17 de Janeiro de 2020, Sexta-feira: Quando viu a fé daqueles homens, Jesus disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (v. 5).

1ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Sm 8,4-7.10-22

A leitura de hoje nos apresenta uma virada importante na história política e religiosa de Israel, a transição da liga das tribos, uma confederação liderada por juízes (Samuel é o último desse tipo), ao sistema monárquico (um rei concentra os poderes e depois dele governa seu filho). O livro de Sm nos dá duas versões discordantes, sem se esforçar-se por harmonizá-las: uma negativa e outra positiva.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 309) comenta o conjunto de 7,22-15,35: Com a ascensão da monarquia, o período dos juízes entre em declínio. Esse processo não se dá sem resistência, como se percebe nos capítulos 7-12, que reúnem uma tradição favorável à monarquia (8,1-5.21-22; 9,1-10,16; 11) e outra contrária (7; 8,6-20; 10,17-27; 12).

A Bíblia de Jerusalém (p. 429) comenta: Mas é abusivo falar de uma “versão antimonarquista” (8; 10,17-24; 12) e de uma “versão monarquista” (9,1-10,16; 11). Essas tradições diferentes, provenientes de diferentes santuários, estão de acordo a respeito do papel histórico e religioso de Samuel. Sua importância vem de ter feito prevalecer uma realeza que respeitava os direitos de Deus sobre o povo. Depois da derrota do reino de Saul, isso ia realizar-se sob Davi. Sua extraordinária personalidade conciliou o aspecto religioso com o aspecto profano da monarquia em Israel, e nele o chefe político não faltou aos deveres do ungido de Javé. Mas esse ideal não foi mais atingido por seus sucessores, e Davi permaneceu como figura do rei do futuro, por meio do qual Deus operou a salvação do seu povo, o Ungido do Senhor, o Messias.

Nossa liturgia saltou os caps. 5-7. A unidade dos israelitas estava ameaçada ante o crescente domínio dos inimigos filisteus que destruíram o santuário da arca em Silo, mas devolveram depois a arca porque causou pragas no meio deles (caps. 5-6). A arca ficava em território neutro (em Cariat-Iarim, antiga Baala, até Davi a transportar a Jerusalém em 2Sm 6).

Todos os anciãos de Israel se reuniram, foram procurar Samuel em Ramá, e disseram-lhe: “Olha, tu estás velho, e teus filhos não seguem os teus caminhos. Por isso, estabelece sobre nós um rei, para que exerça a justiça entre nós, como se faz em todos os povos” (vv. 4-5).

Esta narração é originária do santuário de Ramá (residência de Samuel; cf. 7,17). Renovando o oferecimento feito a Gedeão (Jz 8,22s) e a tentativa de Abimelec (Jz 9,1s), uma parte do povo pede um rei “como se faz em todos os povos” (vv. 5.20), mas opõe-se a isso outra corrente de opinião, deixando a Javé, único Senhor de Israel, o cuidado de suscitar os chefes que as circunstâncias exigem como ele fazia no tempo dos juízes.

Samuel era reconhecido como juiz e profeta em Israel (cf. 3,20; 7,15-17), mas seus filhos não seguiram seus passos (repete-se a situação dos filhos corruptos de Eli em 2,11-17), se deixavam subornar e “pervertiam o direito” (vv. 2-3). Mas não tem lógica: Se o problema está nos filhos, porque então exigir uma monarquia hereditária? Um sistema como a democracia e república democrática não era conhecido ainda. Como a história de 1-2Rs mostra, os filhos dos reis também não seguirão os passos dos pais, levando o país a ruina e o povo ao exílio.

A Bíblia do Peregrino (p. 500) comenta: Os anciãos fazem uma síntese de julgar o reinar. O termo “julgar” adquire pouco a pouco o nosso sentido de governar; o que Samuel fez até agora, o rei doravante fará.

