17 de Setembro de 2020, Quinta-feira: E Jesus disse à mulher: “Teus pecados estão perdoados.”

24ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: 1Cor 15,1-11

Hoje e nos próximos dias ouvimos trechos do cap. 15, uma exposição fundamental do apóstolo Paulo sobre a ressurreição em três partes: a ressurreição de Cristo, objeto da profissão de fé das testemunhas (vv. 1-11); a ressurreição dos cristãos correlativa à de Cristo (vv. 12-34); o modo da ressurreição (vv. 35-58).A leitura de hoje nos apresenta uma profissão de fé na ressurreição de Cristo destacando osapóstolos como testemunhas. De fato, nossa fé católica é “apostólica”, ou seja, se baseia no testemunho dos apóstolos.15,1-58

Alguns cristãos da cidade grega de Corinto rejeitavam a ressurreição dos mortos (cf. 15,12). Os gregos a consideravam como concepção grosseira (At 17,32), mas os judeus a tinham aos poucos pressentido (cf. Sl 16,10; Jó 19,25; Ez 37,10) e, mais tarde, explicitamente professado (Dn 12,2s; 2 Mc 7,9; exceto os saduceus, cf. Mc 12,18-27; At 23,6-8 ). Para combater o erro dos coríntios, Paulo parte da afirmação fundamental da pregação evangélica: o ministério pascal de Cristo morto e ressuscitado (vv. 3-4; cf. Rm 1,4; Gl 1,2-4; 1Ts 1,10, etc.) que ele desenvolve enumerando várias aparições do ressuscitado (vv. 5-11; cf. At 1,8).

Irmãos, quero lembrar-vos o evangelho que vos preguei e que recebestes, e no qual estais firmes. Por ele sois salvos, se o estais guardando tal qual ele vos foi pregado por mim. De outro modo, teríeis abraçado a fé em vão. Com efeito, transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber:(vv. 1-3a).

A introdução é solene porque dá lugar ao tema fundamental. Paulo lembra seu primeiro anúncio, a “boa notícia” (=evangelho) que o apóstolo pregou (seu kerigma) aos membros da comunidade; “aceitaram (receberam, abraçaram)” com “fé”, tornando-se “fiéis (firmes)”. O evangelho é “boa notícia”, porque “salva” quem a aceita e “guarda” fielmente (não a despreza nem falsifica, cf. Gl 2,6-9). Não é uma coisa mágica, mas exige a colaboração humana. Paulo também “recebeu” isso: do próprio Jesus como revelação (Gl 1,12) e de outros apóstolos antes dele (Gl 1,18s) como fórmula de fé que ele transmite fielmente. Receber-transmitir é o esquema de uma cadeia de “tradição” (termos tirados do vocabulário técnico da tradição rabínica, cf. 11,23).

A palavra viva do evangelho é transmitida, recebida e guardada (depois de Paulo, esta boa notícia será ainda escrita em forma literária de “evangelhos”, primeiramente por Marcos cerca de 70 d.C.). Mas o “evangelho” é principalmente anunciado (vv. 1.2), proclamado, pregado (v. 11, o kerigma; cf. Mt 4,23, etc.) como objeto de fé (vv. 2.11; cf. Mc 1,15) e caminho da salvação (v. 2; cf. At 11,14; 16,17).Com isso, o caráter salutar da morte de Cristo faz parte da proclamação evangélica anterior a Paulo (cf. Rm 6,3).

Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras; e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze (vv. 3b-5).

É um texto fácil de guardar e recitar em comum. Suas expressões (vv. 3b-4), já fixadas em sua formulação, constituem o germe das futuras profissões de fé (“Credo”; cf. At 13,29-31).

A Bíblia do Peregrino (p. 2762s) questiona: É o germe de elaborações últeriores? É um resumo de muitos ensinamentos? (Faz nos lembrar a profissão de Dt 26,5-10, que outrora se acreditou ser o credo primitivo e germinal dos israelitas e mais tarde se viu que era uma síntese muito madura e decantada).

