar presente à vida da Igreja: sua vinda (parusia) será, portanto, menos uma “volta” do que a manifestação final dessa presença permanente (cf. Mt 28,20).

2ª Leitura: Ef 1,17-23 (facultativas: Ef 4,1-13 ou Ef 4,1-7.11-13)

A segunda leitura apresenta um trecho da carta aos efésios que muitos exegetas consideram uma carta deuteropaulina, ou seja, escrita por um discípulo de Paulo em nome dele, porque difere do estilo do apóstolo que se conhece nas cartas autênticas (Rm, 1-2Cor, Gl, Fl, 1Ts, Fm). Era comum na época, discípulos escrevendo em nome do mestre para dar continuidade no espírito.

O endereço “aos efésios” falta nos manuscritos mais antigos, e talvez esta carta tenha sida uma carta circular para várias comunidades. A carta aos colossenses (Cl) é parecida com Ef e talvez ambas tenham como autor (ou pelo menos referência) um certo “Epafras, servo de Cristo Jesus que sempre luta por vós na oração…” (Cl 4,21, cf. Cl 1,7). Nos vv. anteriores à nossa leitura de hoje diz, “não paro de agradecer por vós quando penso em vós nas minhas orações…”. Em seguida pronuncia três pedidos.

O Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (v. 17).

Primeiro pedido: o carisma da sabedoria revelada (cf. Is 11,2s) é um dom do Espírito, não aquisição humana; revelação do mistério ou sensibilidade para “conhecê-lo”: a Deus Pai ou a Jesus Cristo? Pelos vv. que se seguem, pelo teor da carta e textos semelhantes (2Cor 5,16; Fl 3,10), podemos pensar no segundo: conhecer e reconhecer Jesus como Messias, como Filho de Deus Pai (Lc 10,21-22p).

Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente (vv. 18-19).

Segundo pedido: iluminação (Cl 1,12). A “herança” só podemos ter em “esperança”; sendo futura, não vemos (cf. Hb 11,1). Mas uma luz celeste nos permite contemplá-la à distância (cf. Hb 11,9-13): Que ele abra o vosso coração à sua luz” (lit.: que ilumine os olhos do vosso coração), é expressão bíblica (cf. Sl 13,4; 19,9, cf. “na tua luz vemos a luz” em Sl 36,10; sobre o sentido da palavra “esperança”, cf. Cl 1,5).

O termo “santos” designa os membros do povo de Deus, os batizados (cf. 1,1). Mas a perspectiva celeste da carta e suas afinidades com a literatura do judaísmo tardio (ex. Qumran), podem evocar os anjos, a comunidade do céu (cf. Cl 1,12). Pensou-se ainda nos judeu-cristãos, representando o resto santo de Israel, ao qual os pagão-cristãos são associados (cf. Ef 1,12; Rm 15,25). O termo “santos” se generaliza para designar os cristãos em Ef e Cl suplantando o termo “irmãos”.

Ele manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus, bem acima de toda a autoridade, poder, potência, soberania ou qualquer título que se possa mencionar não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro (vv. 20-21).

O terceiro pedido (vv. 19-21) tem a ver com a festa de hoje e faz a transição para a cristologia. Compreender o “poder” extraordinário de Deus, com o qual realiza em Cristo seu projeto admirável (cf. Is 52,13-53,12): a ressurreição como vitória definitiva sobre a morte (1Cor 15,14); a exaltação “à sua direita” (Sl 110,1) como instauração do Reino de Deus (sentar no trono). “Acima de”: as quatro categorias “autoridade, poder, potência, soberania” (cf. Cl 1,16) representam a totalidade cósmica, que pode incluir anjos e exércitos celestes. Seu “título” supremo é “Senhor” (em grego Kyrios, como equivalente do hebraico Yhwh, cf. Fl 2,9-11).

Sim, ele pôs tudo sob os seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a Cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal (vv. 22-23).

“Ele pôs tudo sob os seus pés” alude a Sl 8,6s que o atribui simplesmente ao “filho do homem”, ao ser humano. Esse texto e Hb 2,6-8 estreitam a aplicação ao Homem por excelência, Jesus Cristo. Nas cartas paulinas, a Igreja é o corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 12,12), nas deuteropaulinas, Cristo é a “Cabeça da Igreja” (Cl 1,18; 2,9.19; Ef 2,22; 4,12-15).

A Bíblia do Peregrina comenta: A frase é densa e ambígua, por isso as interpretações diferem: a) A igreja sujeito plenifica, completa a Cristo, como o corpo completa a cabeça; Cristo plenifica tudo. b) A igreja está cheia de Cristo, o qual… c) A Igreja está cheia daquele que Deus plenificou com sua plenitude (Jo 1,14.16; Cl 1,18-19).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2267) comenta:

Lit. “a plenitude (pleroma) daquele que é repleto totalmente em todas as coisas”. Como em Ef 3,19 e 4,13, a Igreja é chamada de plenitude de Cristo (cf. Cl 1,19…). Ela é repleta das riquezas da vida divina por Cristo, que se acha, ele mesmo, repleto por Deus, segundo a afirmação de Cl 2,9-10. Aproximamo-nos das expressões joânicas: o Pai está no Filho, nos discípulos; os discípulos, no mundo (Jo 17,11.20-26; cf. Jo 1,16).

Este versículo difícil é suscetível de receber várias interpretações. É preferível evitar a tradução de “pleroma” por “complemento” (a Igreja, complemento de Cristo). Além da nossa tradução, propõe-se ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todos” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que a anima e conduz à sua plenitude, cf. 4,13). Ou ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todas as coisas” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que, ele próprio, penetra o universo sob todos os aspectos, cf. 4,10).

