18 de Abril de 2021, 3º Domingo da Páscoa – Mas Jesus disse: “Por que estais preocupados, e porque tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”.

 3º Domingo do Tempo Pascoal  

1ª Leitura: At 3,13-15.17-19

Como 1ª leitura, continuamos ouvir dos Atos dos Apóstolos, hoje a segunda pregação de Pedro na ocasião da sua cura de um paralítico de nascença (cf. vv. 1-10). Pedro aproveita o povo judeu reunido e assombrado para pronunciar outra pregação. Como no primeiro discurso no dia de Pentecostes (2,14-36; cf. leitura da segunda feira passada), o centro do kerigma (anúncio apostólico primitivo) é a morte e ressurreição de Jesus: “Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou” (v. 15; cf. 2,23-24).

(Naqueles dias, Pedro se dirigiu ao povo, dizendo:) “O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus de nossos antepassados glorificou o seu servo Jesus. Vós o entregastes e o rejeitastes diante de Pilatos, que estava decidido a soltá-lo. Vós rejeitastes o santo e o justo, e pedistes a libertação para um assassino. Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso nós somos testemunhas (vv. 12-15),

Antes Pedro esclarece que não foi seu próprio poder ou piedade que realizou a cura (v. 12); fala depois do “Deus de Abraão, Isaac e Jacó” (Ex 3,6.15…), “que glorificou o seu servo Jesus” (v. 13; cf. v. 26; 4,27.30). Os cristãos reconhecem em Jesus o misterioso Servo sofredor de Javé em Is 52,13-53,12 (citado por At 8,32-33; cf. Lc 22,27.37). “O santo e o justo” (em oposição ao assassino Barrabás (v. 14; cf. 7,52; 22,14; cf. Is 53,11; Sb 11,1; Mt 27,19; Lc 23,47; 1Pd 3,18; 1 Jo 2,1) foi rejeitado, mas é o “autor da vida” que mataram (v. 15; cf. 5,31; Hb 2,10; 12,2). Deus, porém, o ressuscitou, disso os apóstolos são “testemunhas” (v.15; 1,8.22; 2,32; 10,41; 13,31).

Nossa liturgia saltou o v. 16 que faz referência a cura do paralítico pela “fé no nome de Jesus” (cf. v. 6; 4,10-12; 2,38 etc.); “a fé que vem por meio de Jesus” é dom de Deus (cf. Mt 16,17).

E agora, meus irmãos, eu sei que vós agistes por ignorância, assim como vossos chefes. Deus, porém, cumpriu desse modo o que havia anunciado pela boca de todos os profetas: que o seu Cristo haveria de sofrer. Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados (vv. 17-19).

Como é bom saber que Deus nao pensa em vingança, mas em perdão. Lc, o autor dos Atos, vê a salvação de todos como possibilidade (cf. Origines, Rahner, Baltasar) que vale até para bandidos e preseguidores (por ex. o criminoso na cruz e o perseguidor Saulo, cf. Lc 23,39-43; At 9), também para os chefes que condenaram Jesus e o povo que gritava “crucifique-o” (cf. Lc 23,23).

Igual a Jesus na cruz, Pedro leva em conta a ignorância como atenuante e desculpa (v. 17; Lc 23,34: “não sabem o que fazem”), mas só se pode livrar dela através da conversão: “Arrependei-vos, portanto e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (v. 19). Com o mesmo apelo, João Batista chamou para o batismo (Lc 3,3p), Jesus para o Evangelho do Reino (Mc 1,15), e Pedro batizou os peregrinos no dia de Pentecostes (cf. 2,38).

 

2ª Leitura: 1 Jo 2,1-5a

Continuamos ouvir a 2ª leitura de 1Jo que nos fala hoje obre a expiação dos pecados pelo sacrifício de Jesus e a relação entre teoria (“conhecimento”) e prática (“amor” de Deus e ao próximo).