Samuel não gostou, quando lhe disseram: “Dá-nos um rei, para que nos julgue”. E invocou o Senhor. O Senhor disse a Samuel: “Atende a tudo o que o povo te diz. Porque não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, para que eu não reine mais sobre eles. ” (vv. 6-7).

O desgosto de Samuel tem algo de pessoal e não ser pura questão de princípio: embora só acusem os filhos, rechaçam toda a instituição dos juízes. É uma situação crítica como a de Moisés em suas tensões com o povo (cf. Ex 16,8). O Senhor corrige a visão pessoal de Samuel: a rigor, o que o povo rejeita é a soberania direta de Deus; Samuel apenas sofre rejeição.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 414) comenta: As funções de “juiz” (isto é, de soberano) e de chefe de guerra (cf. v. 20) pertenciam, por direito, ao Senhor (cf. 12,12; Jz 8,22-23), que podia, em certas ocasiões delegá-las a homens, os juízes, para exercê-las temporariamente, esta velha concepção da realeza divina é distinta da representação ulterior do Senhor-rei dominando em seu templo (Is 6,5; Sl 47,8-9).

Samuel opõe-se ao movimento do povo que quer um rei ”como nas outras nações” (vv. 5.20), mas em seguida não se opõe a uma monarquia que reconhece as prerrogativas a Javé. Israel se esquece de que não é um povo “como os outros”, de que se profana seguindo o exemplo deles e rejeitando seu verdadeiro rei, Javé Deus (cf. v. 7 e 12, 12).

Voz do povo, voz de Deus? Em Mc 15,12-15, o povo manipulado pela elite local (os sumos sacerdotes) pede que o “rei dos judeus” seja crucificado; em Jo 19,14-16, os sumos sacerdotes declaram: “Não temos outro rei senão César” (as autoridades judaicas cessam oficialmente de reconhecer a soberania absoluta de Deus sobre Israel, cf. Jz 8,23; 1Sm 8,7).

Samuel transmitiu todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedira um rei, e disse: “Estes serão os direitos do rei que reinará sobre vós: ” (v. 10)

Embora reprovando o desejo do povo, o Senhor parece ceder, autorizando Samuel a satisfazer este desejo (cf. v. 22). Contudo, antes da decisão, o povo deve conhecer bem as condições; o diálogo pretende informar bem o povo antes de formalizar a eleição, e recorda remotamente o diálogo de Josué com o povo na renovação da aliança (Js 24).

Esse “direito do rei” (cf. Dt 17,14-20) foi por muito tempo considerado como reflexo dos abusos do poder real sob Salomão e seus sucessores. Mas textos recentemente descobertos indicam que ele representa também as práticas dos reinos cananeus anteriores a Israel (conhecidas através dos arquivos cuneiformes de Alalakh e Ugarit).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 310) comenta: O verbo que predomina é “tomar” (laqah, vv. 11.13.14.16). Vv. 11-12: tomar os filhos (cf. 1Rs 9,20-22); v. 13: tomar as filhas (cf. 1Rs 11,3); v. 14: tomar as terras (cf. 22,7-8; 1Rs 21); vv.15.17a: tomar o tributo, as plantações e rebanhos (cf. 1Rs 5,2-3; Am 5,11; Mq 2,2); vv. 16.17b: tomar os servos para o trabalho forçado (cf. 1Rs 5,27). No final tudo será propriedade do rei. É uma volta ao Egito (cf. Ex 13,3.14). Esta prática do rei é totalmente contrária à prática de Samuel (cf. 12,3-5; Dt 17,14-20). O “direito do rei” (vv. 9.10) de “tomar” os bens do povo não é vontade de Deus.

“Tomará vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e dos seus cavalos e os fará correr à frente do seu carro. Fará deles chefes de mil, e de cinquenta homens, e os empregará em suas lavouras e em suas colheitas, na fabricação de suas armas e de seus carros. Fará de vossas filhas suas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tirará os vossos melhores campos, vinhas e olivais e os dará aos seus funcionários” (vv. 11-14).

