17 de Outubro de 2018, Quarta-feira: Jesus respondeu: “Ai de vós também, mestres da Lei, porque colocais sobre os homens cargas insuportáveis, e vós mesmos não tocais nessas cargas, nem com um só dedo” (v. 46).

Leitura: Gl 5,18-25

Na leitura de hoje continua o jogo entre “carne” e “Espírito”, isto é, entre egoísmo e liberdade (cf. vv. 13-17). Assim Paulo designa duas tendências do ser humano, uma voltada para si mesmo (instinto egoísta), outra voltada para outras pessoas (amor a Deus e aos irmãos). A exposição dessa dupla tendência humana será retomada em Rm 7,15-23.

A liberdade não é o valor supremo: é limitado pelo amor mútuo, síntese de toda a lei (vv. 13s; 6,2; Rm 13,9s; cf. Mt 7,12p; 22,34-40p).

Paulo apresenta ainda duas listas, ou seja, um catálogo de vícios, outro de virtudes. Não pretendem ser sistemáticos nem completos, mas ilustrativos da dupla realidade que envolve os seres humanos.

Se sois conduzidos pelo Espírito, então não estais sob o jugo da Lei (v. 18).

Paulo não diz: ou lei ou libertinagem; e sim: ou Lei ou Espírito. E também: ou Espírito ou carne instinto. A lei se encontra na esfera do instinto: tenta dominá-lo e não consegue (cf. Rm 7,7-24). O espírito é um dinamismo interno que “conduz” os cristãos (Rm 8,14.26s; a lei é externa), é liberdade (2Cor 3,17) que pode ser mais exigente que o “jugo da lei” (cf. 3,22-26).

A narração de Pentecostes em At 2 baseia-se nesta transição: os judeus celebram neste dia a “entrega da Lei”, escrita em tábua de pedra no monte Sinai, a antiga aliança para o povo eleito (cf. Ex 19; 24). Para a comunidade cristã, o Espírito (simbolizado pelos mesmos sinais do monte Sinai: fogo e vento) capacita para anunciar a nova lei de Cristo (o amor), a nova aliança para todos os povos e línguas (cf. Jr 31; Gn 11).

Ser libertado da lei não significa ser livre para cometer o que ela condena (cf. Rm 6,14s), mas ser libertado da carne, cujas obras são condenáveis (cf. v. 23). Libertando-nos do pecado, Cristo nos libertou também da Lei que tem poder apenas sobre o pecador que ela condena; ela não tem mais poder sobre aquele que o Espírito conduz para a vida do filho de Deus (cf. 4,4-6).

São bem conhecidas as obras da carne: fornicação, libertinagem, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, facções, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas. Eu vos previno, como, aliás, já o fiz: os que praticam essas coisas não herdarão o reino de Deus (vv. 19-21).

Catálogos de vícios se encontram em outras passagens das cartas paulinas e na literatura contemporânea pagã e judaica (Sb 14,25s; Rm 1,29-31; 13,13; 1Cor 5,10s; 6,9s; 2Cor 12,20; Ef 4,31; 5,3-5; Cl 3,5-8; 1Tm 1,9s; 6,4; 2Tm 3,2-5; Tt 3,3; cf. Mc 7,21-22p; 1Pd 4,3; Ap 21,8; 22,15). No AT lemos algo semelhante nas chamadas “liturgias de entrada” ou acesso ao templo (Sl 15; 24). Em lugar de “entrar no templo”, Paulo fala “herdar o reino de Deus”, com a linguagem dos evangelhos.

Neste catálogo de vícios, “obras da carne”, nem o numero é significativo, nem cada conceito é preciso; destacam-se os itens concernentes à sexualidade e à concórdia. Pode-se notar quatro grupos de desregramentos: a impureza que perverte o amor humano: a idolatria e magia, perversões do culto divino; as divisões, que revelam a ausência de amor fraterno (a tradução latina da Vulgata acrescenta “homicídios”, cf. Rm 1,29); os excessos à mesa que revelam uma degradação da pessoa humana.

Porém, o fruto do Espírito é: caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, lealdade, mansidão, continência. Contra estas coisas não existe lei (vv. 22-23).

Na literatura da época, ex. na filosofia estóica, também existiam catálogos de virtudes. Às obras da carne. Paulo opõe o (singular) “fruto do Espírito”, que é único; a “caridade” (amor). Em seguida, esta segunda lista elenca diversas virtudes, a partir da vivência deste amor (1Cor 13,4-7; 2Cor 6,6; Ef 5,9; Fl 4,8; 1Tm 6,11; 2Pd 1,5-7; no AT, cf. as virtudes do messias como dons do Espírito em Is 11,2). Este catálogo das virtudes de uma comunidade cristã parece mais cuidado, por sua insistência no que se refere ao amor.

