18 de dezembro de 2016 – Advento 4º Domingo Ano A

1ª leitura: Is 7,10-14; 8,10

A 1ª leitura diz respeito à concepção virginal do messias, anunciado por Isaías, precisamente na sua tradução grega. Vejamos o contexto.

Esta leitura da profecia de Isaías faz parte do chamado “Livro de Emanuel” que são os capítulos 7-12, uma composição regida por vários princípios. Os materiais pertencem à guerra de Damasco e Israel (menos 9,7-10,4, que pertencem à etapa de Senaquerib). São princípios de organização: a) os sinais; b) alternância invasão-libertação; c) os nomes próprios: além de “Emanuel”, os dois filhos do profeta, “Pronto Saqueio” (8,1-4) e “Um Resto Voltará” (7,3; cf. 4,3; 10,20-23).

Sinal central e nome emblemático é o menino chamado “Emanuel” = “Deus conosco” (8,10; Mt 1,23). É enunciado em 7,14s e compreende quatro motivos repetidos no conjunto em ordem inversa: nascimento (9,5); nome (8,10); dieta (7,22); uso da razão (7,16). O tema central deste capítulo é: a dinastia davídica está ameaçada; da parte de Deus, está garantida pela promessa (2 Sm 7); da parte do monarca e do povo, o princípio de subsistência é a fé (7,9).

Era durante a guerra siro-efraimita em 736-735 a.C. (cf. 2Rs 16; 2Cr 28). O Reino do Norte (Efraim; capital: Samaria), cujo rei era Facéia, se aliou a Rason, rei de Aram (capital: Damasco), numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o Reino do Sul (Judá; capital: Jerusalém) não participou da coalizão entre o Reino do Norte e Aram, estes dois temiam que Judá se tornasse aliado da Assíria. Resolveram atacar o Reino do Sul para destronar a dinastia davídica com seu rei Acaz e colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro (7,1-2.4-6).

Acaz teme o cerco e verifica a reserva de água da cidade de Jerusalém (v. 3). O profeta Isaías vai a seu encontro e o tranquiliza, mostrando que não haverá perigo (vv. 7-9), pois continua válida a promessa de que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque total confiança (fé) no Senhor Javé que fala através do profeta: “Quem não crê, não sobrevive” (v. 9).

O Senhor falou com Acaz, dizendo: ”Pede ao Senhor teu Deus que te faça ver um sinal, quer provenha da profundeza da terra, quer venha das alturas do céu”. Mas Acaz respondeu: ”Não pedirei nem tentarei o Senhor” (7,10-12).

Em Is, um “sinal” (vv. 11.14) não é necessariamente um milagre, mas sempre um fato que o interlocutor pode ter sobre os olhos imediatamente ou pouco depois e que deve ajudá-lo a esperar um acontecimento mais longínquo no tempo (cf. 8,18; 20; 37,30; 38,7-8). A oposição entre as “profundezas da terra” e as “alturas do céu” sublinha o caráter solene da proposta e a importância da situação (v. 11; cf. Dt 33,13; Jo 11,8). Sinais do céu podem ser estelares ou meteoros; do abismo, devem estar relacionados com os mortos (cf. o sinal de Jonas em Mt 12,39-41).

O homem não pode exigir sinais, pode pedi-los. Se Deus os oferece, o homem deve aceitá-los. O rei se recusa por falsa humildade, que encobre uma fé vacilante. Referindo-se a Ex 17,2, Acaz falta com o respeito à vontade de Deus, evitando a opção pela confiança incondicional nesse Deus cujo poder atinge todo o universo (céu e terra).

Disse o profeta: ”Ouvi então, vós, casa de Davi; será que achais pouco incomodar os homens e passais a incomodar até o meu Deus? Pois bem, o próprio Senhor vos dará um sinal. Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel” (7,13-14).