O autor pode aludir aos carros, trabalhos forçados e tributos de que Salomão se servia (vv. 11s; cf. 1Rs 9,15-23; 10,15) e fazer uma censura aos monopólios (v. 14) dos quais a história de Nabot (1Rs 21,1-24) é apenas um exemplo. O regime desejado de uma monarquia “como se faz em todos os povos” não corresponde aos interesses dos pequenos proprietários livres que não sentiam necessidade de um rei, a não ser para melhor resistir a pressões externas.

“Das vossas colheitas e das vossas vinhas ele cobrará o dízimo, e o destinará aos seus eunucos e aos seus criados. Tomará também vossos servos e servas, vossos melhores bois e jumentos, e os fará trabalhar para ele” (vv. 15-16).

No contexto bíblico, os vv. 11-17 soam como legalização do que o décimo mandamento proíbe (e, na sua forma antiga, o sétimo: “não roubar pessoas”). Os verbos que definem a atividade real são tirar ou levar, dizimar, para si e seus ministros; a lista de bens inclui os três itens fundamentais: família, terras, gado (o texto hebraico tem “os vossos bois”; o grego, “os vossos adolescentes”). O possessivo da terceira pessoa (seus, suas) soa quatorze vezes, repetindo que tudo é “para ele”.

“Exigirá o dízimo de vossos rebanhos, e vós sereis seus escravos. Naquele dia, clamareis ao Senhor por causa do rei que vós mesmos escolhestes, mas o Senhor não vos ouvirá” (vv. 17-18).

Este “direito do rei” desemboca na terrível frase final: “vós sereis seus escravos”; é a tensão dos homens entre liberdade e autoridade, entre segurança e escravidão. Recorde-se a história de José culminando em Gn 47,25: “Tu nos salvaste a vida… seremos servos do Faraó”.

A Bíblia do Peregrino (p. 501) comenta: Com o verbo gritar (clamar) entramos em outro esquema, bem conhecido pelo livro dos Juízes: o estrangeiro subjugava Israel, que gritava ao Senhor; mas a história se rompe, porque o Senhor não responderá. É um pouco como o argumento contra os ídolos de Jz 10,14; se se empenham em buscar a salvação em um rei, que o rei os salve.

A Bíblia do Peregrino (p. 500-501) comenta o conjunto: Samuel se opõe a petição do povo. Israel deve ter o Senhor por único rei, deve confiar nele na vida política e militar; o juiz-profeta será o intermediário que dará a conhecer em cada caso a vontade de Deus que dirige a história. Mais ainda, a monarquia se voltará contra o povo por suas exigências despóticas. Samuel recita o que significa ter com um rei: escravidão mais que libertação. Recordemos que quando o autor quer falar, costuma fazê-lo pela boca de algum dos protagonistas. Mas Samuel não está exagerando? Um mediador humano não desbanca a soberania de Deus. O rei é o defensor do povo diante da prepotência dos poderosos, é garante da justiça e defensor na guerra. Isso justifica outra proposta, e os fatos comprovam. O livro 1Sm conta que Samuel ungiu o primeiro rei, o povo o aclamou, o rei começou bem a sua tarefa salvadora.

Saul, porém, não será “escolhido” pelo povo, mas designado pelo Senhor (9,15; 10,24; 11,6). O rei ideal (messias), que protege os pobres, é descrito no Sl 72.

Porém, o povo não quis dar ouvidos às razões de Samuel, e disse: “Não importa! Queremos um rei, pois queremos ser como todas as outras nações. O nosso rei administrará a justiça, marchará à nossa frente e combaterá por nós em todas as guerras”. Samuel ouviu todas as palavras do povo e repetiu-as aos ouvidos do Senhor. Mas o Senhor disse-lhe: “Faze-lhes a vontade, e dá-lhes um rei” (vv. 19-21a).