Evangelho (Ano B): Mc 16,9-15

Ouvimos a conclusao do Evangelho de Marcos que é um acréscimo posterior (vv. 9-20) como existe também outro no quarto evangelho (Jo 21). O estilo e o vocabulário são diferentes do resto do evangelho. O que motivou este anexo no século II foi o fim brusco do evangelho mais antigo em Mc 16,8: “As mulheres fugiram do túmulo… e não disseram nada a ninguém por medo”. O leitor pode se perguntar: Como, então, sabemos da ressurreição de Jesus, se as mulheres não disseram nada do túmulo vazio e da mensagem do anjo (16,4-7)? O porquê deste final é um enigma: Perdeu-se a última página do evangelho original, ou Mc queria provocar o leitor assim mesmo com a inversão do segredo messiânico (característico do seu evangelho; cf. 1,25.43-45; 5,41; 7,36s; 8,25; 9,9)? Agora, depois da ressurreição, deve-se falar em vez de se calar (cf. 9,9); o leitor deve anunciar o evangelho sem medo.

O acréscimo resume primeiramente as aparições de Jesus nos outros evangelhos (vv. 9-14), “a Maria Madalena” (v. 9; cf. Jo 20,11-18; Mt 28,9-10) e aos discípulos de Emaús: “Jesus apareceu a dois deles, com outra aparência, enquanto estavam indo para o campo. Eles também voltaram e anunciaram isso aos outros” (vv. 12-13, cf. Lc 24,13-34). Diferente de Lc 24,34, os apóstolos “também não deram crédito” (v. 13).

O evangelho de hoje saltou a refeicao e a repreensao de Jesus por causa da descrenca deles (v. 14b) e passa para a ordem da missao.

Jesus se manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! (vv. 14a.15).

O evangelho de hoje começa com o envio dos discípulos pelo mundo e a ordem de anunciar o evangelho a “toda criatura” (v. 15; cf. Mt 28,19-20; Mc 13,10; Cl 1,23). Jesus ressuscitado continua demonstrando grande amor pelos discípulos. Ele conhece muito bem os apóstolos. Viu como foram fracos durante a paixão e que são lentos em acreditar. Mas apesar das dificuldades e da incredulidade deles, Jesus os envia “pelo mundo inteiro” (Mt 28,19; Lc 24,47-48; At 1,8) mandando-lhes anunciar “o evangelho a toda criatura” (v. 15; cf. Mc 13,10; Cl 1,23).

Apesar da pouca fé, são enviados. Acontece também com cada um de nós. A misericórdia de Deus utiliza pessoas simples e ainda em estado de imperfeição para anunciar o evangelho (cf. Lc 5,8). Muitas vezes queremos ver já a perfeição realizada, quando a perfeição é um caminho, uma busca. A perfeição poderá vir, depois de um “encontro pessoal com Jesus”, como diz a Conferência de Aparecida (2007). Devemos levar as pessoas que frequentam as nossas celebrações e os jovens e crianças na catequese para um encontro profundo com Jesus ressuscitado que transforma suas vidas.

Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado (v. 16).

Uma frase própria salienta a importância do batismo (v. 16). A frase em Jo 3,4 (“Quem não nascer da água e do Espírito, não entrará no reino de Deus”) podia levar a conclusão que todos os não-batizados não serão salvos. Stº. Agostinho pensava na existência de um “Limbus” (ante-sala do céu onde ficariam as crianças não-batizadas; esta ideia foi oficialmente abandondada por Bento XVI). Mas nossa leitura diz somente: “Quem não crer, será condenado” (v. 16b). Quem crer vai solicitar o batismo (para si e sua família, cf. At 16,15.30-33) e “será salvo” (v. 16a). Nas perseguições, porém, havia catecúmenos (pessoas preparando-se para o batismo) que foram presos, torturados e mortos por crerem em Jesus antes se realizar seu batismo. Estes mártires foram salvos por sua fé, receberam o “batismo de sangue”. Mas o que dizer sobre tantas pessoas que receberam o batismo, mas perderam a fé (numa perseguição ou no cotidiano) ou não a praticam?

O apóstolo Paulo sempre salientou a primazia da fé para salvação (cf. Rm 1,16-17; 3,21-36 etc.). O Concílio Vaticano II considerou também a salvação daqueles que não tinham oportunidade de conhecer o Evangelho, mas vivem segundo sua consciência fazendo o bem.

Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas; se pegarem em serpentes ou beberem algum veneno mortal não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados (vv. 17-18).

O evangelho de hoje ainda fala de “sinais que acompanharão aqueles que crêem…” e que podemos encontrar todos na vida de Paulo em At 14,8-10; 16,16-18; 19,11; 28,3-6; 2Cor 14,18-19. Expulsar demônios pode significar nao apenas curar de doencas psíquicas, mas também livrar de supersticao e deuses falsos, conceitos errados que oprimem a pessoa. Serpentes com veneno podem ser pessoas que prejudicam com suas calunias.

Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus (v. 19).

Com discricao, o anexo descreve a ascensao do “Senhor Jesus” (expressao única em Mc, cf. At 2,36; Rm 10,9, 1Cor 12,3; Fl 2,11), nao com a nuvem como em At 1, mas com a essência teológica:  “foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (cf. 12,36 e 14,62 citando Sl 110,1). Jesus voltou ao Pai, à glória do céu, ao infinito.

Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam (v. 20).

Agora o acréscimo em Mc parece resumir o segundo volume de Lucas, os Atos dos apóstolos. Nao se menciona aqui o Espirito Santo, mas a pregacao apostólica acompanhada por sinais.

 

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