No texto original escrito em hebraico, o sinal dado pelo próprio Senhor é o nascimento de um filho de uma “mulher jovem” (não necessariamente de uma “virgem” como traduz a liturgia de hoje). A palavra hebraica ‘Imh significa simplesmente “jovem, moça”, provavelmente Isaías pense na esposa jovem do rei Acaz (2Rs 16) que “conceberá”. Esse menino que está para nascer é sinal de que Deus permanecerá no meio do seu povo (Emanu-El = Deus conosco) apesar da situação crítica da cidade de Jerusalém ameaçada pelos inimigos. Seu nome “Emanuel” significa “Deus está conosco” (v. 14; 8,9s; 41,10). Deus está com seu povo e seus líderes (Dt 20,1; 1Rs 8,57; Gn 26,3; 18,15; 29,32 Ex 3,12; Dt 21,23; Js 1,5; Jr 6,12; 1Sm 16,18; 18,14; 2Sm 7,9; 2Rs 18,7; Jr 1,8). Deus não abandonará, mas dará a vitória a Judá e a dinastia de Davi permanecerá (2Sm 7,12-16). O menino herdeiro é Ezequias (2Rs 18-20) que assegurará a continuidade da dinastia.

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta o nome Emanuel: Na época, isso poderia ser apenas um grito de guerra: antes de atracar, o comandante gritava três vezes “Emanu” (conosco), e os soldados, “El” (Deus). É o sinal da vitória na guerra.

Bem mais tarde, no século III a.C., começou-se traduzir a Bíblia Hebraica para o grego, língua mais difundida na região. Na cidade de Alexandria no Egito (fundada pelo grego Alexandro Magno) havia uma comunidade grande de judeus que não falava mais o hebraico. Pela lenda, esta tradução grega foi realizada nesta cidade por “setenta” sábios (daí seu nome: LXX, em latim “septuaginta”). Na tradução grega de Is 7,14, escolheram a palavra grega parthenos: “virgem”, em vez de “jovem, moça”; assim passa para a tradição cristã, que aplica a profecia à “virgem” Maria (Mt 1,23). Mt 1,18-25 (evangelho de hoje) e Lc 1,26-34 descrevem o nascimento de Jesus, “concebido pelo Espírito Santo e nascido da virgem Maria” (Credo apostólico), correspondendo às profecias antigas sobre a origem do messias (Mt 1,23 cita Is 7,14 grego).

Obs.: O uso da tradição grega do AT (LXX) por Mt 1,23 demonstra que os próprios evangelistas consideravam esta tradução grega como Sagrada Escritura. Na época, ainda não havia uma norma (cânone) que determinasse quais escritos deviam fazer parte da Escritura e quais não. Havia discussão: os saduceus consideravam apenas os primeiros cinco livros (Pentateuco), ou seja, a Lei (Torá) de Moisés como Escritura sagrada, os fariseus pensaram diferente (cf. At 23,8).

No sínodo de Jâmnia no ano 90 d.C., as únicas autoridades judaicas que restavam depois da guerra judaica foram os rabinos do partido dos fariseus que, na tentativa de restaurar as bases de Israel, declararam como Escritura Sagrada os livros em hebraico (Bíblia Hebraica), mas isso aconteceu bem depois de Cristo e depois da redação dos evangelhos sinóticos (Mc: 70 d.C.; Mt e Lc: 80 d.C.). Não há motivo, portanto, porque as Igrejas protestantes (“evangélicas”, a partir de Martin Lutero em 1517), seguindo os judeus, reconhecem apenas a Bíblia Hebraica como texto sagrado do AT, quando os próprios evangelistas já usaram a tradição grega (como se vê claramente em Mt 1,23). Aceitando apenas o texto hebraico do AT, os protestantes não acolheram sete livrinhos que se encontram no texto grego do AT (LXX) e que desde os primeiros séculos faziam parte da Bíblia católica (Tb, Jd, 1-2Mc, Sb, Eclo, Br); são chamados deuterocanônicos pelos católicos e apócrifos pelos protestantes.