Meus filhinhos, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro. Para saber que o conhecemos, vejamos se guardamos os seus mandamentos (vv. 1-3).

“Filhinhos” é expressão afetuosa do pastor que exorta com solicitude seus fiéis na fé (vv. 12.18.28 etc.). O eixo é a oposição pecar/cumprir seus mandamentos. Em torno do eixo situam-se duas realidades em posição assimétrica. Ao cumprimento se associam o “conhecimento” (vv. 3-4) e o “amor” (v. 5) de Deus. Ao pecado são concedidos perdão e “expiação” pela mediação de Jesus Cristo. Agora “o Justo” é Jesus (em 1,9 era Deus) por sua obra de justificação dos pecadores, em plena fidelidade ao desígnio de Deus (cf. Lc 23,47; At 3,14; 7,52; 22,14; Mt 27,29,19; 1Pd 3,18).

Jesus é paracletos, “advogado, defensor, consolador” (cf. Lc 2,25; 21,14s; 23,24; esse título é dado ao Espírito Santo em Jo 14,16.26,15,26; 16,7) intercedendo pelos pecadores diante de Deus. Ao dizer “do Pai” sem possessivo, considera-o de Jesus e nosso. Jesus é a “vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também do mundo inteiro” (4,10; cf. Jo 1,29: “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”; cf. Rm 3,25; Ap 5,9s).

Este termo “expiação” vem do ritual sacrifical do AT (cf. Ex 29,36s; etc.) e evoca o sacrifício voluntário de Jesus na cruz. No Dia da Expiação (Yom kippur, hoje o feriado maior dos judeus), o propiciatório (a tampa da arca da aliança, cf. 25,17) era aspergido com sangue animal (Lv 16,15). O sangue de Cristo (1,7; 5,6.8) cumpriu na realidade a purificação do pecado que este rito judaico só podia significar, mas não realizar (Hb 9,7-14; cf. o sangue da aliança em Mt 26,28; Ex 24,8).

A Bíblia do Peregrino (p.2925) comenta: Começam aqui outros dois procedimentos de estilo frequente na carta. a) “Quem… aquele que…” serve para determinar e qualificar uma atitude, a eleva quase a aforismo (2,4.6.9.10.11.15.22.23 etc.). b) A explicação “nisso conhecemos…, sabemos…” expressa a preocupação do autor em dissipar mal-entendidos, de dar sinais e critérios reconhecíveis (2,3.5.29; 3,2.10.14.16.19.24). As séries não discorrem com rigor, e mais de uma vez sujeitos e predicados se cruzam. Nesse parágrafo, o critério é cumprir os mandamentos (como em Jo 14,21; 15,10).

Quem diz: “Eu conheço a Deus”, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele. Naquele, porém, que guarda a sua palavra, o amor de Deus é plenamente realizado (vv. 4-5a).

“Conhecer a Deus” segundo a acepção bíblica do termo (cf. sobretudo na aliança nova em Jr 31,34; cf. mais adiante 1Jo 2,13), não é somente ter dele uma noção abstrata, mas entrar em relação pessoal e viver em comunhão com ele.

O autor mostra aqui tudo o que tal conhecer a Deus implica. Diante do perigo que ameaça os cristãos joaninos de se evadirem para as especulações religiosas (gnosis, conhecimento, saber; cf. 2,18-23), o autor se mostra empenhado em que a fé configure (informe) realmente toda a sua existência.

Em Jo, a “verdade” não é teoria, mas prática, fazer a verdade (1,6). No AT, “fazer a verdade” designa o comportamento conforme a lei. Para Jo, a verdade é a Palavra de Deus (cf. 1,10) anunciada por Jesus; no seu evangelho, a verdade é associada/identificada ao Pai (18,37s), ao Filho (14,6) e ao Espirito Paráclito (14,6s.26; 15,26; 16,7.13).

