17 de agosto de 2016 – 20ª semana 4ª feira

Leitura: Ez 34,1-11

Ouvimos hoje o início do capítulo sobre os pastores maus de Israel. É uma metáfora antiga que se refere aos dirigentes e às autoridades, e como tal, permanece sua atualidade até os dias de hoje.

Na linguagem palaciana do antigo Oriente Médio, os reis eram chamados os pastores do povo. O termo poderia ser atribuído aqui também a outros chefes. Deve-se ler este capítulo em paralelo com Jr 23. O rei é comparado ao pastor escolhido pela divindade para dar atenção aos fracos (cf. Sl 23). Em vez de apascentar o rebanho, os pastores de Israel (reis e governantes) exploraram o povo e causaram a guerra, a destruição e o exílio (cf. Jr 23,1-4). A maior condenação deve recair sobre o governo do rei de Judá, Sedecias (2Rs 24,17-25,7), por sua desastrosa política de enfrentar Nabucodonosor, rei da Babilônia, que resultou na destruição de Jerusalém e ao exílio em 597 e 587 a.C.

A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ”Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel! Profetiza, dizendo-lhes: Assim fala o Senhor Deus aos pastores: Ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos! Não são os pastores que devem apascentar as ovelhas? (vv. 1-2).

Ezequiel tratou da responsabilidade de gerações e indivíduos (cap. 18 e 33,10-20), mas não nega a responsabilidade dos dirigentes. A do profeta ficou bem clara na parábola da sentinela (3,16-21; 33, 1-9); agora chega a vez dos chefes do povo, vistos na imagem de pastores. A imagem é tradicional e se apóia principalmente na figura de Davi que era pastor de ovelhas antes de ser ungido rei (1Sm 16,1-13). Aqui a imagem é tratada com riqueza de detalhes, o esquema se ramifica com liberdade frondosa, sem prejudicar a coerência.

Ao esquema clássico de julgamento, denúncia do delito e anúncio da pena, Ez acrescenta magníficas promessas para as vítimas (nossa liturgia de hoje cita apenas o inicio delas em v. 11).

Vós vos alimentais com o seu leite, vestis a sua lã e matais os animais gordos, mas não apascentais as ovelhas. Não fortalecestes a ovelha fraca, não curastes a ovelha doente, nem enfaixastes a ovelha ferida. Não trouxestes de volta a ovelha extraviada, não procurastes a ovelha perdida; ao contrário, dominastes sobre elas com dureza e brutalidade (vv. 3-4).

Em vez de cuidar do povo (das ovelhas), os dirigentes (pastores) cuidaram de si mesmo explorando o povo. Ez alude às cobranças rigorosas de contribuições dos reis que faziam sua política pessoal em vez de pôr seu reino a serviço do povo (cf. 45,9). Já sob Salomão, corveia e tributos eram os sinais da opressão do monarca (cf. 1Sm 8,10-18; 1Rs 9,15; 10,14s; 12,3).

As ovelhas dispersaram-se por falta de pastor; tornando-se presa de todos os animais selvagens. Minhas ovelhas vaguearam sem rumo por todos os montes e colinas elevadas. Dispersaram-se minhas ovelhas por toda a extensão do país, e ninguém perguntou por elas, nem as procurou (vv. 5-6).

“Minhas ovelhas”, porque Israel é o povo do Senhor: os reis são apenas delegados para dirigi-lo: mas o ministério real, em lugar de fortalecer Israel e de o consolidar como nação, provocou sua dispersão: “vaguearam sem rumo por todos os montes e colinas elevadas”, provável alusão ao culto pagão dos “lugares altos”; “dispersaram-se… por toda a extensão do país” e depois, para fora no exílio (a dispersão dos judeus no mundo, fora de Israel, chama-se “diáspora”).

No NT, Jesus reclama que o povo se pareça como “ovelhas sem pastor”, e resolve depois alimentá-lo (Mc 6,34; Mt 9,36; cf. Nm 27,17; 1Rs 22,17; 2Cr 18,16; Jdt 11,9).

Por isso, ó pastores, escutai a palavra do Senhor: Eu juro por minha vida – oráculo do Senhor Deus – já que minhas ovelhas foram entregues à pilhagem e se tornaram presa de todos os animais selvagens, por falta de pastor; e porque os meus pastores não procuraram as minhas ovelhas, mas apascentaram-se a si mesmos e não as ovelhas, por isso, ó pastores, escutai a palavra do Senhor! (vv. 7-9).