 

Leitura: Rm 1,1-7

Na Bíblia, as cartas do apóstolo Paulo não estão colocadas em ordem cronológica, mas pelo critério do tamanho (aliás, também os capítulos do Al-Corão dos muçulmanos). A carta aos Romanos é a carta mais volumosa de Paulo, por isso ela está em primeiro lugar na sequência das cartas do apóstolo (a menor, Fm, está no último lugar; Hb não é de Paulo, é uma carta anônima).

Nada sabemos sobre a origem da comunidade cristã de Roma, nem sobre suas condições na época de Paulo. As únicas informações são as que se podem tirar desta carta. Formada talvez por cristãos vindos da Palestina e da Síria, essa comunidade logo se tornou conhecida no mundo todo. Um edito do imperador Cláudio, no ano 49, expulsou de Roma os judeus e, provavelmente, também cristãos. Prisca e Áquila, um casal judeu-cristão, vítimas dessa expulsão, foram para Corinto, onde se encontraram com Paulo (At 18,1-3), que realizava a segunda viagem missionária (50-52 d.C.). É através deles que Paulo é informado sobre a situação dos cristãos em Roma. A partir dessa época, o Apóstolo começa a fazer planos para visitá-los pessoalmente. Por ocasião da terceira viagem (57-58 d.C.), ele se encontra novamente em Corinto (At 20,1-3), e projeta ir até a Espanha. Escreve, então, a fim de preparar os cristãos de Roma para a sua tão desejada visita (Rm 15,14-29) e dar um resumo da sua teologia. Como esta carta é uma das últimas cartas autênticas, é chamada também “testamento de Paulo” (2Tm se apresenta assim, mas não é de Paulo, sim da terceira geração cristã).

Seguindo o formulário antigo de cartas, no início desta carta constam o remetente (vv. 1-6), o destinatário (v. 7a) e uma saudação (v. 7b). Mas Paulo dá a essas formulas uma tonalidade cristã que lhe é própria e as prolonga ajustando-lhes um pensamento teológico que, na maioria das vezes, anuncia os temas maiores de cada carta. Em Rm temos os seguintes temas: a gratuidade da eleição divina, o papel da fé na justificação, a salvação pela morte e ressurreição de Cristo, a harmonia dos dois Testamentos.

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: Paulo escreve a comunidades nas quais conviviam cristãos judeus e gentios. Os judeus tinham sido expulsos de Roma e agora, autorizados, estavam voltando em situação de grande inferioridade. A fim de dar-lhes apoio, Paulo inicia a carta lembrando que Jesus é a boa-nova de Deus há tempos anunciada nas Escrituras sagradas dos judeus, é Filho de Deus, mas judeu de nascimento, da família de Davi. Ele é definido Filho de Deus com poder a partir da ressurreição, a partir de sua vitória sobre a morte, quando Deus ratificou sua obra e mensagem. A partir daí o judeu crucificado é Messias e Senhor nosso.

Eu, Paulo, servo de Jesus Cristo, apóstolo por vocação, escolhido para o Evangelho de Deus (v. 1).

Paulo deixou o velho nome Saulo (At 13,9). Ainda não conhece os cristãos de Roma. Por isso, apresenta-se com todos os seus títulos: “servo”, “apóstolo” e “escolhido”. Não é só servo de Deus (cf. Js 24,29; 2Rs 18,12; Is 42,19 etc.), mas do messias (Cristo) Jesus, não é apóstolo por vontade própria ou pelo chamado de Jesus como os doze, mas pelo chamado do próprio ressuscitado (cf. 1Cor 9,1s.17; Gl 1,15s; At 9) como instrumento escolhido para anunciar o Evangelho entre os pagãos (cf. At 9,15). Como os antigos profetas (cf. Jr 1; is 6; 42,7), Paulo foi chamado, só que ao apostolado (enviado, embaixador; cf. Jr 25,4) da Boa Notícia (Evangelho; cf. Is 40,9). Quem o envia, é Jesus.

