16 de Novembro de 2019, Sábado: Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v. 8b)

32ª semana sábado – Ano Ímpar

Leitura: Sb 18,14-16; 19,6-9

Para a leitura de hoje foram selecionados dois trechos dos últimos capítulos de Sb. No início do livro, o autor identificou a sabedoria com a justiça e, depois de mostrar que ela é o guia da vida (1,16-5,23) e apresentar a sua natureza (6,1-9,18), faz uma longa meditação sobre o êxodo (10,1-19,21). Já que o livro de Sb foi escrito por um judeu em Alexandria, cidade grega no Egito, a história do êxodo (saída) constitui uma referência especial: a libertação dos seus antepassados da escravidão nesta mesma terra do Egito.

No êxodo, Israel descobriu a justiça de Deus, a qual comunica ao povo a verdadeira sabedoria. Doravante, toda sabedoria implica exercício da justiça, e este, se for verdadeiro, produz a libertação, enquanto a prática da injustiça e da idolatria produz a morte. O autor descreve, de maneira poética, a exterminação dos primogênitos e o desastre do mar Vermelho como castigo das faltas cometidas pelos egípcios (cf. v. 5; 11,16).

Quando um tranquilo silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava ao meio de seu curso, a tua palavra onipotente, vinda do alto do céu, do seu trono real, precipitou-se, como guerreiro impiedoso, no meio de uma terra condenada ao extermínio; como espada afiada, levava teu decreto irrevogável; defendendo-se, encheu tudo de morte e, mesmo estando sobre a terra, ela atingia o céu (18,14-16).

Os vv. 14.15a desta leitura nos lembram do evangelho do dia de Natal, 25 de dezembro: a palavra de Deus personificada sai do alto do céu no meio da noite para se fazer presente como salvador no meio dos homens (Jo 1; Lc 2; na versão original, o canto “noite feliz” chama-se “noite silenciosa”). Só aqui a mensagem não fala de nascimento (o menino no presépio), nem de paz (Lc 2,14), mas da morte dos primogênitos dos egípcios como última praga para conseguir a libertação dos escravos hebreus.

Em contraste com a oração de Salomão em 9,10 (“Dos céus sagradas, envia-a, manda-a do teu trono de glória…” cf. 7,23; 9,4), Deus envia sua palavra para destruir “a meia noite” (cf. Ex 11,4; 12,29). Já em 11,20; 12,9 o autor falava do sopro e da palavra inexoráveis de Deus.

A morte dos primogênitos a Deus, atribuído em Ex 11,4; 12,12.23.27.29 diretamente a Deus, acompanhado pelo (anjo) Exterminador (Ex 12,23), aqui se torna obra da Palavra divina. Esta já era representada como executora de julgamentos por Is 11,4; 55,11; Jr 23,29; Os 6,5.

A Bíblia do Peregrino (p. 1569) comenta: Aqui a palavra assume uma figura impressionante, remotamente inspirada no Deus guerreiro de Hab 3, como tradução poética do “exterminador” de Ex 12,23 (cf. Ex 11,4-5). Também recorda a figura do anjo da peste de 1Cr 21,16.

O verbo guerreiro personificado encontra-se também em Ap 1,16; 19,11-13. Compara-se com a espada de 5,18-20; Is 34,5-6, como símbolo da palavra de Deus que penetra, julga e liberta (cf. Hb 4,12; Is 11,4; 49,2; Ef 6,17).

O conjunto assume uma significação apocalíptica, e a Palavra de julgamento prefigura não a Encarnação do Verbo (contrariamente ao uso que a liturgia fez deste texto), mas o aspecto temível de sua segunda vinda (cf. 1Ts 5,2-4; Ap 19,11-21).

Então, a criação inteira, obediente às tuas ordens, foi de novo remodelada em cada espécie de seres, para que teus filhos fossem preservados de todo perigo. Apareceu a nuvem para dar sombra ao acampamento, e a terra enxuta surgiu onde antes era água: o mar Vermelho tornou-se caminho desimpedido, e as ondas violentas se transformaram em campo verdejante, por onde passaram, como um só povo, os que eram protegidos por tua mão, contemplando coisas assombrosas. Como cavalos soltos na pastagem e como cordeiros, correndo aos saltos, glorificaram-te a ti, Senhor, seu libertador (19,6-9).