Lembramos que Ezequiel está no exílio entre os primeiros deportados de 598 a.C. e não critica tanto seus co-exilados, mas, sobretudo os reis de Israel que levaram o povo a ruína no passado e o atual rei em Jerusalém, Sedecias. Apesar das suas palavras duras, Ezequiel não é perseguido da mesma maneira do que Jeremias que vivia no meio dos acontecimentos em Jerusalém.

Assim diz o Senhor Deus: Aqui estou para enfrentar os pastores e reclamar deles as minhas ovelhas. Vou tirar-lhes o ofício de pastor, e eles não mais poderão apascentar-se a si mesmos. Vou libertar da boca deles as minhas ovelhas, para não mais lhes servirem de alimento (v. 10).

Ez anuncia o fim da monarquia de Israel. Os reis não poderão mais governar e explorar o povo à vontade. Os últimos reis em Jerusalém já foram instituídos pelos soberanos estrangeiros: em 609, o faraó Necão aprisionou o rei de Judá, Joacaz e constituiu outro filho de Josias, Eliacim cujo nome mudou para Joaquim (2Rs 23,33s). O filho de Joaquim era Joaquin que, depois de três meses do seu governo, foi levado ao exílio na Babilônia em 598. O rei da Babilônia, Nabucodonosor, o substituiu por seu tio Matanias cujo nome mudou para Sedecias (cf. Ez 1,2; 2Rs 24,24,8-17). Este se revoltou contra a o rei da Babilônia, provocando assim a destruição de Jerusalém e a segunda deportação ao exílio em 586. Nabucodonosor mandou degolar os filhos de Sedecias, furar os olhos dele e levá-lo ao exílio onde morreu no cárcere (2Rs 25,1-7; Jr 52,11). Joaquin, porém, recebeu anistia depois de 37 anos na prisão e “passou a comer sempre na mesa do rei” (2Rs 25,27-30). Depois do exílio (538), não haverá mais reis em Israel ou Judá, só governadores constituídos pelo rei da Pérsia (por ex.: Sorobabel, cf. Ag 1,1.14; Neemias, cf. Ne 5,14; 12,16; mais tarde, reis nomeados pelos romanos, por ex. Herodes), enquanto os sumos sacerdotes tomaram a liderança local (cf. Zc 6,11).

Assim diz o Senhor Deus: Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas (v. 11).

O próprio Senhor Deus se apresenta como pastor (cf. Is 40,11; Sl 23; 80,2; cf. no NT: Jo 10,1-15) que juntará as ovelhas dispersas, para conduzi-las aos “montes de Israel”, à cidade santa (20,37-40). De fato, os exilados são insistentemente (14 vezes no cap.) chamados de “minhas ovelhas”, o que enfatiza a teologia do povo eleito (37,23). Com estes vv. começam as promessas de salvação.

Já em 33,21, a notícia da destruição de Jerusalém chegou aos ouvidos de Ezequiel. Agora o profeta muda de tom, não anunciará mais o desastre, mas uma mudança para o melhor: os exilados voltarão, Judá e Israel serão reunidos e a aliança será renovada com um coração novo (36,24-28).  Israel será libertado da opressão e “ressuscitará” como povo (37,1-14); Javé Deus (res)suscitará um pastor que apascentará a ovelhas, Davi. Ez não dispensa a constituição monárquica, mas nunca chama o novo Davi de “rei”, apenas de “pastor”, “servo”, “príncipe” (34,23-31).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1655) comenta: A imagem do rei-pastor é antiga no patrimônio literário do Oriente. Jeremias aplicou-a aos reis de Israel, para lhes reprovar o mau cumprimento das suas funções (Jr 2,8; 10,21; 23,1-3), e para anunciar que Deus dará ao seu povo novos pastores, que o apascentarão na justiça (Jr 3,15. 23,4), e entre esses pastores um “germe” (Jr 23,5-6), o Messias. Ezequiel retoma o tema de Jr 23,1-6, que ainda será retomado mais tarde por Zc 11,4-17; 13,7. Ele reprova os pastores (aqui os reis e chefes leigos do povo) por seus crimes (vv. 1-10). Iahweh lhes tirará o rebanho que eles maltratam e se fará ele próprio o pastor do seu povo (cf. Gn 48,15; 49,24; Is 40,11; Sl 80,2; 95,7 e Sl 23); é o anúncio de uma teocracia (vv. 11-16): de fato, na volta do Exílio, a realeza não será restabelecida. É mais tarde que Iahweh dará ao seu povo (cf. 17,22; 21,32) um pastor da sua escolha (vv. 23-24), um “príncipe” (cf. 45,7-8.17; 46,8-10.16-18), novo Davi. A descrição do reinado desse príncipe (vv. 25-31) e o nome de Davi, que lhe é dado (ver 2Sm 7; cf. Is 11,1-9; Jr 23,5-6), sugerem uma era messiânica, quando o próprio Deus, por meio do seu Messias, reinará sobre o seu povo na justiça e na paz. Encontra-se neste texto de Ezequiel o esboço da parábola da ovelha perdida (Mt 18,12-14; Lc 15,4-7) e sobretudo a alegoria do Bom Pastor será um dos temas iconográficos mais antigos do cristianismo.