A profissão de fé é composta de frases breves, bem tratadas em unidade (não mera sucessão). Baseando-sena fórmula confessional do kerigma (“morreu – ressuscitou”, cf. 1Ts 4,14a; At 2,23s.29.32; 3,15; 4,10; 5,30s etc.) desenvolve dois fatos correlativos: morte e ressurreição, ambos “segundo a Escritura” (cf. Lc 24,25-27.45-48; At 13,29-31); morreu não por própria culpa, mas para expiar os “nossos pecados” (e substitui as precedentes expiações; cf. 11,24s; Is 53,12; Mt 26,28; Rm 3,25; Hb 7-10). A sepultura atesta a morte (cf. At 2,29; Paulo não menciona o túmulo vazio), as aparições atestam a vida (ressurreição). A morte é redentora, livra dos pecados porque desemboca na ressurreição; do contrário seria um fracasso incapaz de livrar do pecado (v. 17; cf. Hb 10,11s).

O “terceiro dia” é o tempo de graça e ajuda divina (Os 6,2). Aqui indica também a certeza de que Jesus estava morto, não apenas cataléptico (cf. Jo 11,39). Cristo “ressuscitou” (lit. “foi ressuscitado”, passivo divino: é ação de Deus) e “apareceu” (cf. Gn 12,7; ou: “foi visto”, passivo divino, cf. 9,1). Cefas (pedra,rocha) é o nome hebraico de Pedro. Ele mantém a primazia (cf. Lc24,12.34; Jo 21), também nas aparições. Os “Doze” são o conjunto do colégio dos apóstolos escolhidos por Jesus (embora falte um, Judas; cf. At 1,15-26).

Mais tarde,apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma vez. Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram(v. 6).

Ao Credo de vv. 3b-5, provavelmente o próprio Paulo acrescenta mais testemunhas de outras tradições antigas: os “quinhentos irmãos de uma vez”, não mencionados em outros relatos da ressurreição (gostaríamos saber mais sobre isso). Alguns exegetas vêem aqui o cerne histórico de Pentecostes (At 2,1-4), mas pode estar ligado ao ministério inicial de Jesus na região da Galileia e relacionar-se com a tradição atestada em Mc 14,28p.

“A maioria ainda vive”, Paulo quer dizer: muitos podem hoje ainda testemunhar o que viram (a fé na ressurreição de cristo repousa sobre um testemunho seguro). “Alguns já morreram”, lit. “adormeceram”: mesma expressão nos vv. 18,20.51 (cf. 1Ts 4,13).

Depois, apareceu a Tiago e, depois, apareceu aos apóstolos todos juntos (v. 7).

Tiago aqui não é o filho de Zebedeu nem o de Alfeu (Mc 3,17s), mas um parente da família de Jesus, o “irmão do Senhor” (cf. Mc 6,3p) que sucede a Pedro em Jerusalém como líder dos judeu-cristãos (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-26; Gl 1,19; 2,9.12; Tg). “Todos os apóstolos”, os apóstolos assim entendidos constituem um grupo mais numeroso do que os Doze do v. 5; são os primeiros missionários oficiais (cf. Rm 16,7 e Barnabé e Paulo em At 13,1-3; 14,3-5.14).

Nesta série,Paulo não menciona as mulheres dos relatos evangélicos (Mc 16,1-8p; Jo 20,1s.11-18), talvez o motivo da omissão seja o fato de queas mulheres não eram reconhecidas como testemunhas qualificadas na época (cf. Lc 24,11).

Por último, apareceu também a mim, como a um abortivo.Na verdade, eu sou o menor dos apóstolos, nem mereço o nome de apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus (vv. 8-9).

Frente a Lucas, que encerra essa etapa de aparições com a ascensão, Paulo a alonga até a visão de Damasco:e “a mim”. Paulo acrescenta-se, em pé de igualdade, na lista das demais testemunhas, embora no último lugar da fila (Ef 3,8) e encerrando a série (sua conduta precedente reforça seu testemunho: do perseguidor ao apóstolo, cf. vv. 9s); “como a um abortivo” alude ao caráter anormal, violento, “cirúrgico” da vocação de Paulo. Talvez Paulo tenha retomado aqui um palavrão aplicado a ele pelos adversários (cf. “eunuco” em Mt 19,12). Em Lc 24,51 e At 1,9s, é a ascensão do Senhor que encerra a série de aparições; seu autor, Lucas, não chama mais Paulo de apóstolo (limitando o título aos Doze, cf. At 1,21s; exceto em At 13,1-3; 14,4.14), mas de testemunha escolhida (cf. At 9,15 etc.).