Este conhecimento ligado ao mandamento do “amor” (Os 2,21-22; 4,1; 6,6) é a fé em Jesus, que empenha todo o modo de agir (3,23; 5,1), de tal sorte que este se torna o critério para se reconhecer a vida em Cristo (v. 5; 3,10; 4,13; 5,2). O critério de um conhecimento de Deus autêntico é a prática dos seus mandamentos, ou seja, essencialmente, o amor ao próximo. A verdade do conhecimento se mostra na prática da conduta (cf. Jo 13,34s).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1498) comenta: No ambiente em que a carta foi escrita, havia uma busca ansiosa por conhecer a Deus e mergulhar nele. Ora, o fundamental nessa busca é a observância dos mandamentos, sendo o mais importante deles o expresso em Jo 13,34-35: o amor entre os membros da comunidade. A vida de fé acontece quando não produz egoísmo e isolamento, e sim quando espalha solidariedade.

 

Evangelho: Lc 24,35-48

Neste terceiro domingo da Páscoa ouvimos pela terceira vez de uma aparição do ressuscitado, desta vez narrada por Lucas.

Os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão. Ainda estavam falando, quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!” (vv. 35-36).

Como primeira aparição, Lc narra como Jesus apareceu a dois discípulos a caminho à roça de Emaús (cf. vv. 13-33). Retornando de Emaús a Jerusalém, os dois discípulos encontraram a comunidade e contaram a aventura do encontro com Jesus.

“Ainda estavam falando”, quando Jesus vem pessoalmente encontrar-se com os seus apóstolos. Uma outra aparição a Simão Pedro foi apenas mencionada em v. 34: “O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão”; cf. 1Cor 15,5: “apareceu a Céfas (=Pedro) e depois aos doze”. Lc mescla as tradições de Paulo e de Marcos (Galileia, roça), como já fez na instituição da Eucaristia (cf. 22,29s).

O próprio Jesus interrompendo a fala deles, “apareceu no meio deles e disse: A paz esteja convosco” (v. 36). É a saudação comum dos judeus, shalom aléhem, mas ganha um sentido mais profundo na boca do ressuscitado que venceu os inimigos mais profundos (pecado, morte, diabo; cf. 2,29; 19,42; At 10,36; Jo 14,27; 20,19-21.26).

Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma (v. 37).

Jesus chega de modo tão inesperado que eles pensam que é um “fantasma”. É a mesma reação, quando Jesus caminhava sobre as águas (símbolo do caos e da ameaça mortal) em Mc 6,49s (omitido por Lc no contexto).

Mas Jesus disse: “Por que estais preocupados, e porque tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”. E dizendo isso, Jesus mostrou-lhes as mãos e os pés. Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos. Então Jesus disse: “Tendes aqui alguma coisa para comer?” Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles (vv. 38-43).

Jesus mostra-lhes os sinais reais da paixão: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo”. O corpo que foi traspassado, pregado na cruz, sepultado, agora está vivo. É o corpo da mesma pessoa, mas agora transformado pelo poder de Deus. Ainda assim os discípulos “não podiam acreditar” (cf. Mt 28,17). É preciso de uma prova mais forte, mais material (também em Jo 20,19-29 há duas demonstrações: os discípulos veem as mãos do ressuscitado e Tomé ainda pode tocar nas marcas dos cravos; o peixe assado reencontramos em Jo 21,9-14).

Os leitores gregos e romanos da comunidade de Lucas (também autor dos Atos) estavam acostumados com a ideia de um Hades (um reino de sombras onde continuam as almas após a morte). Mas acreditar numa ressurreição de corpo (carne) era difícil para eles aceitarem (cf. a reação dos filósofos em Atenas em At 17,32). A ressurreição por agora nem estava no horizonte da fé judaica porque a esperava apenas no fim dos tempos (cf. Jo 11,24) como uma transformação completa da vida (cf. Dn 12,1-4).