 

Evangelho: Mt 20,1-16

O evangelho de hoje é uma parábola que se encontra somente em Mt. No evangelho de ontem, Pedro perguntou a Jesus: “Nós deixamos tudo e te seguimos. O que haveremos de receber?” (19,27). A estrutura lembra 18,22-35: pergunta de Pedro, resposta direta de Jesus (19,28-30) e uma parábola em seguida para aprofundar o assunto (20,1-16). A resposta direta de Jesus terminou com a frase que será repetida também no final da parábola: “Muitos que agora são os primeiros serão os últimos. E muitos que agora são os últimos serão os primeiros” (19,30; cf. 20,16).

O Reino dos Céus é como a história do patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha (v. 1).

Mt começa uma série de três parábolas sobre a vinha (cf. 21,28-32.33-46). Vinha ou videira é a imagem tradicional de Israel (Is 5; Sl 80 etc.) e se aplica depois à Igreja (Jo 15). O texto situa-se no “sermão sobre a comunidade”, começado no cap. 18. Jesus continua instruindo seus seguidores sobre o comportamento no mundo.

Combinou com os trabalhadores uma moeda de prata por dia, e os mandou para a vinha. Às nove horas da manhã, o patrão saiu de novo, viu outros que estavam na praça, desocupados, e lhes disse: “Ide também vós para a minha vinha! E eu vos pagarei o que for justo”. E eles foram. O patrão saiu de novo ao meio-dia e às três horas da tarde e fez a mesma coisa (vv. 2-5).

O Reino dos Céus é aqui comparado ao proprietário que contratou vários trabalhadores para sua vinha, em horários diferentes. A jornada costumava ser de sol a sol e pagava-se diariamente. Um denário, ou seja, “uma moeda de prata” era a diária comum.

Saindo outra vez pelas cinco horas da tarde, encontrou outros que estavam na praça, e lhes disse: “Por que estais aí o dia inteiro desocupados?” Eles responderam: “Porque ninguém nos contratou”. O patrão lhes disse: “Ide vós também para a minha vinha” (vv. 6-7).

Os últimos são contratados ainda às cinco horas da tarde; estavam desempregados, sentados na praça “o dia inteiro” aguardando por um contrato de serviço.

Quando chegou a tarde, o patrão disse ao administrador: “Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a todos, começando pelos últimos até os primeiros!” Vieram os que tinham sido contratados às cinco da tarde e cada um recebeu uma moeda de prata (vv. 8-9).

Segundo o preceito de não atrasar o salário do trabalhador (Lv 19,13; Dt 24,15; Jó 7,2), o patrão paga no final do dia, mas invertendo a ordem (recurso necessário da narrativa para falar depois do ciúme dos primeiros). Ele paga a todos igualmente, começando pelos últimos, contratados à tardinha, até os primeiros, contratados de manhã, a mesma diária.

Em seguida vieram os que foram contratados primeiro, e pensavam que iam receber mais. Porém, cada um deles também recebeu uma moeda de prata. Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ”Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro”. Então o patrão disse a um deles: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. (vv. 10-14).

Aos primeiros que ficaram com inveja (cf. a sutil instrução de Eclo 14,3-10), ele diz: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata?”. A justiça é feita, mas o patrão é mais do que justo: ele é bondoso, sabe que os últimos também precisam alimentar suas famílias.

Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?” (v. 15).

O direito do trabalhador é receber o salário combinado, o direito do proprietário é fazer com seu dinheiro o que quer (respeitando as obrigações sociais e ambientais).