O próprio Paulo, porém, não faz diferença alguma entre a aparição (melhor: visão e audição) na estrada de Damasco e nas aparições de Jesus como seu corpo ressuscitado até a ascensão. Para ele, o encontro com Jesus (elevado no céu) em Damasco foi o fundamento da sua fé e do seu apostolado (cf. At 9; 22; 26; Gl1,1.15s; 1Cor 1,1; 9,1; Fl 3,5-11) que ele precisava afirmar constantemente contra adversários que negaram de ele ser um “apóstolo” (cf. 2Cor 10-12).

É pela graça de Deus que eu sou o que sou. Sua graça para comigo não foi estéril: a prova é que tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos – não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo. É isso, em resumo, o que eu e eles temos pregado e é isso o que crestes (vv. 10-11).

Paulo falou de aborto não porque é prematuro, mas pela falta de vida. Em contraste, apresenta a vitalidade do seu apostolado, pela graça de Deus. Ele aplica a si o critério de discernimento dos espíritos: “Pelos frutos os reconhecerão” (Mt 7,17-20p). Seu trabalho apostólico “prova” que ele é um apóstolo verdadeiro, não um impostor: “tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos – não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo.”

O que soa como auto-elogio, foi provocado pelos adversários que questionam o que ele é, “apóstolo”(cf. 2Cor 10-12). Mas Paulo sabe por experiência que o dom de Deus é gratuito e que o homem colabora com ele (2Cor 11). Não se aprofunda aqui o problema de coordenar a ação divina com a liberdade humana: isso caberá a teólogos posteriores.

“O que eu e eles temos pregado e é isso o que crestes” (v. 11). A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2225) comenta: A afirmação preciosa do ponto de vista ecumênico: todas as testemunhas de Cristo ressuscitado proclamam a mesma mensagem; e todos os fiéis professam a mesma fé. Por isso é impossível não procurar esta unanimidade quando perdida.

 

Evangelho:Lc 7,36-50

Ouvimos uma narrativa própria de Lc sobre uma pecadora anônima ungindo os pés de Jesus. Porque Lucas inseriu aqui esta história de pecadora perdoada? Provavelmente porque se une com o que procede em vários detalhes (cf. evangelhos dos dias anteriores): o julgar e condenar o próximo (6,37); a pecadora corresponde aos “publicanos”, considerados pecadores porque cobravam impostos para os romanos pagãos (7,29; cf. 3,12s); seria uma das arrependidas e batizadas por João que dão razão a Deus com seu arrependimento (v. 29); Jesus come e bebe, é amigo de pecadores (v.34).

Um fariseu convidou Jesus para uma refeição em sua casa.Jesus entrou na casa do fariseu e pôs-se à mesa(v. 36).

Em Lc, Jesus aceita dos fariseus convites para refeições (11,37; 14,1) e aproveita a ocasião para ensinar. O anfitrião é correto e cortês, mas não é cordial: não presta deferências extraordinárias como vemos depois (vv. 44-46; cf. Gn 18,4; Sl 23,5). Pretende também provar Jesus em sua conduta e doutrina? O fariseu é identificado depois com o nome de Simão (v. 40).

Certa mulher, conhecida na cidade como pecadora,soube que Jesus estava à mesa, na casa do fariseu.Ela trouxe um frasco de alabastro com perfume,e, ficando por detrás, chorava aos pés de Jesus;com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés,enxugava-os com os cabelos,cobria-os de beijos e os ungia com o perfume(vv. 37-38).

Nisso “certa mulher”, depois caracterizada como “pecadora” da cidade, provavelmente uma prostituta, irrompe na sala (cf. Os 1,2; 3,1). Jesus e seus conterrâneos nunca se sentaram à mesa, como se costuma traduzir, mas “deitaram-se” à mesa. Conforme o costume de época, os comensais estavam reclinados em almofadas, com a cabeça para frente e os pés para fora, portanto os pés de Jesus estavam a mostra por trás dele. Embora a sala do banquete estivesse aberta, era muito pouco decoroso que tal mulher entrasse na casa de tal anfitrião; os fariseus eram muito cautelosos nesses assuntos. O termo “fariseu” significa “separado” (dos pecadores, da impureza), era provavelmente um apelido(cf. “crente”), eles mesmos se chamavam “companheiros” (haverim).

O que a mulher faz depois com Jesus é tão afetuoso quanto escandaloso: na presença de homens, soltar os cabelos, enxugar com eles os pés banhados em suas lágrimas, o esbanjamento do perfume embora não o derrame na cabeça, como era costume. Ela devia ter a intenção de ungir a cabeça (homenagear Jesus como messias = ungido; cf. Mc 14,3-9p), mas para isso não teve tanta coragem nem tanto acesso na casa do fariseu. E Jesus a deixa fazer sem rejeitá-la nem opor resistência.