Na segunda parte da leitura de hoje, o autor insiste sobre a travessia maravilhosa dos israelitas pelo “mar Vermelho” (19,6-9), enfiando livremente a tradição antiga (cf. Ex 14,15-31). Preparada por considerações sobre o endurecimento final dos ímpios entregues a uma cólera sem piedade, a antítese torna-se explícita em 19,5: justos (israelitas) para vida e injustos (egípcios) para morte.

A transformação (metamorfose) da criação domina este capítulo final do livro. Por quê? O Deus da criação é o mesmo da história. A Bíblia do Peregrino (p. 1571) comenta: Vimos como os julgamentos históricos eram antecipação e garantia do julgamento final exposto na primeira parte do livro… O último capítulo amplia seu horizonte numa leitura escatológica do êxodo, à imagem da primeira criação, com dados cosmológicos. Já o Segundo Isaias tinha insistido no caráter de criação que terá o segundo êxodo, e por isso o seu canto era potencialmente escatológico. Com efeito, se colocarmos debaixo desse capitulo a pauta da criação conforme Gn 1, aparece a coerência e o sentido unitário desse final.

Há várias correspondências de Gn e Sb em nossa leitura:

  1. A Palavra de Deus cria tudo (Gn 1) e a criação “obediente às suas ordens” (Sb 19,6; cf. 18,14-16)
  2. Caos-trevas-alento de Deus (Gn 1,2) e a “nuvem” (Sb 19,7a).
  3. Terra saindo da água (Gn 1,9s) e o “mar Vermelho” (Sb 19,7b).
  4. Erva da terra (Gn 1,11) e a “várzea verdejante” (Sb 19,7d)
  5. Animais terrestres e seres humanos (Gn 1,24-31) e “povo, cavalos, cordeiros” (Sb 19,8s).

O autor deve remeter à criação inicial (Gn 1) querendo dizer que, para a passagem do mar Vermelho, a natureza criada recebeu uma nova forma ou foi modificada. Primitivamente, “as trevas cobriam o abismo” e a terra surgira da água (Gn 1,1.6): de novo assiste-se um fenômeno semelhante, mas dessa vez a atividade extraordinária do ar, da terra e da água afasta-se da ordem estabelecida pelo Criador. Não se sabe se o autor visa uma transmutação dos elementos ou uma permuta de suas propriedades, “cumprindo tuas ordens” (cf. 16,24-25; 19,18 e 5,17); o mesmo dos governantes (6,4s).

“Teus filhos” (16,6): o justo e o povo dos hebreus são filhos de Deus (cf. 2,13.16; 5,5; 18,13). A “nuvem” (19,7a) compara-se com a fala da Sabedoria: “Saí da boca do Altíssimo e como neblina cobri a terra” (Eclo 24,3). Como novidade, a erva brotou no lugar da água, “as ondas violentas numa planície verdejante” (19,7d). Is 63,14 fala igualmente de uma “planície”, mas só a título de comparação. O Midraxe palestino (interpretação pelos rabinos dos séc. 2 a 6) fala não somente de erva abundante, mas de árvores frutíferas que ornavam o caminho que fora aberto. Os “prodígios assombrosos” mencionados no v. 8 seguinte provêm do mesmo processo de idealização. A tradição rabínica enumerará dez milagres para passagem do mar Vermelho. A comparação com os “cavalos” (19,9) pode aludir ironicamente à cavalaria do Faraó afogada no mar (Ex 15,1.21).

O Deus dos hebreus, o criador e “amigo da vida” (11,26), é também “seu libertador”.

 

Evangelho: Lc 18,1-8

Diante do julgamento no dia do Filho do Homem que virá de repente, não se pode ficar despreocupado esquecendo-se de Deus (cf. 17,22-37, os evangelhos dos dias anteriores), mas é preciso “rezar sempre”. A parábola seguinte forma um par com a de 11,5-8. Lc a introduz com o v. 1 e ajunta-lhe como aplicação os vv. 6-7, como também o v. 8 (cf. 21,36: “Vigiai e rezai em todo momento para serdes julgados dignos… diante do Filho do Homem”).

Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir, dizendo (v. 1).

Lucas antecipa a intenção didática da parábola e a enquadra assim na sua explicação. Diante c vinda (parusia) do Senhor, não fazer longas orações, mas sim reiteradas e prementes, para que o Senhor venha fazer justiça. São pensamentos e vocabulário paulinos: “rezar sempre” (Rm 1,10; 12,12; 1Ts 5,17; 2Ts 1,11; Fl 1,4; Cl 1,3; Fm 4) e “não desanimar (desistir)” (2Ts 3,13; 2Cor 4,1.16; Gl 6,9; Ef 3,13).

“Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum. Na mesma cidade havia uma viúva, que vinha à procura do juiz, pedindo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário!’ (vv. 2-3).

A parábola apresenta uma mulher fraca contra um homem forte. As viúvas eram particularmente expostas a abusos legais e judiciais, entre outras razões, porque não podiam subornar nem pagar (Ex 22,21s; Dt 10,18; Sl 68,6; 94,6; Pr 15,25; Is 1,17; Jr 22,3; Lm 1,1). O juiz em função era “iníquo”: “não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (implica-se mutuamente; cf. Sl 14 e, em forma positiva, as parteiras egípcias, Ex 1,17).

Durante muito tempo, o juiz se recusou. Por fim, ele pensou: ‘Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!’ (vv. 4-5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2515) comenta: Os julgamentos costumavam celebrar-se à porta da cidade ou em outro lugar público, de modo que a viúva tinha acesso e podia reclamar publicamente. A mulher não desespera nem se resigna, tenazmente. É sua única arma; resignar-se seria fazer o jogo da injustiça. Até que o juiz ceda e se ocupe dela por puro egoísmo.

“Por fim, ele pensou” (lit. “ele disse a si mesmo”). Monólogos (falar consigo mesmo, com “sua alma”) são frequentes em Lc (cf. 12,17-19; 15,17-19; 16,3s etc.).

E o Senhor acrescentou: “Escutai o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa (vv. 6-8a).

O “Senhor” é Jesus que comenta a própria parábola (cf. 16,8). É audaz sobrepor a Deus a imagem do juiz injusto e egoísta.

A Bíblia do Peregrino (p. 2515) comenta: Quando Deus tolera o malvado e deixa sofrer suas vítimas, é injusto? (cf. Jr 15,15). A surpresa nos faz fixar-nos mais no ponto central: Deus fará justiça, mas sem demora, “bem depressa”? O salmista repete “até quando?” (Sl 13). Muitos acontecimentos históricos induzem os homens a duvidar da justiça de Deus.

Trata-se do escândalo clássico da inação aparente de Deus (Sl 44,23; Zc 1,12) que a demora da parusia (volta de Cristo) provocou novamente entre os cristãos: Quando Cristo voltará para julgar os vivos e os mortos? Quanto tempo ainda?

O motivo de atender aos pedidos é diferente, mas o que importa é a certeza: Se o juiz corrupto se deixa mover pelo próprio egoísmo, quanto mais Deus que é nosso Pai atenderá por amor “seus escolhidos” (cf. Is 42,1; Mc 13,20). Deus não se omite nem desatende seus escolhidos: “Há um Deus que faz justiça na terra” (Sl 9,9; 58,12; 94,2).

“Será que vai fazê-los esperar?” ou “mesmo que os faça esperar” (a tradução da nossa liturgia não é unânime!). Fará justiça “bem depressa” ou de “repente” (como um relâmpago, cf. 17,24-36)? A Bíblia de Jerusalém (p. 1964) comenta: Em Eclo 35,18-19, onde esse versículo parece ter-se inspirado, é dito que Deus não esperará, nem tardará a fazer justiça aos pobres oprimidos; aqui é dito que usa de paciência, Talvez essa adaptação reflita o cuidado de explicar a demora da Parusia. Comparar uma atitude análoga em 2Pd 3,9; Ap 6,9-11.

Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v. 8b)

Este v. faz a ligação com o cap. anterior (17,5s.19.22-37) sobre a “fé” e a vinda (parusia) do Filho do Homem (cf. 21,36). Deus virá para fazer justiça; mas não basta: o escolhido há de conservar a fé e a perseverança, continuar orando para receber o que vem (cf. as frases finais em 7,9.50; 8,48; 17,19; 18,42). A fé e a esperança num Deus, justo juiz, deve animar o ser humano e a Igreja, até o fim da sua peregrinação terrestre.

O site da CNBB comenta: A parábola do juiz iníquo nos mostra, como o próprio São Lucas nos diz, a necessidade da oração constante e da confiança em Deus que sempre ouve as nossas preces. Porém devemos ver qual a preocupação de Jesus no que diz respeito ao conteúdo da oração. O juiz não quer fazer justiça para a viúva e depois a faz por causa da insistência dela. A partir disso, Jesus nos fala sobre a justiça de Deus, ou seja, que o Pai fará justiça em relação aos que a suplicam. Deste modo, vemos que Jesus exige que a nossa oração não seja mesquinha, desejando apenas a satisfação das necessidades temporais, mas sim a busca dos verdadeiros valores, que são eternos.

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