Aqui terminava provavelmente a parábola original que, talvez, se endereçasse aos fariseus, (como as parábolas de Lc 15). Jesus queria mostrar-lhes que a bondade de Deus ultrapassa os critérios humanos na retribuição concebida como um salário devido, sem, contudo, descambar na arbitrariedade, que não leva em conta a justiça. Ele convida a não se mostrar invejoso perante a liberalidade do amor de Deus.

Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (v. 16a).

A sentença final é aberta e se encontra também em outro lugar e outro contexto (19,30). Aqui, provavelmente foi acrescentada à parábola original (vv. 1-15) e sublinha a ordem da distribuição dos salários (v. 8). Corresponde a uma nova situação, a da igreja de Mt, onde judeu-cristãos e pagão-cristãos se misturam. Os que foram chamados primeiro são os judeus (cf. 10,5s), mas os pagãos e pecadores convertidos que foram chamados posteriormente, chegarão ao reino antes dos judeus (cf. 21,31)? Aplica-se dentro da Igreja em diversas circunstâncias, p. ex. cargos confiados na Igreja a ex-pagãos em vez de dar preferência aos judeu-cristãos. Os primeiros (judeus) refugiam-se em suas prestações de serviço, os últimos (pagãos) na generosidade de Deus (cf. Rm 9-11).

A maneira como este patrão trata seus operários nos chama a atenção para a gratuidade com que Deus nos acolhe em seu reino. Não é segundo os critérios humanos que Deus age em favor da humanidade. A estranheza das palavras de Jesus nessa parábola deve nos chamar a atenção para nossa maneira de julgar a Deus ou de atribuir-lhe atitudes especificamente humanas.

Geralmente o ser humano quer recompensa por suas boas ações (em vez de alimentar privilégios, a meritocracia recompensa e motiva os que trabalham bem, não favorece os preguiçosos). E, quando não se sente recompensado, acha que Deus é injusto, não o ama ou se esqueceu dele. Costuma-se até dizer: “Por que Deus não atende às minhas preces? Sou tão dedicado, tenho tanta fé!” Mas a maneira de Deus agir não se iguala à nossa. Ele é absolutamente livre para agir como quiser. E essa liberdade é pontuada por seu amor incondicional e sua generosidade inestimável. Deus nos ama e deu-nos mais do que ousamos pedir. Deu-nos a vida. Deu-nos a si mesmo no seu Filho. Deu-nos a eternidade ao seu lado.

Por isso, o reino dos céus não se apresenta como recompensa por nossos méritos pessoais. É puro dom de Deus, que nos chama gratuitamente a participar da vida plena. Cabe a nós acolhê-lo como dom e não ficar numa atitude mesquinha de sempre esperar recompensas por méritos prévios. Isso não é cristianismo, não é gratuidade. Isso não é resposta amorosa a Deus.

No Reino não existem marginalizados. Todos têm o mesmo direito de participar da bondade e misericórdia divinas que superam tudo quanto os homens consideram como justiça. No Reino, não há lugar para o ciúme. Aqueles que julgam possuir mais méritos do que os outros devem aprender que o Reino é dom gratuito.

A maior parte da Bíblia é o Antigo Testamento, que é a Sagrada Escritura dos judeus (Bíblia Hebraica). Eles são aqueles trabalhadores das primeiras horas. Os hebreus foram os primeiros a responder “sim” ao apelo do dono da vinha (cf. Gn 15,6; Ex 19,8; 24,3 etc.). As demais nações herdaram desse povo as alianças, as promessas, a história e principalmente o Messias (Rm 9,3-5). Sejamos gratos a Deus por nossa vocação tardia, mas sejamos gratos também aos judeus, nossos irmãos mais velhos, fatigados pelo dia inteiro de trabalho.

O site da CNBB comenta: Nós estamos acostumados com a forma de justiça que foi estabelecida pelos homens e, por causa disso, encontramos dificuldades para compreender a justiça divina, principalmente porque os principais critérios da justiça dos homens são a diferença entre as pessoas e a troca entre os valores enquanto que os principais critérios da justiça divina são a igualdade entre as pessoas e a gratuidade dos valores. Isso nos mostra que a lógica divina é totalmente diferente da lógica dos homens e que nós vivemos reivindicando valores que, na verdade, são valores humanos e que não nos conduzem a Deus. Também nos mostra o quanto todos nós somos comprometidos com os valores humanos e deixamos de lado os valores do Reino.

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