Vendo isso, o fariseu que o havia convidadoficou pensando:“Se este homem fosse um profeta,saberia que tipo de mulher está tocando nele,pois é uma pecadora”(v. 39).

O anfitrião se escandaliza, mas por cortesia se abstém de manifestá-lo em voz alta, apenas “ficou pensando”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2477s) comenta: Pronuncia um juízo mental.Se Jesus não adivinha a profissão da mulher, não possui a clarividência própria de um profeta (não pensa na outra parte: se conhece a profissão dela é culpado por omissão, por deixar fazer; a omissão é mais grave que a ignorância). Mas Jesus adivinha o pensamento dele, e com isso rebate o julgamento sobre ele, e lhe responde em voz alta, corrigindo assim o seu juízo sobre a mulher.

Jesus é mais do que “profeta” (cf. vv. 16.18-23). Numa refeição anterior com pecadores (5,29-32), Jesus respondeu à crítica dos fariseus comparando-se com um “médico” (cf. 4,23) que não veio para os que têm saúde (justos), mas para os doentes (pecadores).

Jesus disse então ao fariseu:“Simão, tenho uma coisa para te dizer.”Simão respondeu: “Fala, mestre!”(v. 40).

O nome do fariseu chama atenção. Em diversos trechos paralelos, Mc ou Mt escreveram contra os fariseus, mas Lc parece visar os próprios líderes cristãos, assim aqui também: Simão é o primeiro nome de Pedro (4,38; 5,1-11)

Mas em Mc 14,3p acontece uma unção de Jesus antes da sua paixão (cf. Jo 12,1-8): “Enquanto Jesus estava na casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher, trazendo um frasco de alabastro com perfume…“Lc omitiu esta unção antes da paixão, antecipou-a mudando a unção da cabeça para os pés e transformando Simão num fariseu, visando assim também as lideranças da igreja.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: O recurso é contar uma parábola para distanciar e ao mesmo tempo comprometer o fariseu: terá de julgar o caso, como mentalmente o julgou. No fim, o juiz será julgado; como Davi (2Sm 12) ou jurado na canção vinha (Is 5,1-7).

”Certo credor tinha dois devedores;um lhe devia quinhentas moedas de prata, o outro cinquenta.Como não tivessem com que pagar, o homem perdoou os dois.Qual deles o amará mais?”Simão respondeu:“Acho que é aquele ao qual perdoou mais.”Jesus lhe disse:“Tu julgaste corretamente”(vv. 41-43).

A parábola é brevíssima e a solução é óbvia. “Quinhentas moedas de prata” são 500 diárias, uma grande quantia.

O “acho” do fariseu pode exprimir modéstia ou sarcasmo, desconfiado por ter caído na armadilha do carpinteiro esperto. O fariseu entrou no jogo, agora não pode evitar a aplicação. Abre-se outro julgamento sobre a mulher no qual, por comparação, o fariseu está implicado.

Então Jesus virou-se para a mulher e disse a Simão:“Estás vendo esta mulher?Quando entrei em tua casa,tu não me ofereceste água para lavar os pés;ela, porém, banhou meus pés com lágrimase enxugou-os com os cabelos.Tu não me deste o beijo de saudação;ela, porém, desde que entrei, não parou de beijar meus pés.Tu não derramaste óleo na minha cabeça;ela, porém, ungiu meus pés com perfume (vv. 44-46).

O contraste triplo dá relevo às mostras de um afeto intenso e incontido. Lavar os pés ao hospede foi costume patriarcal (Gn 18,4; 19,2; 24,32; e posterior 1Sm 24,41). Ungir (a cabeça) também era costume (Sl 23,5; 141,5; cf. Mc 14,3p). Os gestos citados não eram obrigação do anfitrião, o fariseu agiu corretamente, mas a mulher demostrou mais amor

Por esta razão, eu te declaro:os muitos pecados que ela cometeu estão perdoadosporque ela mostrou muito amor.Aquele a quem se perdoa pouco mostra pouco amor”(v. 47).

O fariseu não se considera pecador; por isso, fica numa atitude de julgamento, e não é capaz de entender e experimentar o perdão e o amor. Jesus mostra que a justiça de Deus se manifesta como amor que perdoa os pecados e transforma as condições das pessoas. O amor é expressão e sinal do perdão recebido.