O título de “apóstolo”, de origem judaica e traduzido para o grego, significa “enviado” (cf. Jo 13,16; 2Cor 8,23; Fl 2,25), no NT é aplicado ora aos doze discípulos escolhidos por Cristo (Mt 10,2; At 1,26; 2,37, etc.; 1Cor 15,7; Ap 21,14) para serem suas testemunhas (At 1,8), ora, em sentido mais lato, aos missionários do Evangelho (Rm 16,7; 1Cor 12,28; Ef 2,20; 3,5; 4,11). Não obstante Paulo não tenha sido incorporado ao colégio dos Doze, seu carisma excepcional de missão entre os pagãos (At 26,17; Rm 11,13; 1Cor 9,2; Gl 2,8; 1Tm 2,7) faz dele um apóstolo de Cristo (Rm 1,1; 1Cor 1,1, etc.), que em nada fica devendo aos Doze, pois como eles (At 10,4) também ele viu a Cristo ressuscitado (1Cor 9,1) e recebeu dele (Rm 1,5; Gl 1,16) a missão de ser uma testemunha escolhida (At 26,16). Embora se reconheça o último dos apóstolos (1Cor 15,9), ele afirma claramente ser igual aos outros (1Cor 9,5; Gl 2,6-9), e não deve a eles o seu evangelho (Gl 1,1.17.19).

Esse Evangelho, que Deus havia prometido, por meio de seus profetas, nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu Filho, descendente de Davi segundo a carne, autenticado como Filho de Deus com poder, pelo Espírito de Santidade que o ressuscitou dos mortos, Jesus Cristo, Nosso Senhor (vv. 2-4).

A missão de Paulo é anunciar o “Evangelho”, isto é, a Boa Notícia que Deus revela ao mundo, antiga na promessa, nova no cumprimento que Deus enviou o messias para libertar os homens e instaurar o seu Reino. O centro desse Evangelho é, portanto, a pessoa de Jesus na sua vida terrena, morte e ressurreição, que o constituem o “Cristo” prometido pela Escritura (messias para Israel) e o “Senhor” do mundo e da história (cf. 10,9; Fl 2,9-11). Jesus é o messias esperado, descendente de Davi (Jr 23,5; Am 9,11; Mt 1,1-17) que não subiu ao trono de um reino judaico independente como muitos esperavam (cf. At 1,6), mas em virtude da sua ressurreição e pela ação do Espírito Santo, foi nomeado e estabelecido no trono como “Filho de Deus” (cf. Sl 110,1; 2Sm 7,9; At 2,35s).

Paulo parece desconhecer a origem de Jesus pela virgem (cf. Gl 4,6) ou não se refere a ela (por haver mitos semelhantes sobre César Augusto e outros?). A novidade consiste no pleno “poder” pelo Espírito, já que Jesus era Filho de Deus antes (cf. 8,3). Mas para Paulo o que faz Jesus “Filho de Deus” em pleno poder não é a origem (pela carne é descendente de Davi), sim o Espírito Santo que o ressuscitou dos mortos, fato experimentado e testemunhado pelo próprio Paulo e outros (cf. 1Cor 15,3-8).

Paulo atribui a ressurreição de Cristo à ação de Deus (1Ts 1,10; 1Cor 6,14; 15,15; 2Cor 4,14; Gl 1,1; Rm 4,24; 10,9; At 2,24; 1Pd 1,21) que nela manifestou seu “poder” (2Cor 13,4; Rm 6,4; Fl 3,10; Cl 2,12; Ef 1,19s; Hb 7,16). É pelo Espírito Santo que ele foi reconduzido à vida (Rm 8,11) e colocado no seu estado glorioso de “Senhor” (Fl 2,9-11; At 2,36; Rm 14,9), no qual ele merece por um novo título, messiânico, seu nome eterno de “Filho de Deus” (At 13,33; Hb 1,1-5; 5,5; cf. Rm 8,11; 9,5).

 É por Ele que recebemos a graça da vocação para o apostolado, a fim de podermos trazer à obediência da fé todos os povos pagãos, para a glória de seu nome. Entre esses povos estais também vós, chamados a ser discípulos de Jesus Cristo (vv. 5-6).