Por isso, Lc quer “provar” que Jesus ressuscitado não é só uma alma, um fantasma, mas tem corpo, comendo “um pedaço de peixe assado” (v. 42). A ressurreição não é um mito nem um fantasma, nem um delírio dos apóstolos ou das mulheres (cf. v. 11). É um fato histórico e transcendental ao mesmo tempo, um evento real que mudou a vida de Cristo, transformou a vida dos primeiros apóstolos e ainda hoje repercute positivamente para a salvação do mundo. “O evento da ressurreição introduz uma nova dimensão de vida, uma abertura deste nosso mundo para a vida eterna” (Bento XVI).

Depois disse-lhes: “São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos profetas e nos salmos”. Então Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras, e lhes disse: “Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (vv. 45-48).

Em seguida, Jesus explica a novidade de sua situação. Sua morte na cruz não era um acidente na história humana, mas corresponde ao plano de Deus expresso nas escrituras: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos” (v. 44; cf. v. 26). Temos aqui a divisão judaica das três partes do Antigo Testamento (AT): a “lei de Moisés” (Torá ou em grego Pentateuco: Gn a Dt), os “profetas” (Js; Jz; 1-2Sm; 1-2Rs e os livros proféticos) e “salmos” (como exemplo dos livros sapiências). A Bíblia hebraica é chamado de TNQ (Torá – lei, Nebiim- profetas, Quetibum – escritos). A divisão da Bíblia cristã (católica e ortodoxa) separa dos profetas e escritos sapienciais uns “livros históricos” (Js; Jz; 1-2Sm; 1-2Rs; 1-2Cr; Esd, Ne) e incluiu mais sete livros da tradição grega que eram conhecidos e usados pelos evangelistas (cf. Mt 1,23).

O evangelista Lc, porém, resume como nos vvv. 25-27 e não cita quais os textos da Bíblia Hebraica falam que “o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia” (vv. 26.44; 9,22; 17,25). Só podemos pensar numa síntese de Dt 18,15.18 (cf. At 3,22); Is 42,1-4; 49,4.6; 50,4-9; 52,13-53,12 (citado em At 8,32-33); Dn 12,2s; Os 6,2; Zc 12,10; 13,7; Sl 22,30; 73,17.24s (cf. LXX: Sb 2; 2 Mc 7).

Então, os discípulos compreenderam as Escrituras (cf. v. 27) e foram constituídos “testemunhas” do ressuscitado (vv. 45.48). A Igreja é “católica” (= para todos, não só para judeus, mas para todas as nações e categorias) e “apostólica” (nossa fé baseia-se no testemunho dos apóstolos) e transmite a “remissão dos pecados” (no batismo, cf. At 2,28; Jo 20,23). No “nome” de Jesus “serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (vv. 47-48; Lc já pensa no roteiro do seu segundo volume, os Atos dos Apóstolos, cf. At 1,8). Em Jesus, todas as pessoas poderão ser refeitas.

Significa que também para nós é possível passar de uma vida velha para uma vida nova. É preciso continuar vivendo, depois das festas da páscoa, mas não dando continuidade à vida velha. Viver sim, mas dando um passo novo. É possível depois da ressurreição algo maravilhoso no mundo, que os sofrimentos e as misérias sejam elevadas, sejam transfiguradas em alegria e eternidade.

O site da CNBB comenta: Quando a comunidade está reunida, realiza-se a experiência pascal, a experiência da presença do Ressuscitado. Esta presença é a manifestação do Deus da Paz, o Deus real, o Deus vivo e verdadeiro, do Deus que é solidário com os homens e está sempre participando de suas vidas, mesmos que eles não sejam capazes de perceber isso. Não é a manifestação de um fantasma qualquer. Esta experiência comunitária da presença do Ressuscitado faz com que a comunidade se torne evangelizadora, testemunha de todos os valores pelos quais Jesus morreu e ressuscitou, se torne testemunha de que de fato Jesus é o Filho do Deus vivo, que cumpriu plenamente a vontade do Pai.

 

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