24 de Março de 2020, Terça-feira – Quaresma: Jesus disse: “Levanta-te, pega a tua cama e anda.” No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou a sua cama e começou a andar (vv. 8-9a).

4ª Semana da Quaresma 

Leitura: Ez 47,1-9.12

“No país dos caldeus”, ou seja, no exílio babilônico, Javé Deus colocou a mão sobre o sacerdote Ezequiel que estava entre os primeiros deportados de 597 a.C. Em “visões divinas” (cf. 1,1-3) viu como a glória de Javé estava abandonando o templo de Jerusalém.

Em 573 a.C., quatorze anos após a queda de Jerusalém e a destruição do templo (cf. 40,1), Ezequiel recebeu outra visão no seu exílio. Agora sonha com uma cidade renovada e uma nação revigorada. O centro desta nova Jerusalém é o novo Templo de onde sai uma fonte que se tornará um rio sarando a terra.

O anjo fez-me voltar até a entrada do Templo e eis que saia água da sua parte subterrânea na direção leste, porque o Templo estava voltado para o oriente; a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar. Ele fez-me sair pela porta que dá para o norte, e fez-me dar uma volta por fora, até à porta que dá para o leste, onde eu vi a água jorrando do lado direito (vv. 1-2).

Um anjo (lit. “homem”), “cujo aspecto era como o de bronze”, guia e explica ao profeta a sua visão (40,3). O papel de intérprete, devolvido aos anjos, é um traço do profetismo tardio (cf. Dn 8,16. 9,21; Zc 1,8s; Ap 1,1; 10,1-11, etc.). Depois de mostrar o novo templo, para onde a glória de Deus voltará (caps. 40-43), se passa a seus efeitos vivificantes (cf. caps. 36-37: vento-espírito e água, duplo princípio da nova vida).

Jerusalém precisa de abastecimento seguro de água. O rei Ezequiel mandou cavar na rocha um túnel da fonte Gion (1Rs 1,33; 2Rs 20,20) fora dos muros para uma piscina dentro da cidade (o reservatório de Is 22,11 e Eclo 48,17; chamada de Siloé em Jo 9,7). Este canal subterrâneo substituiu um outro, mais antigo, cavado em parte a céu aberto no lado oriental do monte Sião, e que levava a água a uma outra piscina, situada um pouco abaixo que a de Siloé (Is 7,3; 2Rs 18,17 = Is 36,2; 22,9). Na visão de Ez, esta água nasce do Templo.

Os vv. 1-12 devem ser aproximados de 43,1s: esse rio maravilhoso manifesta a bênção trazida à terra pela habitação renovada de Deus no meio do seu povo. A imagem será retomada por Ap 22,1-2: “mostrou-me um rio de água brilhante como cristal, que saiu do torno de Deus e do Cordeiro…” (uma passagem trinitária, porque as águas vivas e vivificantes significam o Espírito; cf. Jo 4; 7,37-39).

O anjo conduziu o profeta e o fez ver “que saia água… do lado direito do Templo, a sul do altar” (v. 1). Nós estamos acostumados contemplar mapas se orientadas para o norte (“norteados”), mas o homem da Bíblia costumava se orientar olhando ao leste para o sol nascente (“oriente”), nesta posição, o seu lado direito aponta ao sul.

A água avança “na direção leste” (v. 3), talvez por ser a região mais árida, talvez imaginando uma localização oriental do paraíso (cf. Gn 13,10). “O Templo estava voltado para o oriente”; as igrejas cristãs orientavam-se ao oriente, celebrando o culto em direção ao “sol nascente” (cf. Ml 1,11; 3,20; Mc 16,2p; Lc 1,78), ou seja, ao Cristo ressuscitado que vem.

Olhando para leste, a direção sul fica à direita: “a água corria do lado direito do Templo, a sul do altar”. O evangelho de João fez uma alusão ao corpo de Jesus crucificado como novo templo (Jo 2,20-22): “Um soldado abriu o lado com a lança, e imediatamente jorrou sangue e água” (Jo 19,35).

Quando o homem saiu na direção leste, tendo uma corda de medir na mão, mediu quinhentos metros e fez-me atravessar a água: ela chegava-me aos tornozelos. Mediu outros quinhentos metros e fez-me atravessar a água: ela chegava-me aos joelhos. Mediu mais quinhentos metros e me fez-me atravessar a água: ela chegava-me à cintura. Mediu mais quinhentos metros, e era um rio que eu não podia atravessar. Porque as águas haviam crescido tanto, que se tornaram um rio impossível de atravessar, a não ser a nado (vv. 3-5).