O povo parece querer contestar o discurso de Samuel: a monarquia não será para ele, o rei, mas para “nós” (repete sete vezes o sufixo: nosso/nos). De novo se juntam os termos julgar-reinar, dando a vitória ao segundo: em todo capítulo suas vezes a raiz shpt (juiz, julgar) contra doze vezes mlk (rei, governar, reino).

Mas Samuel continua em seu papel de mediador, como porta-voz de Deus (cf. Moisés em Ex 19,9). A execução da ordem do Senhor fica em suspenso. Com a última frase (v. 21b: “Volte cada uma à sua cidade“), Samuel dissolve a assembleia (cf. Js 24,28). Permite ao autor inserir a narrativa da unção de Saul (9,1-10,16, cf. leitura de amanhã).

A Bíblia do Peregrino (p. 500) comenta: No capítulo 8 assistimos a versão antimonárquica em forma dramática de diálogo. Para o povo, o rei representa governo firme e defesa militar; para Samuel, representa impostos e servidão. O drama consiste em que ambos têm razão. A verdadeira liberdade e segurança está em reconhecer e servir ao Senhor, que liberta e não escraviza; só quando o rei for servidor do Senhor a serviço da comunidade, é que protegerá sem escravizar (cf. Dt 17,14-20).

 

Evangelho: Mc 2,1-12

O evangelho de hoje nos apresenta mais uma cura de Jesus e simultaneamente o primeiro entre vários conflitos com as autoridades da Galileia (2,1-3,6; 3,22-30; 7,1-13). Mc já encontrou um relato sobre a cura do paralitico e a mescla com uma controvérsia sobre o perdão dos pecados.

Alguns dias depois, Jesus entrou de novo em Cafarnaum. Logo se espalhou a notícia de que ele estava em casa. E reuniram-se ali tantas pessoas, que já não havia lugar, nem mesmo diante da porta. E Jesus anunciava-lhes a Palavra (vv. 1-2).

Os vv. 1-2 são introdução de Mc sintonizando com sua narração anterior. “De novo” (cf. 2,13; 3,1.20; 4,1; 5,21; 7,14.31 etc.) encontramos Jesus em Cafarnaum onde “ele estava em casa” (casa própria? cf. Mt 4,13; 9,1). Mc não esclarece qual era a casa, mas por causa “de novo”, deve ser a casa de Simão Pedro onde Jesus já estava antes (1,29-33) e onde se havia reunida também uma multidão “diante da porta” (1,33). Por causa da sua fama (1,45; cf. 2,25.45; 3,7-8.20; 6,31) “reuniram-se ali tantas pessoas, que já não havia lugar nem mesmo diante da porta” (v. 2a; cf. 3,31-32). Para Mc, é importante que “Jesus anunciava-lhes a palavra” (v. 2b, cf. 1,21-22.38-39; 2,13; 4,1.14-20,33; 6,2,6b.34; 10,1; 12,35.38; cf. 7,13; At 4,29.31; 8,25; 11,29 etc.), não veio apenas para curar (cf. 1,34-39).

Trouxeram-lhe, então, um paralítico, carregado por quatro homens. Mas não conseguindo chegar até Jesus, por causa da multidão, abriram então o teto, bem em cima do lugar onde ele se encontrava. Por essa abertura desceram a cama em que o paralítico estava deitado (vv. 3-4).

Com sua maneira viva de descrever detalhes, Mc apresenta quatro homens que trouxeram um paralítico, subiram no telhado e abriram um buraco, por onde desceram a cama com o paralitico porque não conseguiam passar pela porta por causa da multidão (vv. 3-4).