A Bíblia do Peregrino (p. 2478) comenta: Na parábola e na sua aplicação, todos os intérpretes e muitos leitores têm observado uma estranha incoerência, que podemos resumir assim: ama muito, porque lhe perdoaram muito (parábola); foi-lhe perdoada muito, porque amou muito (aplicação). Note-se que “amar” pode equivaler a “agradecer” (que em hebraico se exprime com o verbo “brk”). Substitui-se o “porque” por “posto que, sinal que” de manifestação. No Salmo 116 o orante pronuncia: “Amo” (v. 1), “acreditei” (v. 10) e pergunta: “Como pagarei o Senhor por todo o bem que me fez?” (v. 12), mas não fala de arrependimento.

Talvez a explicação se obtenha considerando as duas realidades, amor e perdão, como correlativas, que se implicam mutuamente. Tentemos explicá-los brevemente. Alguém pode arrepender-se de ter violado uma norma objetiva (respeito pela ordem), ou porque vê sua indignidade (vergonha de si), ou por ter ofendido outra pessoa sem razão. O terceiro caso implica estima (um aspecto de amor) por tal pessoa. Quem pede e espera obter perdão, estima o ofendido, sente-se atraído por ele (amor e fé confiante). Obtido o perdão, no afeto do agradecimento, o amor se desenvolve sem empecilhos …

Jesus insinua que os fariseus tenham pouco de que ser perdoados? Em termos de lei e observâncias, talvez. Mas a religiosidade deles é mesquinha, calculista, não entra de cheio na dimensão do amor. Quem entrou no reino recebeu o perdão por pura graça e tem de viver em puro agradecimento.

A ambuiguidade da resposta de Jesus reflete-se no problema dogmático da iniciativa de Deus (graça, perdão) e da colaboração humana (amor, obras).

E Jesus disse à mulher: “Teus pecados estão perdoados.”Então, os convidados começaram a pensar:“Quem é este que até perdoa pecados?”Mas Jesus disse à mulher:“Tua fé te salvou. Vai em paz!”(vv. 48-50).

Seguindo a lógica da parábola, é evidente que os pecados da mulher já “estão perdoados”, por isso demonstrou muito amor. Jesus confirma isso (enquanto em 5,20 perdoou os pecados no momento da declaração). A forma passiva (teológica) indica que Deus perdoou, já pela atuação do Batista. Então, por que agradecer a Jesus? – Porque é ele que confirma e atualiza o perdão com autoridade e dá sentido ao batismo de João.

Não é que o amor dela tem conseguido o perdão. Pela “fe”, ela aceitou o perdão afetuoso de Jesus (de Deus) que a “salvou” (cf. João Batista como precursor em 1,77)

Jesus pronuncia a fórmula da absolvição, sancionando a reconciliação (Sl32,1; 103,3). Isso provoca admiração ou um segundo escândalo, mais grave do que o primeiro, porque atinge a missão e a revelação de Jesus:“Quem é este que até perdoa pecados?” (cf. 5,21). Mas Jesus não se importa com os adversários, ele despede a mulher com a fórmula convencional: “Vai em paz!”, destacando a importância da “fé” (e não das obras da lei, cf. a teologia de Paulo contra a dos fariseus em Gl 2,16 etc.; cf. a aceitação do pecador ao contrário do fariseu em Lc 5,27-32; 18,9-14), como a mulher hemorroíssa em 8,48p e o cego em 19,42p.

Esta fórmula da paz já parece ter prática litúrgica, se carregou de sentido transcendental e passou aos sacramentos da penitência e eucaristia.

O site da CNBB comenta: “Dize-me com quem andas e eu direi quem és!” A partir deste ditado, vemos as relações de exclusão que são estabelecidas entre os “santos” e os “pecadores”. E claro que quem é “santo” não pode conviver com os “pecadores”, pois correrá o risco de se contaminar e se tornar um deles. Esta é a lógica da mentira e do farisaísmo que marca a vida de muitos de nós. Ninguém é “santo”, pois só Deus é Santo, e o pecado marca a nossa existência, e quem disser que não é pecador, é mentiroso, logo não somos melhores que ninguém. Se uma pessoa é reta de coração, deve conviver com todos para que possa testemunhar a todos o amor de Deus, a vivência na busca da santidade, e assim colaborar com a conversão dos pecadores.

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