Depois de 500 metros, a água chega só aos tornozelos, mas com cada passo a água aumenta e depois de 2000 metros tornou-se “um rio impossível de atravessar, a não ser a nado” (v. 5). Sabemos hoje da importância de cuidar bem das nascentes dos nossos rios, porque, no início, todo rio é fraco e vulnerável.

Ele me disse: “Viste, filho do homem?” (v. 6a)

Com frequência em Ez, o profeta é chamado “filho do homem” (2,1 etc.); não designa o juiz apocalíptico (cf. Dn 7,13s; Mc 13,26; Mt 25,31), mas significa simplesmente “ser humano” (em hebraico: “filho de Adão; cf. Sl 8,5; 90,3).

Depois fez-me caminhar de volta pela margem do rio. Voltando, eu vi junto à margem muitas árvores, de um e de outro lado do rio. Então ele me disse: “Estas águas correm para a região oriental, descem para o vale do Jordão, desembocam nas águas salgadas do mar, e elas se tornarão saudáveis. Onde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver. Haverá peixes em quantidade, pois ali desembocam as águas que trazem saúde; e haverá vida onde chegar o rio. Nas margens junto ao rio, de ambos os lados, crescerá toda espécie de árvores frutíferas; suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão: cada mês darão novos frutos, pois as águas que banham as árvores saem do santuário.  Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (vv. 6b-9.12).

Num país tal seco como Israel, tanta abundância de água lembra a descrição dos rios no paraíso (Gn 2,10-14). Também as árvores frutíferas em ambos os lados do rio lembram o jardim Éden, “suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão: cada mês darão novos frutos” (v. 12). O rio não só traz prosperidade, mas também a saúde. A região de deserto se transforma em paraíso (cf. Is 35,7; 41,18s; 43,20). Os frutos de todas as suas árvores serão comestíveis; as folhas medicinais afastarão a morte (cf. Ap 22,2).

As águas “descem para o vale do Jordão, desembocam nas águas salgadas do mar”. O mar é o mar Morto, símbolo de maldição por ter água com tanta concentração de sal que não há vida nele (cf. Gn 19,23-26), por este rio que sai do santuário e se junta ao rio Jordão, as águas deste mar vão ser tornadas salubres, “saudáveis” (lit. “curadas”; cf. 2Rs 2,21s; Ex 15,23-25).

“Haverá peixes em quantidade, haverá vida aonde chegar o rio” (v. 9). Renasce prodigiosamente a vida, como em nova criação (cf. Gn 1,20s). A bênção desta fonte inicialmente pequena se dá por causa da sua origem: “as águas… saem do santuário” (v. 12).

A água doce (Apsu) vence a água salgada (Tehom). Nos vv. 10-11 (omitidos) mencionam-se pescadores e umas reservas de sal que serão preservadas.

No NT, o rio Jordão e o batismo cristão representam nova criação (cf. 2Rs 5; Mt 3p; Rm 6,4; 2Cor 5,17). Vemos a influência desta visão nos escritos joaninos: há “água” que é “viva” e “jorra para vida eterna” (Jo 4,10-14; 7,37-38) e que sai do lado do corpo de Jesus na cruz (19,34). Lembrando que o Corpo de Cristo é o novo Templo (cf. Jo 2,21), isso pode ser uma alusão a esta visão de Ezequiel. Na cidade celeste de Jerusalém, onde não há mais templo, porque “o seu templo é o próprio Senhor” (Ap 21,22), um “anjo” (Ap 21,9) mostra ao vidente um “rio de água vivificante… que brotava do trono de Deus e do Cordeiro… em ambas as partes do rio cresce a árvore de vida. Frutificando doze vezes por ano, produzindo cada mês o seu fruto, e suas folhas servem para curar as nações. Já não haverá maldição alguma” (Ap 22,1-3a; cf. 21,6; 22,17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2122) comenta:

Água como no paraíso (Gn 2,10-14): em vez de quatro rios, quatro etapas crescentes. Água na cidade santa (Is 30,25; JI 4,18; Zc 14,8): o templo está na plataforma superior, sobre as plataformas do átrio interno, do externo e do terreno circundante. Água derramada pelo Senhor (Sl 65,10). Água que transforma o deserto (Is 35). Porque o Senhor é “fonte de água viva” (Jr 2,13; 17,13). 