É possível que na origem do relato desta cura, o motivo de entrar pelo teto não fosse a multidão que impedia a entrada pela porta, mas a intenção de enganar o demônio que pela tradição era causa da doença. Ele não devia conhecer a entrada regular da casa para não voltar, porque na superstição acredita-se que os demônios entram e saem pelo mesmo lugar. Então Mc desmistifica: “por causa da multidão, abriram então o teto”. Mt 9,8 resume tanto que nem menciona a multidão nem a abertura do teto.

A palavra grega krábbatos indica a cama de uma pessoa pobre (Mt e Lc mudam para kline). A abertura da casa tem dois temos diferentes que nossa tradução litúrgica esconde: (lit.:) “destelharam” o teto … e “cavaram” e desceram a cama. Destelhar é só possível numa casa com telhas cerâmicas no estilo greco-romano (assim muda Lc 5,19), a maioria das casas na Palestina tinha um terraço feito de junco, palha e lama (tipo taipa) onde precisa cavar para abrir. As vezes uma escada subia para o teto.

Não sabemos como Simão Pedro reagiu à danificação de sua casa (cf. Ex 22,1-2; também o exorcismo em 5,11-17 causa grande prejuízo material), mas para Jesus vale este exemplo de “fé daqueles homens” em favor do doente (v. 5)

Quando viu a fé daqueles homens, Jesus disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (v. 5).

Geralmente, antes da cura, vem uma palavra de conforto e coragem, por ex.: “Não temas, crê somente” (5,36), ou: “Tua fé te salvou… esteja curada desse mal” (5,34; cf. 10,52). A “fé daqueles homens” é reconhecida; fé no sentido de confiar e abandonar-se sem condições a Jesus.

Mas aqui o relato da cura vai tornar-se controvérsia (vv. 5b-10). No lugar da palavra de cura, ouve-se uma de perdão. Isso é possível, porque, segundo os antigos, a doença era causada pelo pecado (cf. Sl 32; 38; 41; Eclo 38,9s). Para libertar este deficiente físico, Jesus vai direto à raiz que é o pecado invisível que causa os males externos e visíveis (cf. Jo 5,5-14). Os carregadores querem a cura física, Jesus desvia a atenção para o mais importante da sua missão: vencer o pecado com o perdão (cf. o significado do nome Jesus em Mt 1,21): “Filho, teus pecados estão perdoados”.

Não precisa recorrer a um demônio que causa doenças (cf. 1Sm 16,14-23; 2Sm 24,15; Is 37,36; Nm 5,11-31; Jó 2,7), porque Jesus não se dirige ao demônio, mas ao deficiente físico. O termo “filho, menino” indica que o paralítico era jovem (cf. a palavra aos discípulos em 10,24). É só aqui que Jesus absolve pessoalmente uma pessoa dos seus pecados (cf. 3,28; 11,25).

Ora, alguns mestres da Lei, que estavam ali sentados, refletiam em seus corações: “Como este homem pode falar assim? Ele está blasfemando: ninguém pode perdoar pecados, a não ser Deus” (vv. 6-7).

Um indício que Mc inseriu a controvérsia sobre o perdão (vv. 5b-10) neste relato da cura é que só agora menciona “alguns mestres da Lei” (cf. 1,22; em Lc 5,17 já estão na introdução desta cura). Eles pertenciam ao partido dos fariseus (vv. 16.18.25; 3,2,6) que dominavam o culto nas sinagogas da Galileia (outros mestres da lei pertenciam ao partido dos saduceus, à classe alta dos sacerdotes e atuavam mais em Jerusalém, cf. 3,22; 7,1; 11,27; 12,18; 14,1,53; 15,1). Começaram a pensar no seu íntimo: “Ele está blasfemando” (v. 7b). Blasfêmia é falar mal (amaldiçoar) das coisas mais sagradas (cf. 3,28s). A pena da blasfêmia era pena de morte, a lapidação (cf. At 7,58; Lv 24,11-16; cf. Nm 15,30). Nota-se que no primeiro conflito com os adversários já se trata da acusação mais grave, mas ainda não falada abertamente. A mesma acusação aparece depois no processo do sinédrio (14,64), a intenção de matar Jesus já em 3,6.