Pode-se ver nesta enumeração os sinais do reino do amor – alegria e paz –, as condições desse amor – paciência, bondade, benevolência – as condições do seu nascimento e expansão – fé, mansidão, domínio de si. Em 5,6, “a fé age pelo amor”; a fé é, com efeito, a raiz do amor, mas o amor a verifica e supera ainda (cf. 1Cor 13,2.13; cf. Tg 2,14-26). A mansidão é a atitude dos humildes que se deixam conduzir por seu Pai celeste; ela caracteriza o Cristo (Mt 11,29).  A tradução latina da Vulgata acrescenta “castidade”.

“Contra estas coisas não existe lei”  A lei nada tem a objetar contra essas atitudes, e não poderá acusar quem as cultiva (1Tm 1,9). O fiel unido a Cristo não tem mais Lei que lhe dite a conduta externa. Ele cumpre a Lei do Espírito (vv. 18.23.25; 6,2; Rm 6,15; 8,2-4; Fl 1,9-10; cf. Tg 1,25; 2,8). O comportamento inspirado pelo Espírito nunca é condenável. Inspirando-se em Paulo, St.º Agostinho declara: “Ama, e faze o que quiseres”. Alex Crowley, que fundou a seita satanista, declarou como lema apenas: “Faze o que quiseres”. Que diferença faz esta palavra pequena “amar” (cf. 1Jo 4,8.16)!

Os que pertencem a Jesus Cristo crucificaram a carne com suas paixões e seus maus desejos. Se vivemos pelo Espírito, procedamos também segundo o Espírito, corretamente (vv. 24-25).

Paulo não fala “mortificação” do corpo, mas da “carne”, ou seja, dos instintos egoístas que destroem “com suas paixões e seus maus desejos”; podemos chamá-la mortificação interior, radical, psicológico, não físico (cf. Mt 5,29s; 18,8s). Não se refere diretamente a penitências corporais. Tal mortificação ganha sentido cristão como imitação e participação na paixão de Cristo (cf. Rm 6,7; 8,13; Cl 3,5).

Completando o v. precedente, este lembra a condição fundamental da liberdade cristã: o Espírito a realiza, crucificando-nos com o Cristo, como Paulo já escreveu a respeito da sua pessoa: “de fato, pela Lei eu morri para a Lei a fim de viver para Deus. Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo por mim!  (2,19-20).

 

Evangelho: Lc 11,42-46

Continuamos a crítica de Jesus à hipocrisia dos líderes religiosos. Lc copia seis lamentações (“ai”) da sua fonte comum com Mt, chamada Q (cf. Mt 23), mas em outra sequência. Lc dirige os primeiros três ais aos “fariseus” (vv. 39-44), depois aos “mestres da Lei” (vv. 46-52); Mt inclui os dois grupos desde o início. A mal-aventurança “Ai” (cf. 6,24-26) é profética (ou fúnebre). Lêem-se séries de ais em Is 5,8-23; Hab 3,6-19; Eclo 2,12-14; Mt 23,13-32.

“Aí de vós, fariseus, porque pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo (v. 42).

Este “ai” é contra a inversão dos valores. O que é mais importante na Lei que os fariseus tanto prezam? A lei só prescreve o dízimo de azeite, vinho, trigo que depois foi aplicado à colheita toda (Nm 18,11-13; Dt 14,22s; Lv 27,30) e, por um exagero dos rabinos, estendido às plantas mais insignificante; discutiam essa obrigação quanto às plantas selvagens. Será que o dízimo de ervas e temperos seja mais importante do que “a justiça (o direito) e o amor (Mt 23,23: misericórdia) de Deus”?

Jesus apresenta aqui uma hierarquia de valores e resumo da lei, como p. ex. em 1,75: “santidade e justiça”; 10,25-37: “amar a Deus e o próximo” (cf. Mq 6,8; Zc 7,9; Is 1,17; Jr 22,3; Os 6,6; Am 5,24; Pr 21,21; Mc 12,28-34p; Rm 13,8-10; Gl 5,14; 6,2; Tt 2,12). Os fariseus, porém, em nome de coisas pequenas sacrificam o importante também exigido pela lei e pelos profetas. Não é preciso esforçar-se para ver aqui a descrição de um tipo humano.

“Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo”. Esta frase falta em vários manuscritos antigos, sem dúvida devido ao o fato de conceder certo valor às práticas legais. É uma regra sapiencial de “fazer isso sem deixar aquilo” (cf. Ecl 7,18). Com isso, Jesus deixa claro que não é contra o dízimo (cf. Ml 3 etc.), mas o dízimo deve ser expressão de justiça e amor de Deus e não ser colocado acima destes. Por outro lado, viver os valores do Reino (justiça, paz…) e procurar o cultivo da vida interior (coração, consciência) também não nos exime das práticas comunitárias de fé e religiosidade. A negligência da vivência exterior da fé também constitui um ato grave porque a religião tende a tornar-se totalmente subjetiva, indo cada vez mais ao encontro dos nossos interesses pessoais e deixando de ser a busca sincera da prática da vontade de Deus e testemunho comunitário de um Deus que é amor e condena o individualismo.

Aí de vós, fariseus, porque gostais do lugar de honra nas sinagogas, e de serdes cumprimentados nas praças públicas (v. 43).

O segundo “ai” atinge a vaidade dos líderes religiosos, atitude própria não só de um grupo específico (cf. 20,26; Mc 12,38s; Mt 23,2.6). Da sua função religiosa, os fariseus deduziram privilégios sociais. Os discípulos enviados por Jesus, porém, não devem perder tempo nem em saudações mútuas nem em homenagens (cf. 10,4) porque estão comprometidos somente com a mensagem.

Aí de vós, porque sois como túmulos que não se vêem, sobre os quais os homens andam sem saber” (v. 44).

O terceiro “ai” combina com a primeira acusação (v. 39). Os túmulos eram marcados com cal, para evitar que os transeuntes os pisassem e se contaminassem. Os fariseus são comparados com túmulos escondidos sobre os quais as pessoas pisam sem se dar conta da contaminação cultual (Lv 21,11; Nm 6,6; 19,11-21; Eclo 34,25). Mt 23,27s destacou mais o contraste entre aparência por fora e podridão por dentro. A aparência da piedade é como máscara, atrás dela esconde-se a cara do sedutor.

A comparação dos hipócritas com o mundo da morte é muito forte, quase macabra: O mundo dos mortos no meio dos vivos; a corrupção e a impureza no meio do povo.  Pode chegar à conclusão que eram extremamente abomináveis e podres e o contato com estas pessoas devia ser evitado para não se contaminar com eles.

Um mestre da Lei tomou a palavra e disse: “Mestre, falando assim, insultas-nos também a nós!” (v. 45).

O próprio Lc inseriu este comentário de um mestre da lei (fariseu ou saduceu) que se sente agredido pelas palavras de Jesus (chamado de mestre de maneira convencional). A crítica dele parece atacar o fundamento da lei judaica e seus representantes. Jesus responde com mais três “ais” dirigidos aos “mestres da lei” (vv. 46-52). A culpa deles é maior ainda do que dos fariseus por que pela sua teoria (interpretação da lei) criam as condições e parâmetros da conduta prática.

A Bíblia do Peregrino (p. 2497) comenta: Nem todos os fariseus eram letrados ou vice-versa; mas os fariseus respeitavam o corpo dos letrados e se esforçavam por escutar e fazer cumprir as decisões destes. Por isso, o ataque de Jesus recai sobre os estudiosos, que se sentem ofendidos.

Jesus respondeu: “Ai de vós também, mestres da Lei, porque colocais sobre os homens cargas insuportáveis, e vós mesmos não tocais nessas cargas, nem com um só dedo” (v. 46).

A resposta de Jesus se refere ao vício dos mestres da Lei de colocar fardos insuportáveis nas costas do povo simples, enquanto para si mesmos sempre encontram saídas (através de bons advogados e brechas na lei como embargos, limiares etc.). Uma reforma no judaísmo queria mais igualdade diante da lei (cf. a regra de ouro, 6,31; Mt 7,12), mas ninguém a expressou com tanta consequência como Jesus. As “cargas insuportáveis” lembram as cargas do Egito (Ex 1,11; 2,11) ou as de Salomão e Roboão (1Rs 12).

Em Mt, Jesus convida a carregar o jugo dele (Mt 11,28s) que é mais leve por ter o amor como lei supremo. Os apóstolos também não querem sobrecarregar os fieis com a lei da circuncisão (At 15,10; Gl 5,1), mas incentivam a carregar “o peso uns dos outros, assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).

O site da CNBB comenta: Continuando a reflexão de ontem, uma vez que o Evangelho de hoje é a continuidade do diálogo iniciado ontem, viver os valores do Reino e procurar o cultivo da vida interior também não nos exime das práticas comunitárias de fé e religiosidade, conforme nos diz Jesus: “Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo”. A negligência da vivência exterior da fé constitui um ato grave porque a religião tende a tornar-se totalmente subjetiva indo cada vez mais ao encontro dos nossos interesses pessoais e deixando de ser a busca sincera da prática da vontade de Deus e testemunho comunitário de um Deus que é amor e condena o individualismo.

 

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