Água de vida: contínua, crescente, invasora, comunicada. Comunica-se às plantas, produzindo um parque maravilhoso; comunica-se aos animais, fazendo com que o mar Morto pulule de seres vivos; comunica-se aos homens em forma de alimento e remédio. O profeta sentirá no corpo o poder da água: o resto o escuta dos lábios do acompanhante.

 

Evangelho: Jo 5,1-16

Depois de ouvirmos da água vivificante de um rio que sai do templo na visão de Ezequiel (cf. leitura), o evangelho de hoje nos apresenta Jesus curando na piscina de Betesda em Jerusalém. É o terceiro milagre (“sinal”; cf. 2,11; 4,54) neste evangelho de Jo, uma cura de um paralítico que não termina com a admiração do povo, mas contestação por parte dos judeus (cf. Mc 2,1-12).

Houve uma festa dos judeus, e Jesus foi a Jerusalém (v. 1).

Jesus vai a Jerusalém pela segunda vez (cf. 2,13). A “festa dos judeus” em v. 1 não é especificada. O autor não está muito interessado na festa, nem diz que Jesus participa. Uma tradição antiga e alguns manuscritos informam que era Páscoa (a Bíblia de Jerusalém: “talvez Pentecostes”). Por esse dado e porque a multiplicação dos pães acontece na Galileia “próxima da Páscoa” (6,4), alguns exegetas invertem a ordem dos capítulos 5 e 6.

Aqui, o texto só esclarece que “era um sábado” (v. 9). O cap. 5 se situa pouco antes da Páscoa (6,4); os caps. 7-8 pertencem à festa das Tendas e 10,22-39 à festa da Dedicação. Assim João distribuiu a atividade de Jesus pelas tradicionais festas judaicas.

Existe em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, uma piscina com cinco pórticos, chamada Betesda em hebraico. Muitos doentes ficavam ali deitados – cegos, coxos e paralíticos -, esperando que a água se movesse. De fato, um anjo descia, de vez em quando, e movimentava a água da piscina, e o primeiro doente que aí entrasse, depois do borbulhar da água, ficava curado de qualquer doença que tivesse (vv. 2-4).

Escavações recentes comprovaram a existência de uma piscina com cinco pórticos (corredores com colunas), chamada Betesda, perto da porta das Ovelhas, a nordeste do Templo. “Muitos doentes ficavam ali deitados: cegos, coxos e paralíticos” (v. 3; cf. Is 35,5-6). O v. 4 falta nos manuscritos mais antigos, é uma anotação posterior que prepara a narração que vem depois e explica a crença na origem sobrenatural (“anjo”) da movimentação da fonte.

Aí se encontrava um homem, que estava doente havia trinta e oito anos. Jesus viu o homem deitado e sabendo que estava doente há tanto tempo, disse-lhe: “Queres ficar curado?” O doente respondeu: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, quando a água é agitada. Quando estou chegando, outro entra na minha frente” (vv. 5-7).

Entre os muitos deficientes, Jesus “viu” um paralítico ou aleijado crônico “havia trinta e oito anos” (uma vida toda), impedido fisicamente e também com uma falta notável de iniciativa. O ver de Jesus não por acaso, já escolhe o mais triste destes, “sabendo que estava doente há tanto tempo”. É Jesus que toma iniciativa, perguntando: “Queres ficar curado?” (v. 6). Soa como desafio ou como repreensão: Queres de fato? Fazes algo para consegui-lo?

A resposta do paralítico só obtém uma desculpa que sublinha a desgraça, está impossibilitado. Sempre tem outro, menos doente que entra na água antes dele; esta água só curava quando se agitava, e apenas o primeiro que entrava (cf. v. 4). O verdadeiro problema do paralítico é que não tem ninguém para ajudá-lo. É a solidão, o abandono: “Não tenho ninguém que me leve” (v. 7); expressão clássica da oração (Sl 22,12; 107,12-34; cf. Is 63,5; Lm 1,7), de modo que Jesus será a sua única salvação. O deficiente reconheceu em Jesus uma pessoa que finalmente estava disposta a ajuda-lo.