A blasfêmia de Jesus seria arrogar-se um privilégio exclusivo de Deus: “Ninguém pode perdoar pecados, a não ser Deus” (v. 7c), conforme a doutrina judaica (Ex 34,7; Is 43,25; 44,22; Sl 130,4), a unicidade de Deus está no jogo (cf. Dt 6,4 citado em Mc 12,29). Nem ao messias, o judaísmo atribuía o perdão dos pecados, apenas a vitória sobre os poderes demoníacos e preservar o povo do pecado mediante um governo justo. O mesmo vale para o sumo sacerdote messiânico (esperado na comunidade de Qumrã). O perdão dos pecados era mediada apenas via sacrifícios no culto.

Jesus percebeu logo o que eles estavam pensando no seu íntimo, e disse: “Por que pensais assim em vossos corações? O que é mais fácil: dizer ao paralítico: “Os teus pecados estão perdoados”, ou dizer: “Levanta-te, pega a tua cama e anda”? Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder de perdoar pecados, – disse ele ao paralítico: – eu te ordeno: levanta-te, pega tua cama, e vai para tua casa! ” (vv. 8-11).

Jesus, porém, “percebeu logo” os pensamentos deles (cf. 8,16s; 12,15); também penetrar pensamentos é próprio de Deus (1Rs 8,36; Pr 15,11; cf. 1Sm 16,7; Sl 7,10; Jr 11,20; Eclo 43,18s). “O que é mais fácil…? ” Aparentemente mais fácil é falar do perdão divino (cujo efeito não se pode verificar na terra) do que curar um paralítico cuja cura pode se observar logo.

Então Jesus cura o paralítico da sua deficiência física, como prova de que ele sim tem o poder de perdoar pecados. Deus não iria atender um blasfemo (cf. Jo 9,15-16.31-33). Pois para “expiar pecados”, o culto oferecia recursos institucionais como sacrifícios no templo (cf. Lv 4), para curar milagrosamente não. A cura externa expressa e revela a interna. Aliás, os mediadores do AT não perdoam pecados, só intercedem pedindo perdão para os outros (cf. Ex 32; Nm 14; 2Sm 12 etc.).

O v. 10 é o elemento mais antigo e a essência da narração e da controvérsia (talvez criada em torno dele, cf. a mudança da pessoa a qual Jesus se dirige em v. 10 e v. 11). Jesus usa aqui e muitas vezes em seguida a expressão “filho do homem” (vv. 10.28; 8,31.38; 9,9.31; 10,33; 13,26; 14,41.62; cf. Mt 8,20/Lc 9,58; Mt 11,19/Lc 7,34) que pode significar simplesmente “ser humano” (hebraico: “filho de Adão”, cf. Sl 8,5; 90,3; Ez 2,1.3.6.8; 3,1 etc.), ou seja a condição humana de Jesus, correlativo de Filho de Deus. Mas aqui Mc não quer dizer que apenas como ser humano se pode perdoar pecados. Jesus representa Deus aqui.

Por outro lado, este termo “filho do homem” está associado à figura humana a quem Deus entregará seu reino no final dos tempos (Dn 7,13s), e Jesus anuncia este reino como próximo (1,15). Jesus se identifica com esta expressão “filho do homem”; não podia ser acusado e preso por ser apenas um ser humano, nem ser mal-entendido como messias guerreiro nacionalista (o filho do homem em Dn 7,13s é mais universal e espiritual).

Em nenhum momento, porém, a tradição judaica relacionou o perdão dos pecados ao “Filho do homem”, mas lhe atribuiu o juízo final (no escrito apócrifo Henoc; cf. Mt 25,31-46). A comunidade cristã sabe que o perdão dos pecados se deve à morte de Jesus (cf. 10,45p; 1Cor 15,3). Para ela, este Filho do Homem tem poder de julgar e de perdoar os pecados já aqui na terra.