A originalidade da missão de Paulo (em comparação a de outros apóstolos, cf. Gl 2,7) é conduzir os “pagãos” (não-judeus, gentios) à “obediência da fé”, ou seja, a uma submissão livre, que os faz viver de acordo com a vontade de Deus (como p. ex. Abraão, Maria), manifestada em Jesus Cristo.  “Responder com fé” é também “obediência da fé” que ocupa o lugar da obediência à lei no AT.

A vós todos que morais em Roma, amados de Deus e santos por vocação, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e de nosso Senhor, Jesus Cristo (v. 7).

A missão de Paulo se estende a todos os pagãos, entre os quais se conta Roma, capital do Império. A comunidade de Roma já respondeu com fé, por isso Paulo compreende os destinatários da carta como “amados de Deus” (cf. Is 41,8; Dt 7,7s) e “santos por vocação” (cf. Lv 11,44s; 19,2; 20,26 etc.), santificados pela palavra (chamados a ser discípulos, cf. v. 6) à qual responderam com fé, e pelo sacramento do batismo. Da saudação comum (“graça”/alegria é saudação grega, “paz” é saudação hebraica), Paulo faz um voto de benção “da parte de Deus, nosso Pai e de Jesus, messias (Cristo) e Senhor”, uma profissão de fé concentrada.

Evangelho: Mt 1,18-24

O evangelho de Mt, que ouvimos durante o Ano A, é um evangelho dos judeu-cristãos e começa com a genealogia de Jesus, filho de Abraão, como todo judeu (vv. 1-17).

Nesta genealogia de Jesus, o evangelista escreveu uma lista de descendência que inicia assim: “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá, …”, mas termina assim: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo” (v. 16), quer dizer que José não gerou Jesus, mas é o pai legal que transmite o direito a Jesus ser o Cristo, o messias legitimo (descendente de Abraão e de Davi; cf. v. 1), mas José não é o pai biológico.

Com uma narrativa em seguida, Mt dá resposta à questão levantada pela genealogia: Se José não gerou Jesus, então quem é que gerou? Igual a Lucas (cf. Lc 1,26-38) responde: Jesus não foi gerado por um homem, mas pelo Espirito Santo. Eis o modo pelo qual Jesus, embora sendo filho de uma virgem, foi “filho (descendente) de Davi” (1,1).

A origem de Jesus Cristo foi assim: (v. 18a).

Mt repete o termo “origem de Jesus Cristo”, já usado em 1,1. Aqui, o texto literal diz: ”Ora, de Jesus Cristo, a gênese foi assim”. A palavra grega “gênesis” significa “origem, geração” (1,1; Gn 2,4; 5,1 etc.).

Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo (v. 18b).

Antes mesmo de levarem uma vida comum, os jovens judeus (como Maria e José) que se comprometeram em casamento são considerados “esposos” (no v. 19, José já é chamado “seu marido” antes do convívio). Só o repúdio legal podia desligá-los do seu vínculo.

No AT, por intervenção de Deus, umas mulheres estéreis engravidaram (Sara, mulher de Abraão; a mãe anônima de Sansão; Ana, mãe de Samuel; Isabel, mãe de João Batista). Mas uma “grávida pela ação do Espírito Santo” é novidade na Bíblia (há paralelos nos mitos de outros povos). Maria ficou grávida não por um ato de um homem; sua gravidez não é imoral nem ilícita, mas consagrada.

José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo (v. 19).

José é apresentado como “justo”, mas em que sentido? É honrado, ou inocente no assunto? A legislação Dt 22,20-29 prevê apedrejamento em caso de adultério (cf. Jo 8,1-11). Para Mt, a “justiça maior” não é abolir, sim cumprir a lei à risca (5,17-20), mas Jesus declara como “lei maior” o amor a Deus e o amor ao próximo (22,34-40p; cf. 7,12). O amor, portanto, não aceita a pena de morte (apedrejamento, cf. Jo 8,1-11), prefere misericórdia mais do que vingança (assim é a justiça divina)

Nenhum texto do AT, porém, pode justificar o caráter secreto deste repúdio “em segredo”; para ser legal, ele deve ser autenticado por um certificado oficial (Dt 24,1).

Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (vv. 20-21).

O “anjo do Senhor” designa a intervenção do próprio Javé Deus (Gn 16,7.13; Ex 3,2; Mt 28,2) e não se deve confundir com outros anjos. A visão em sonhos recorda os sonhos de outro José que salvou seu povo no Egito (Gn 37-50, cf. Mt 2,13.19).

Várias figuras da Bíblia tiveram seu nascimento anunciado por intervenção e mensageiros divinos: Ismael (Gn 16,7-12); Isaac (Gn 17,15-22; 18,9-15); Sansão (Jz 13,2-22), João Batista (Lc 1,5-25). Aqui, o anjo chama enfaticamente “José, filho (descendente) de Davi” e repete a afirmação de que Maria concebeu “pela ação do Espírito Santo” (vv. 18.20).

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: A mensagem do anjo vai além do que José imaginava: nem a denúncia pública nem a saída discreta; ao contrário, acolher a esposa, pois o que ela traz no ventre vem de Deus.

Mas a José cabe um papel capital a desempenhar: se José impõe o nome de Jesus, é porque age como pai legal (cf. Zacarias em Lc 1,13.62s) e confere esta criança a filiação davídica.

O nome do menino, Jesus, em aramaico Yeshua (o mesmo que o hebraico Yehoshua = Josué, e parecido com Oseias), anuncia o destino: Jesus significa “Javé (o Senhor) salva”. Salvar seu povo de que? Dos dirigentes corruptos do “seu povo” judeu? Do poder opressor de Roma? Mt interpreta: “salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). O evangelista via mais fundo e chega ao pecado, raiz de toda opressão. Como um rei, Jesus salvará seu povo, mas não como Davi através de guerras derramando o sangue dos outros, mas derramando seu próprio sangue “por muitos pela remissão dos pecados” (o acréscimo de Mt em 26,28, nas palavras da última ceia), doando sua vida na cruz.

Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ”Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco” (vv. 22-23).

Esta citação de Is 7,14 é a primeira das citações de cumprimento das Escrituras, mediante as quais Mt interpreta os acontecimentos mais marcantes da vida de Jesus (1,22; 2,6.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4;27,9). Os leitores de Mt são judeu-cristãos cuja fé se fortalece com estes argumentos do Antigo Testamento (AT) contra hostilidades de judeus da época que não reconhecem Jesus como messias.

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: O Filho da virgem mãe será chamado Emanuel. Se no diálogo de Isaías com Acaz esse nome poderia lembrar apenas um grito de guerra, aqui tem significado pleno. Ele é Deus conosco, não apenas nos dando forças — tal como a aclamação guerreira pretendia convencer os soldados —, mas também sendo a presença de Deus no meio da humanidade, sendo Deus que vem caminhar com a gente. Jesus é a presença vitoriosa de Deus no meio da humanidade, é o Emanuel, o Deus-conosco.

Jesus não é apenas mais um filho da história dos homens, é o próprio Filho de Deus, o “Deus (que está) conosco”, como Mt destaca no início de seu evangelho (1,23), no meio (18,20: “onde dois ou três estiverem reunidos, eu estarei no meio deles”) e no fim (28,20: “Estarei convosco até o fim dos tempos”).