Jesus disse: “Levanta-te, pega a tua cama e anda.” No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou a sua cama e começou a andar (vv. 8-9a).

O evangelho de João nada diz de possessões demoníacas ou de espíritos imundos (aliás, o AT também quase nada), mantém-se no plano simples da doença. A palavra de Jesus brota da compaixão e é eficaz, “nela estava a vida” (1,4). Sem a água milagrosa desta piscina, Jesus cura apenas com sua palavra (cf. 4,50-53, evangelho de ontem): “Levanta-te, pega a tua cama e anda” (v. 8). Estas palavras e a cena lembram a cura do paralítico em Cafarnaum (Mc 2,1-12p), que também precisava de homens para ser carregado e onde também se provocou um conflito com os mestres da lei em seguida.

Aqui também se espera alguma reação além da demonstração do curado andando com sua cama.

Ora, esse dia era um sábado. Por isso, os judeus disseram ao homem que tinha sido curado: “É sábado! Não te é permitido carregar tua cama.” Ele respondeu-lhes: “Aquele que me curou disse: ‘Pega tua cama e anda’”. Então lhe perguntaram: “Quem é que te disse: ‘Pega tua cama e anda’?” O homem que tinha sido curado não sabia quem fora, pois Jesus se tinha afastado da multidão que se encontrava naquele lugar (vv. 9b-13).

O evangelista chama os opositores “os judeus” (1,19; 2,18), designando os representantes do judaísmo que excluíram os cristãos na época dele (em 90 d.C.; cf. 9,22.35). Eles disseram: “É sábado! Não te é permitido carregar tua cama” (v. 10). O descanso sabático era um dos preceitos mais sagrados dos judeus, e somente o perigo de morte suspendia sua vigência. A mishna (a “cerca” em volta da Lei de Moisés, ou seja, a tradição dos fariseus colocada por escrito no século II) especifica que é proibido transportar fardos (cf. Jr 17,19-27). O ex-paralítico responde com lógica elementar: se a saúde obedeceu ao mandato deste homem, porque não deverá obedecer àquele que recuperou a sua saúde? (cf. v. 11; 9,24-25.31-33). A palavra que recuperou sua saúde foi uma ordem de carregar a cama.

Os judeus querem saber quem é quem autorizou de desobedecer à lei do sábado, mas Jesus se havia “afastado da multidão” (cf. 2,23-25; 4,43s).

Mais tarde, Jesus encontrou o homem no templo e lhe disse: “Eis que estás curado. Não voltes a pecar, para que não te aconteça coisa pior”. Então o homem saiu e contou aos judeus que tinha sido Jesus quem o havia curado. Por isso, os judeus começaram a perseguir Jesus, porque fazia tais coisas em dia de sábado (vv. 14-16).

Jesus não foge dos adversários, agora está no templo e encontra o homem curado. Apoiado na tradição que vincula doença/deficiência com pecado (cf. Mc 2,5, diferente: Jo 9,1-3), o exorta a uma conversão radical e cura mais profunda do espírito: “Não voltas a pecar, para que não te aconteça coisa pior” (v. 14; cf. 8,11; Sl 31,38). A cura por Jesus incluiu o perdão dos pecados; “coisa pior” só pode ser o julgamento (cf. 3,18-21).

Neste reencontro no templo, o homem vem saber quem é que o curou e o conta ingenuamente “aos judeus”, ou seja, às autoridades judaicas que “começaram a perseguir Jesus” (vv. 15-16).

Para Jesus, um homem doente vale mais do que o pé da letra de uma lei que devia estar a serviço da vida e da liberdade dos seres humanos em vez de impedi-los (5,15; cf. Mc 2,27s).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, as pessoas que sofrem diferentes formas de males possuem uma fé muito grande no poder de Deus, mas de algumas formas são impedidas de chegar até ele e receber as suas graças, condição indispensável para a superação de seus males e sofrimentos. É o caso do paralítico, que acreditava no poder de Deus e na cura que viria pela ação do anjo ao agitar a água, mas era impedido pelos outros que entravam primeiro na piscina. Assim também acontece hoje quando criamos uma série de regras e preceitos humanos que dificultam a participação de muitos na vida divina e um relacionamento pessoal com ele, que é a fonte de todas as graças que nos dão vida em abundância.

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