O paralítico então se levantou e, carregando a sua cama, saiu diante de todos. E ficaram todos admirados e louvavam a Deus, dizendo: “Nunca vimos uma coisa assim” (v. 12).

A cura torna-se argumento positivo da afirmação anterior. Mc termina conforme o gênero literário: a cura é demonstrada pelo paralítico “carregando a sua cama”, libertado da doença e do pecado ele vai à casa como Jesus ordenou em v. 11 (cf. 5,19). E a cena termina com “todos admirados” (lit. extasiados, fora de si) e louvando a Deus, dizendo “Nunca vimos uma coisa assim” (v. 12; cf. a reação em 5,42; 6,51).

Depois das curas, Mc costuma acrescentar uma ordem de silêncio (1,24.34.44s etc.). Aqui e em v. 28 não o fez, porque se trata de controvérsias e os adversários não iam obedecer mesmo. Mc tem o segredo do messias/filho de Deus, mas Jesus usa abertamente o título “filho do homem”.

Pode se reclamar que na evolução desta narração em Mc a compaixão original de Jesus para com o doente é substituída pelo interesse no poder do filho do homem? Mas a cura continua significativa. O homem inteiro deve ser curado/salvo: o corpo, da doença e o espírito, do pecado.

Obs.: Podemos relacionar esta cura (com a qual inicia a polêmica dos fariseus em Mc) com o batismo de crianças e o sacramento de confissão: A maioria de nós foi batizada ainda criança pequena. Quatro pessoas nos carregaram para o encontro de Jesus: os pais e os padrinhos. No relato, Jesus reconheceu a fé destas quatro pessoas e perdoou o pecado deste “filho”. Pelo batismo, a criança é chamada “filho/filha de Deus” e seu pecado original é perdoado (pecado individual ainda não tem), reconhecendo a fé dos pais e padrinhos. Já o apóstolo Paulo não só batizava indivíduos adultos, mas famílias inteiras (cf. At 16,15.31-34; cf. Pedro em 10,26.48). A paralisia expressa a situação do pecador. O pecado escraviza, tira a liberdade de se movimentar (cf. Gl 5,1.13; Rm 7,14ss; 8,14-15). O perdão liberta, devolve a liberdade de ir e vir.

O protestante alemão Martinho Lutero iniciou sua reforma em 1517; tirou a confissão sacramental e as indulgências abusivas pela ganância do clero daquela época. O Concílio de Trento (1545-1563) reagiu e corrigiu certos abusos, mas insistiu no poder dos padres de perdoar pecados. Não é privilégio exclusivo de Deus ou de Jesus, porque Jesus passou esta autoridade para os apóstolos e Pedro (cf. Mt 16,19; 18,18; Jo 20,23), que passaram a mesma autoridade para seus sucessores, que são os bispos católicos, estes autorizam os padres. No sacramento da confissão, o pecador arrependido não precisa duvidar mais, se Deus já o perdoou ou não. Com a absolvição dos pecados, pronunciada por um ministro autorizado (ordenado), ele pode ter a mesma certeza: “Filho, teus pecados estão perdoados. ”

O site da CNBB resume: As pessoas do tempo de Jesus têm muita dificuldade para acreditar que ele tenha poder de perdoar pecados. Isso acontece porque perdoar pecados é algo que compete unicamente a Deus, e as pessoas da época de Jesus, principalmente as autoridades religiosas, não o reconheceram como o Filho de Deus. Hoje em dia, porém, vemos acontecer o contrário. Parece que o perdão dos pecados é algo tão “comum” que a maioria das pessoas não valoriza mais isso como algo excepcional que Deus realiza em nossas vidas, vulgarizando a graça sacramental e não dando o devido valor ao Sacramento da Reconciliação.

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