Em Is 7,14, no texto hebraico do AT, o sinal dado pelo próprio Senhor (na boca do profeta) é o nascimento do filho de uma “mulher jovem”. A palavra hebraica ‘Imh significa simplesmente “jovem, moça”, provavelmente a esposa jovem do rei Acaz (2Rs 16) que conceberá apesar de tempos difíceis. Esse menino que está para nascer é sinal de que Deus permanecerá no meio do seu povo (Emanuel = Deus conosco) apesar da situação crítica da cidade de Jerusalém cercada pelos inimigos (o contexto de Is 7). Seu nome “Emanuel” significa “Deus está conosco” (v. 14; 8,9s; 41,10). Deus está com seu povo e seus líderes (Dt 20,1; 1Rs 8,57; Gn 26,3; 18,15; 29,32; Ex 3,12; Dt 21,23; Js 1,5; Jr 6,12; 1Sm 16,18; 18,14; 2Sm 7,9; 2Rs 18,7; Jr 1,8). Deus não abandonará, mas dará a vitória a Judá e a dinastia de Davi. Este menino, filho de Acaz, herdeiro nascido, é Ezequias (2Rs 18-20), que assegurá a continuidade da dinastia.

Mas a profecia de Is 7,14 cresceu no passar do tempo. Na tradução grega do AT realizada na cidade de Alexandria, a partir do século III a.C. por setenta sábios (LXX), usa-se a palavra grega parthenos, “virgem”, em vez de “jovem, moça”; e assim passa para a tradição cristã que aplica esta profecia à “virgem” Maria (Mt 1,23). Mt vê o nascimento de Jesus, “concebido pelo Espírito Santo e nascido da virgem Maria” (Credo apostólico), correspondendo às profecias antigas sobre a origem do messias. É possível que estivesse intenção apologética (defesa) contra boatos que começavam a difundir-se sobre o nascimento de Jesus (p. ex. numa coleção de textos judaicos, Talmud, do séc. VI d.C. afirma-se que Jesus teria nascido de um adultério de Maria com um soldado romano).

Obs.: O uso da tradição grega do AT (LXX) por Mt 1,23 demonstra que os próprios evangelistas consideravam esta tradução grega como Sagrada Escritura. Na época, ainda não havia uma norma (cânone) que determinasse quais escritos deviam fazer parte da Escritura e quais não. Havia discussão: os saduceus consideravam apenas os primeiros cinco livros (Pentateuco), ou seja, a Lei (Torá) de Moisés como Escritura sagrada, os fariseus pensaram diferente (cf. At 23,8).

No sínodo de Jâmnia no ano 90 d.C., as únicas autoridades judaicas que restavam depois da guerra judaica foram os rabinos do partido dos fariseus que, na tentativa de restaurar as bases de Israel, declararam como Escritura Sagrada os livros em hebraico (Bíblia Hebraica), mas isso aconteceu bem depois de Cristo e depois da redação dos evangelhos sinóticos (Mc: 70 d.C.; Mt e Lc: 80 d.C.). Não há motivo, portanto, porque as Igrejas protestantes (“evangélicas”, a partir de Martin Lutero em 1517), seguindo os judeus, reconhecem apenas a Bíblia Hebraica como texto sagrado do AT, quando os próprios evangelistas já usaram a tradição grega (como se vê claramente em Mt 1,23). Aceitando apenas o texto hebraico do AT, os protestantes não acolheram sete livrinhos que se encontram no texto grego do AT (LXX) e que desde os primeiros séculos faziam parte da Bíblia católica (Tb, Jd, 1-2Mc, Sb, Eclo, Br); são chamados deuterocanônicos pelos católicos e apócrifos pelos protestantes.

Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado, e aceitou sua esposa (v. 24).

Nos evangelhos, nenhuma palavra de José é transmitida (!), apenas seus sonhos e sua prontidão em agir “conforme o anjo do Senhor havia mandado” (v. 24; cf. 2,13s.19-23). Para Mt, é importante apresentar as palavras dos profetas que demonstram o cumprimento do AT na história de Jesus.

O site da CNBB comenta: José não teve nenhuma participação no Mistério da Encarnação, mas mesmo assim, cooperou com a realização das profecias ao reconhecer Jesus como seu filho e, ao dar-lhe o seu nome, lhe transmite todos os direitos da descendência davídica. Com isso, o Evangelho de hoje nos mostra que, embora a salvação seja obra de Deus, a colaboração humana é necessária para a sua realização e somente pode ser considerado verdadeiramente santo aquele que procura participar da obra salvífica da humanidade como colaborador do próprio Deus.

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